segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Literatura como forma de conhecimento de pleno direito ou comentário à socialidade semiobrigatória após eventos universitários

Na casa

Após um seminário sobre poesia, alguém da organização do evento fixou meus olhos e decretou: “você não importa”, até mesmo “você não existe”: “apenas o texto importa” (nem mesmo importa se fiz “bem o texto”). Adjungiu imediatamente: “nós não somos sua comunidade, não vamos levar seu texto pra frente”. Exclusão disfarçada de conselho encharcado de condescendência. Tentou jogar toda a presença de um leitor arguto na lixeira: corpo, história, fadiga, vida, desejo despejados da morada intelectual. As afirmações não me doeram por vaidade; marcaram-me porque revelam uma doença do âmbito acadêmico: crítica e ensino literários reduziram-se a práticas de gabinete, deslocados da experiência de leitura e da própria prática de criação literária. A posição de acadêmico de estudos literários desvencilhou-se da vida em sua verdade encarnada, comentando a vida apenas à distância dos conceitos de grandes nomes teóricos europeus ou palavras de ordem sociológicas.

Isso se deve, em parte, à urgência de posicionamentos políticos e sociais explícitos no âmbito das artes, o que confunde posicionamento político e social com crítica de arte; um salto equivocado. Não é como se fosse por aí que a literatura estabelecesse sua importância. Como diz um grande amigo: vivemos na cultura do take, “tudo pelo caráter espetacular da enunciação”. Sim, é isso. Há que se falar certo e impactante, pois as atenções fragmentadas já não fluem mais entre sentenças subordinadas, ideias prolongadas, desenvolvimentos em três, quatro, cinco partes argumentativas. Pancada, pancada, pancada. Frases de efeito e pouco mais que isso. Como esse mesmo amigo descreveu: “convergência do coach com o pesquisador acadêmico: dependência do efeito”. Esse clamor urgente a se posicionar em meio à crítica literária emburreceu tudo e impede (ativamente) de contemplarmos a politicidade própria às artes.

A insistência na dimensão social da obra de arte criou uma indisposição com qualquer uma que não tenha algo a dizer sobre “o mundo” de imediato. Sabemos que a literatura sempre diz algo sobre o mundo, porque só fala a partir desse, ainda que o negue. Mas os textos canônicos, digamos, do Candido e dos críticos que ele formou, sempre vão nessa direção de discorrer de algum modo sobre “o que realmente importa”: contradições sociais, desigualdade, violência, etc. Claro, eles sempre tentam mostrar que há uma relação indissociável entre o que e o como do texto, que toda forma é forma de algum conteúdo, que a eficácia do conteúdo depende da eficácia da forma. Isso está correto. O problema surge quando muita gente joga o bebê fora com a água do banho, especialmente hoje em que há necessidade de sempre (de)marcar posições nos meios intelectuais: já se passa da literatura para o que não é literatura como se a primeira fosse apenas um pretexto para a segunda, em vez de o que está sendo estudado.

Os textos críticos que mais me agradam se aprofundam num texto, desfiam suas relações textuais, fazendo todo um trabalho de citações e remissões, aproximando e afastando de outros, complicando a coisa toda para fazer da literatura uma experiência em muitas frentes: na língua, no pensamento, na sensibilidade. Coisa rara hoje. A literatura amplia, não reduz, nossa experiência. Ler um livro é ler gente, com tudo que isso implica de social, de individual, de racional, de delirante, de esquisito, de patológico, de normalizado, de enfeitado, de ressequido… Se a literatura não puder ser a transcendência da sociedade na sociedade, se tiver de ser só a reprodução do mundo, melhor desistir; se for só tilelê, nenhum motivo para ler, melhor ficar sentindo a vida passar. Literatura não é só forma, nem só conteúdo, tampouco só afeto, nem mesmo só ideia, não é puro conceito, mas também não é inapreensível de todo: literatura é o que se tece entre tudo isso. Supera a sociedade nascendo no seio da própria sociedade.

Recordo o que expus na introdução de minha dissertação: a literatura constitui um discurso próprio no sentido técnico: utiliza a linguagem de um modo singular, gera conhecimentos que não se reduzem aos modos explicativos da historiografia, da filosofia, da psicologia, do jornalismo, etc. Pode produzir verdades (não empíricas, dessas que se apresentam em planilhas e tabelas), um saber existencial, ético e formal, que transforma o leitor (e o autor porventura).

Há, para mim, duas tradições que me fazem pensar isso. Uma é a da crítica erudita e apaixonada (penso em Harold Bloom), cuja virtude, ainda que contestável em muitos sentidos, consistia sobretudo num ímpeto de amor à leitura: selecionar, opinar, arriscar rejeições e elogios fundamentados na leitura. A outra, da leitura atenta ligada à melhor desconstrução (Blanchot, Derrida, Paul de Man), que mostrou como o próprio tecido da linguagem recusa se fechar em sistemas e amplia o que podemos dizer sobre um texto. Gosto de ambas: Bloom pelo entusiasmo com a literatura e aquelas transformações que a leitura nos provoca nessas dimensões quase indescritíveis de tão íntimas, a desconstrução pela atenção rigorosa ao mistério da linguagem e ao problema do que significa entender um texto.

Harold Bloom poucas vezes foi convidado a ser lido sem ironia, mas nele não me interessa a defesa de um cânone conservador nem uma retórica de exclusão: interessa-me o que chamo impulso leitor: insistir que a leitura é uma paixão cognitiva que altera quem lê, não um expediente neutro. Bloom falava da “angústia da influência” porque reconhecia que ler é, antes de tudo, uma experiência de transformação: o texto instala imagens, hábitos de pensamento, sensibilidades que reconfiguram a memória e a imaginação leitora. Essa transformação não cabe facilmente nas categorias disciplinares da filosofia ou da sociologia: trata-se de uma modificação do repertório interno do leitor (uma reordenação de imagens, ritmos, possibilidades narrativas). Defendo esse impulso porque acredito que a crítica precisa começar por esse encontro vivo com o texto, não por sua instrumentalização para provar teses pré-moldadas e dadas de antemão.

Esse ato de entender, para Bloom, constituía-se numa operação cognitiva em sentido amplo, uma transformação quase fisiológica da sensibilidade. Ao lermos profundamente (expressão dele: deep reading), além de acumularmos informações sobre um soneto de Shakespeare, tornamo-nos um pouco mais shakespearianos. Nossa arquitetura mental internaliza novas cadências, nossa gramática interior assimila novas possibilidades de sentir e avaliar. É um conhecimento que nos possui, um rearranjo da nossa subjetividade que é, ao mesmo tempo, ético (pois altera nossa relação com o outro), existencial (pois altera nosso estar no mundo) e cognitivo (no sentido amplíssimo de reorganizar nossa percepção). A literatura alarga e aprofunda drasticamente o repertório e a complexidade das perguntas que somos capazes de formular, mesmo que não nos dê respostas.

A leitura rente [close reading] não é um jogo de erudição; é um método de evidência. Ler verso a verso ou frase a frase estabelece um conjunto de dados interpretativos: repetições, elipses, alternâncias de ritmo, anáforas, deslocamentos semânticos, etc. Esses elementos constituem provas textuais que permitem construir e testar hipóteses sobre o sentido (a interpretação) do texto. Sem isso, estaríamos falando sobre nada. A partir daí desdobram-se interpretações plausíveis e mutuamente justificáveis, todas ancoradas no próprio texto. Leitura cerrada, rente, com o nariz tocando o papel impresso, ancora e favorece a pluralidade interpretativa.

Vi nas mesas uma maldição pelos seguintes extremos: abundância de jargão sem domínio real do objeto estudado (citações desnecessárias de Deleuze, Agamben, Didi-Huberman, puro ornamento) e a tendência a transformar escolhas críticas em autoproteção política (ex.: confundir seleção com segregação). Não há problema em se aproximar pelo viés teórico; o problema é quando a teoria substitui a leitura: quando o poema é apenas pretexto para uma colagem de citações que não consegue dizer o que o próprio poema faz (na língua, com o mundo, etc.).

Apresentei uma leitura rente, verso a verso, sem nostalgia metodológica, senão pura convicção: há uma ordem na leitura, há uma maneira de pegar na mão do poema e caminhar ao seu lado. Isso não exclui teorias, contextos, política. Exclui, porém, reduzir o poema a índice de categorias prontas. A crítica (que merece esse nome) amplia a obra, continua a potência criativa do texto: escreve-se com a obra, em torno da obra, como prolongamento de suas energias.

Dois vícios, em especial, definem aquela recusa em encontrar a chave do texto. Primeiro: redução sociologizante: o poema deixa de ser um universo verbal autônomo para se tornar mero sintoma (termo repetido à exaustão durante as apresentações) de uma identidade (de gênero, de raça, de classe) ou de um contexto histórico. Ignora-se sua qualidade estética; importa apenas sua utilidade como ilustração de uma categoria pré-existente. Segundo (talvez mais perverso): redução filosofante: esvazia-se o poema de sua potência para convertê-lo em exemplo de um conceito de Agamben, Deleuze ou Didi-Huberman (os mais citados durante o evento). Rebaixa-se o poema, que poderia desafiar e complexificar o conceito, à condição de servo ilustrativo. Em ambos os casos, opera-se uma violência: nega-se à literatura sua condição de discurso próprio, de forma de conhecimento de pleno direito, plenamente capaz de dialogar de igual para igual com a filosofia e a sociologia, e não de lhes servir de escrava.

Não nego a legitimidade dos comentários à literatura que mobilizam gênero, raça, ou questões de filosofia; nego, antes, a substituição da obra por categorias exógenas sem demonstração textual. Tratar um poema apenas como prova de uma tese social ou filosófica — como se servisse para confirmar um quadro teórico — esvazia-o de sua natureza propriamente literária. Poema não é mero testemunho. Dizer que um poema pode ser interpretado sob a óptica do identitarismo exige demonstrar por que isso enriquece a leitura. O caminho mais sério sempre consiste em: mostrar o que o texto diz e como o diz, mostrar como uma matriz teórica esclarece aspectos relevantes, argumentar por que essa interpretação amplia o entendimento, sem reduzir o texto a um índice sociológico.

Aquela prática da leitura rente, verso a verso, faz justiça ao caráter irredutível do literário. Não é um fetiche pelos detalhes, senão o reconhecimento humilde de que o conhecimento próprio da literatura está ligado inextricavelmente à sua materialidade linguística. A “abertura” da interpretação não é uma licença para o proselitismo teórico; pelo contrário, consiste num processo rigoroso de descoberta que ocorre dentro das pistas e dos limites estabelecidos pelo próprio texto. Cada ambiguidade sintática, cada imagem, cada escolha lexical oferece-se como porta pelo texto. A leitura cerrada constitui o método que se recusa a arrombar a porta com um pé-de-cabra teórico, preferindo, em vez disso, encontrar a chave que o próprio texto fornece através de sua generosidade, abundância e complexidade. É assim que se concretiza o ditado de que a literatura comporta infinitas interpretações: não através de uma pluralidade vaga de opiniões, mas através da exposição rigorosa e argumentada das potencialidades que coexistem na urdidura mesma da obra estudada.

Repito: a literatura constitui-se numa forma de conhecimento de pleno direito. Transforma modos de sentir e de (se) relacionar. A técnica linguística faz modulação ética e existencial. O leitor muda: aprende a ouvir e viver de outra maneira. Por isso me irrita quando a academia contenta-se com operações que soam como exercícios internos de legitimidade: simpósios em que a prioridade é demonstrar a adesão a uma escola crítica, sem atenção detida, focada, profunda nos textos e para os textos.

Não tenho uma solução para a situação. Tenho, isso sim, práticas e urgências: ler mais (de novo), ensinar a leitura atenta, praticar a crítica que se faz também em oficinas e zines, voltar à escrita pessoal, restabelecer a vida com música e corpo. Estou em transição: quero menos performatividade teórica e mais criatividade estruturada; menos reafirmação de redes de prestígio e mais trabalho que se possa levar à sala de aula, à oficina de escrita, à cidade que circunda a universidade.

O futuro da poesia existe porque há quem continue lendo vorazmente, com fome de verbos. Me preocupa não tanto a sobrevivência do verso, mas a sobrevivência de uma crítica capaz de dizer sim e não com argumentos, de formar gosto e de justificar, numa linguagem pública, o apoio social às instituições culturais. Se a crítica recebe dinheiro público, é justo perguntar: em que medida esse recurso favorece a circulação da sensibilidade, do rigor e da experiência estética além das paredes da universidade?

Saio desse ciclo em luto parcial; jamais derrotado. O luto não impede que eu volte aos cadernos, à composição, ao exercício, ao sol e aos amigos. Pelo contrário: sustenta um movimento prático: ler, escrever, ensinar, compor: coisas que não substituem umas às outras, sustentam-se. A literatura, enquanto discurso próprio, merece leitores que a respeitem pelo que é, com entusiasmo e dedicação, com dignidade e à sua altura. Quero investir meu tempo e minha voz nisso, sem mais.