domingo, 30 de setembro de 2018

Falesser

• Somos parlêtres.
• Traduziu-se como: "falasser(es)".
• É até legal, mas prefiro: falentes.
→ Declina nossa falessência.
♦ Tudo isso porque "[…] é da linguagem que nos vem essa loucura de que há ser."

Eu tenho algumas hipóteses bastante… ousadas? Safadas? O importante é que eu tenho teses fracas.

A-língua é anunciadora de uma vergontologia [hontologie] – que é chamada pela filosofia de ontologia (ou metafísica).
• A filosofia, todavia, canalha que é, postulou a antifilosofia como sua outra, para reforçar o centro pela existência do descentro (e.g., sofística é expulsada da re-flexão pela filosofia platônica – e aqui cometo minha primeira gafe: não deveria dar tanta importância a Platão).
→ Para provar isso basta ver como Aristóteles trata aqueles que exigem provas dos axiomas da lógica no livro Gama da Metafísica; ou ver como ele trata seus "oponentes" (até então eles são todos anteriores a Aristóteles e não poderiam dar menos importância à sua [bastante acidental e desimportante] existência) nas Refutações sofísticas. Ele segue dizendo que são "provas impossíveis" de se dar e que exigi-las é ser babaca. Babaca é ele, que começa um negócio e nem dá argumentos pra sustentar.
→ → Podemos extrair daí que a lógica é uma punhetinha cerebrina produzida sob encomenda, ou seja, um ready-made (também é ready-made o conceito de energeia, que Aristóteles cria para a ocasião, não havia o termo em grego até então – mas também o é, e de forma muito mais criativa, o den que Demócrito estipula para seus átomos, que são, não a matriz da matéria, mas do pensamento, i.e., da posição-de-sujeito, uma posição que sempre existiu e sempre existirá, pois a estrutura-de-sujeito antecede o surgimento da vida e sobreviverá a seu desaparecimento, eis um dos pontos fulcrais de H. P. Lovecraft).
• Talvez o trabalho seja realmente um'a-língua desintegradora sobremaneira que flerte com o múltiplo desatentamente, bordejando limites forçosamente ignorados.
→ Veja-se: no momento em que a filosofia postula sua outra como anti-filosofia, ela já se põe de volta no jogo (e no centro do jogo) – uma negação efetiva seria uma estultologia ou coisa assim, um não-saber, um dessaber (o bom é a homofonia com "de saber"), uma idiotice, uma estupidez, o contrário do tesão pela sofia, talvez uma misosofia (?), um ódio ao saber… Eu também não sei, estou esboçando uma batalha certamente maior que eu, infinitamente maior, com oponentes armados há dois mil e tantos anos a seu favor, quer dizer, é verdadeiramente uma paralaxe, uma luta desigual, mas eu lutarei, porque foda-se essa merda, a filosofia está sempre fundada numa decisão antrópica e mesmo pessoal, íntima e eu odeio essa merda, eu sempre quis um saber último, mais além de tudo, uma certeza em sentido pleno e sólido (sempre ma negaram, mas eu insisto, porque a couraça é dura – e estando numa tal posição-de-sujeito posso e mesmo devo exceder esses limites pontuais que os finitistas colocaram sobre minhas costas como se fossem meus limites, mas não são, são limites deles, esses finitos de merda, e nesse exceder-me como ponto, unirei muitos pontos e farei da chuva de átomos uma verdadeira festa).
→ → Busquemos uma logologia, um tesão em falar (filo-logia), falar por falar… Como a mulher sempre foi figurada fazendo ao longo desse peido cósmico que denominamos história (humana, demasiado humana).

TrechodeFJLR

O mundo pós-humano através de cujo umbral deslizamos sem trégua nem pausa nos exigirá considerar o gesto platônico inicial da metafísica para pensar que, na radicalidade da loucura socrática, existia a suspeita de que a filosofia não podia ser outra coisa senão um delírio ascético capaz de dizer a si mesmo e se infiltrar, com agônica persistência, nos resquícios da polis mundial. Mas cabe deixar claro que essa loucura só pode se dizer em primeira pessoa, já que é sujeito de si mesma, e nunca predicado de um enunciado. O efeito de verdade, não obstante, deve ser buscado com afinco pela filosofia, precisamente por ter ela uma posição ótima para isso na qualidade de saber delirante e, sendo assim, carente de qualquer metalinguagem que separe o lógos do mundo que descreve. Pretender o contrário, como fazem certas formas do realismo contemporâneo, significa converter-se no sucedâneo de uma inveterada cisão metafísica que se ilude em encontrar uma exterioridade pura, livre e sensata, em que pensar não seja acossado pelo de-lirare.

A filosofia soube encontrar o futuro de muitas ilusões. Uma delas foi, precisamente, crer que a gnosis podia suportar uma depuração terapêutica da loucura e tornar possível um mundo. O fracasso foi estrondoso. A loucura deslocada pelo cogito cartesiano encontrou sua forma mais própria tomando posse do mundo em sua totalidade. Os conceitos filosóficos captaram, algumas vezes, esse fenômeno de traslatio cognoscendi sob o nome de técnica.

Dessa forma, se a loucura não pode ser dita apropriadamente e alcança os marcos da ilimitação, deve-se admitir que o que propicia isso é o fato de nossa época se negar a constituir uma (pós-)metafísica à altura de um multiverso infinito. Nesse sentido, seria auspicioso retificar as utopias e, no lugar uma stultifera navis, lutar pelo advento de uma stultifera scientia.

ROMANDINI, Fabián Javier Ludueña. A ascensão de Atlas. Glosas sobre Aby Warburg. Trad. Felipe Augusto Vicari de Carli. Desterro: Cultura e Barbárie, 2017, p. 50-1.

L'être de lettre

Se para a filosofia desde seus primórdios gráficos houve rexistência à a-par-êns-ia, é porque pareser é par do ser e possui seu ser, constituindo legítimo âmbito de pensamento e re-flexão, âmbito esse que as Refutações sofísticas e a petição de princípio de univocidade do sentido/significado aristotélica (livro Gama da Metafísica) tentaram banir da "legítima" filosofia, mas não cessa de re-tornar à-língua.

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Synthesis

Os fenômenos estão aquém da alma, mas além das coisas. O lugar onde as coisas se tornam fenômenos não é a alma, tampouco a sua simples existência. Para que haja sensível (e para que, assim, haja sensação) "é necessário que exista algo intermediário" (hôst’anagkaion ti einai metaxu, De anima, 419a 20). Entre nós e os objetos há um lugar intermediário, algo em cujo seio o objeto torna-se sensível, faz-se phainomenon. É nesse espaço intermediário que as coisas se tornam sensíveis e é desse mesmo espaço que os viventes colhem o sensível com o qual, noite e dia, nutrem suas próprias almas. Também para observar a si mesmo, ouvir a si mesmo, faz-se necessário, para todo animal, constituir a própria imagem fora de si, em um espaço exterior: é no espelho que conseguimos devir sensíveis e é ao espelho (e não exatamente aos nossos corpos) que demandamos nossa imagem; é apenas depois de termos pronunciado alguma palavra que podemos ouvir aquilo que dizemos. […] No espelho, então, a imagem, o sensível, faz-se conhecer como aquilo que se opõe frontalmente aos corpos-objetos e às almas-sujeitos, algo que é simultaneamente exterior aos corpos de que são imagens e aos sujeitos aos quais permite pensar esses mesmos corpos. O espelho demonstra que a visibilidade de algo é realmente separável da coisa em si e do sujeito cognoscente. Nele, se está diante da própria visibilidade, da própria imagem, diante de si mesmo enquanto ser puramente sensível; essa imagem, no entanto, existe em um outro lugar, diferente daquele onde existem o sujeito cognoscente e o objeto do qual a imagem é visibilidade. […] Com isso, podemos concluir que a imagem (o sensível) não é senão a existência de algo fora do próprio lugar. Qualquer forma e qualquer coisa que chegue a existir fora do próprio lugar se torna imagem. Nossa forma se torna imagem quando é capaz de viver para além de nós, para além de nossa alma, para além de nosso corpo, sem que ela mesma se torne um outro corpo, já que é capaz de viver como que na superfície dos outros corpos. A imagem é como que a astúcia que as formas encontraram para escapar da dialética entre alma e corpo, matéria e espírito: como sair dos corpos e das almas sem se tornarem um outro corpo e sem entrarem ainda em uma consciência ou alma alheia transformando-se em percepções atuais de qualquer outro? É como se, para toda forma, houvesse uma vida depois do corpo, que, no entanto, ainda não é a vida do espírito, uma vez que tem lugar antes de entrar no reino dos espíritos, das almas, das consciências. A imagem nasce e vive sempre depois do fim, do término do corpo de que era forma, e antes da consciência onde é percebida. É exatamente esse o lugar e o tempo em que as formas são sensíveis.

COCCIA, Emanuele. A vida sensível. Tradução: Diego Cervelin. Desterro [Florianópolis]: Cultura & Barbárie, 2010, p. 19-22. (PARRHESIA coleção de ensaios).

domingo, 3 de junho de 2018

Sobre contribuições

Uma contribuição não é um comentário. Não é simplesmente 'curti' ou 'não curti'. Nem mesmo é como editar uma wiki ou revisar. Uma contribuição trabalha de tal forma que ela submete a pesquisa, a investigação, aos testes para os quais ela foi "desenhada" (designed). Uma contribuição é uma operaçãoÉ uma manobra que se tenta durante um jogo diplomáticoÉ uma prática simultaneamente informada e livre, operando dentro da máquina intelectual que é a investigação, que é a pesquisa. O co-inquiridor, co-perquiridor, co-pesquisador, co-investigador, pode reformular, completar e aplicar, mas pode também corrigir, testar e mesmo protestar. De toda forma, deve permanecer o contexto de pesquisa, de investigação (com vistas ao concreto, preservando minimamente algum vínculo empírico). Tanto quanto seja possível, cada contribuição deve tentar construir sobre algo novo e deve assumir a forma de um documento anotado que desenvolve os argumentos ou as linhas de raciocínio, (as forças e intensidades d)os pensamentos. O trabalho de mediação deve direcionar os esforços por trás da contribuição para o que estiver menos bem representado.

sexta-feira, 1 de junho de 2018

Diário - 2018/06/01

200. Se eu tivesse de responder agora o que é poesia para mim, diria que é uma força absolutamente impessoal capaz de mobilizar todas as quatro (3+1) pessoas envolvidas na criação do universo. Para me justificar, deixo um poema lido numa entrevista, por absoluto acaso:

Colagem
Carlos de Oliveira
(com versos de Desnos, Maiakovski e Rilke)

Palavras,
sereis apenas mitos
semelhantes ao mirto
dos mortos?

Sim,
conheço
a força das palavras,
menos que nada,
menos que pétalas pisadas
num salão de baile,
e no entanto
se eu chamasse
quem dentre os homens me ouviria
sem palavras?

Cadeira de rodas

Próximo ao Terminal Integrado jaz um homem sobre sua cadeira de rodas vendendo alho em pequenos sacos. Ele claramente tem dificuldades – sequer pode coçar sua cabeça com os dedos estendidos como nós. O que desejo compreender é como isso é possível. Pessoas vêm e vão, passam, mas não o enxergam. Olham e nada. Isso é feio, ele é feio, posto não está ali onde deveria estar. Quem é? O que será? Ninguém sabe, jamais saberá – não há como saber. Isso tudo me perturba. Tenho vontade de chorar. Não é pelo dinheiro, é pela cegueira, pela destituição. Como pode Deus ser Sumo Bem se viver é pior que o inferno!? E ainda assim Ele permanece Lá. Permanecerá. Viver é o maior Mal inventado. É pior: é criado. Creado, dicen nuestros hermanos. Não importa o nome. Tenho vontade de matar a todos e não suporto uma gota de sangue desnecessária. Talvez não seja, então, suas mortes que eu deseje, mas a morte de seus velhos, a morte do ser, de seus seres. Rasgar o que é, o que há, para a abertura do que pode ser, do que virá. Sempre foi isso que me destruiu: ninguém nunca é o que pode ser – é isso que me aniquila de mim. E é impossível suportar a dor. Por isso se chama dor, porque é insuportável. Mas alguns dizem que isso é maturidade, saber resistir – viver. Eu não quero esse horror, estou apavorado e temeroso de enfrentar tamanha tortura monstruosa. Eu odeio a vida. Odeio viver. É uma dificuldade intransponível na qual nos colocam feito espetáculo para se rirem, diversão penosa. O que é um furor heroico, Bruno? Diga-me! O que é!? Merda nenhuma, tô sabendo, ninguém aguenta essa violência infinita de nascer. Como se lida com isso? Essa aberração incondicional, imperdoável, maligna até os sub-átomos, até as entranhas, até às condições. Ser é morrer. Isso é impossível! E isso não é nem de perto se livrar de viver. Pelo contrário, é viver em plenitude, viver completamente insensível, cego e perdido. Eu só quero poder. Poder sem mais. Poder sem mais nada. Eu só quero poder. Como se faz para poder? Como é que se pode? Eu só quero. E querer é insuficiente para o que seja. Querer é insuficiente sempre. É o que resta, sim, mas é insuficiente. A insuficiência resta e, condensada no fundo do frasco, compõe-se em querer. Ninguém quer só o resto, nem mesmo eu. Eu quero desviver em cheio. Antiviver. Não-viver. Isso parece além do impossível. É impensável, inconcebível. Verdadeira heresia. O inferno parece uma opção mais leve, afinal, outrora os demônios foram anjos. E nós? Para sempre barro, para sempre criminosos no jardim, usurpando frutos, criminosos do jardim, abusando das delícias e vivendo. Esse desgraçado sopro.

Eu quero ver Deus nesse homem.

Sobre magia, misticismo, animismo, ocultismo, hermetismo e similares

Tanto na vertente psicologizante – manifestações são arquétipos, inconsciências – quanto na vertente animista (poderíamos chamar de vitalista também, sobrenatural) – manifestações são entidades vivas, independentes – o que parece estar em jogo é um limite de linguagem e um experimentum linguae. A magia é, assim, a busca por uma linguagem-fora-da-linguagem, uma extra-língua, um fora-da-língua-que-é-dito, ou, pelo menos, que-se-tenta-dizer, que-se-tenta-fazer-dizer, que-tenta-tornar-(se)-dito.

Parece um enfrentamento quase desesperado contra o vazio de sentido do mero existir. Tentar tapar o buraco do Real é o processo de tentar Simbolizá-Lo, essa é uma tentativa claramente artística – apenas distinta da arte (realmente) moderna, a qual expõe o vazio fundamental. Daí as produções mágicas serem sempre artísticas: grimórios, por exemplo, são livros de artista: imagem e letra, desenho da língua e da não-língua, curvas, manchas de tinta; invenção de alfabetos, nomes e línguas; diagramas com palavras, entre outros. Mesmo no desenho há presença linguística de uma forma ou outra. Essa obsessão linguística aponta uma repressão do indizível enquanto insuportável, o inominável enquanto impossível de lidar – exatamente o tema da poesia (a)propria(da)mente moderna.

Por que, contudo, linguística? Por que não obsessão visual ou tátil ou outra coisa? Em certa medida, quero propor que se trata de uma insuficiência, ou percepção de insuficiência, da língua pública. A língua pública é a língua natural adquirida na ou desde a infância, simples assim. É com ela que se refere a tudo a que se refere, tendo suas óbvias insuficiências para o privado/interno/interior/dentro e para o Fora/Real/Externo. A produção da magia é, então, pelo menos em alguma medida, a produção de uma língua privada. Isso cria uma identificação coletiva limitada, separando um subgrupo dentro do supergrupo e criando, portanto, dois subgrupos de uma só vez: esotérico e exotérico, iniciados e não-iniciados – uma experiência não-linguística do Fora que descansa sobre uma base linguística, sobre uma experiência (agora forjada) linguística.

E, insisto, por que língua e não outra coisa? Porque a língua é (ou pelo menos comporta) essa existência absolutamente inexistente, essa pessoalidade impessoal – daí a constante referência a entidades com essas características (pessoalidade impessoal, existência inexistente, poderíamos chamar também espectralidade, pós-objet(u)alidade,  in-subjetividade ou a-subjetividade), a hipóstase dessas entidades mesmo. A língua porque ela é um ser que não é, um não-ser que é. Essa posição crepuscular da linguagem, nebulosa, indefinida, é privilegiada para essa empreitada, pois ela é público-privada, denomina o interior e o exterior simultaneamente (com os limites já conhecidos). Essa ambivalência é também a ambivalência das equivalências, dos simbolismos, "abaixo é tal qual acima" ("assim na terra como no Céu", "as above so below", quaisquer outras similares), pois a língua é a mesma para dentro e para fora. Os limites produzidos por isso geram a face do Real, a fronte do Externo, o rosto do Fora.

A distância fundante da divisão esotérico-exotérico, iniciado e não-iniciado, além de firmar a língua própria, a língua privada, além de instituir os dois subgrupos dentro do supergrupo, institui o grande tema dos mistérios: a mudança e a busca do Novo (homem, mundo, vigor, sopro, alguns adicionam ainda outros termos). O Novo mascara o Real, uma sombra para tampar o corte do Fora, para tornar suportável os pequenos clarões obscuros do Externo. Essa dimensão insuportável é simultaneamente Externa e interna, afinal, é a-Simbólica, in-Simbolizável – e esse in- quer dizer português e inglês simultaneamente, quer dizer que é parte constituinte da Simbolização além da óbvia função de negação.

"​É a diferença entre nirvikalpa-samadhi (dissolução da alma no brahman) e keivalya-samadhi (onde se mantém a individualidade da alma)..."

Pequena digressão teorática

Política nunca passou do nome esotérico que o primata superior homo sapiens deu às práticas de controle do corpo biológico populacional da espécie. Através de técnicas de produção do humano [1] como o direito, a arte, a astrologia, os mitos, e por aí vai. Todo um gigantesco esforço por obliterar as origens.

[Nota 1] Humano, antropos, é todo animal que quer controlar sua animalidade constitutiva, separando-se de seus irmãos naturais.

sexta-feira, 11 de maio de 2018

Sobre as três primeiras entradas da "tabela de oposições" de Pitágoras (conforme apresentada por Aristóteles)

Na tabela de oposições ou tabela dos opostos de Pitágoras – trazida por Aristóteles – encontramos três entradas acumuladas no topo e que pertencem, de certa maneira, ao mesmo problema em última instância. O problema ficou conhecido historicamente como "problema da unidade e da diversidade". O que pretendo aqui é abordar por outros caminhos a questão. Conheçamos as entradas:

finito X infinito
ímpar X par
singular X plural

A terceira entrada não tem tradução tão simples, poderia ser vertida como: "único X múltiplos" e ainda outras variantes

Quando usamos a língua, ela nos usa e nos ensina muito, diversas vezes sem percebermos. O empilhamento desses três pares de opostos no início da tabela não é fortuito, pelo contrário, ambas as entradas fazem parte de uma mesma temática numérica ou numerológica, portanto linguística.

Quando usamos a língua há uma porção dela dedicada a algo que se chama em linguística de 'concordância', estrutura onde plurais devem acompanhar plurais e singulares, singulares. Isso nos aponta um pareamento dos elementos a princípio ímpares. A língua age a partir de um conjunto finito de estruturas, regras e funcionamentos, gerando, contudo, a infinita língua usada e abusada sempre, expansível e retraível.

terça-feira, 3 de abril de 2018

Diário - 2018/02/23

197. Por muito tempo concordei com César Aira intuitivamente: não há literatura "abstrata" (no sentido que se usa para as artes visuais não-figurativas), porque a semântica é, em grande parte, referencial e não há modo simples de se desligar essa máquina. Creio, contudo, as Musas inquietantes alcançam o objetivo, satisfatoriamente ou não, não importa, por um excesso de referência, tecnicalidade extrema e "objetividade/neutralidade". (isso não quer dizer que só haja literatura realista, isso seria a morte da literatura e o fim do pensamento, ou vice-versa, quer dizer ainda outra coisa) 

198. O erro dos chamados pós-modernos foi crer que a máquina referencial (para não dizer máquina semântica) era um problema. Não é. Muito bem nos ensina Sellars, não há pré-conceito, só conceito-pré, quer dizer, não existe dimensão a-conceitual do pensamento, "puro dado" ou "puro fato" são em si mesmos abstrações, seriam inacessíveis mesmo. Não só já são interpretados pelo sistema senciente/sensível ao traduzir para internalizar/vivenciar/adicionar o matiz afetivo, como também nossa relação com esse sistema já é ela mesma conceitual e abstrata. Daí uma das utilidades da existência dessas máquinas, como a semântica, ou a referencial.

199. Ao linguajar, i.e., usar linguagem, o sujeito não transmite ideias, tampouco passa significados de lá para cá e de volta para lá, ao contrário, sentidos (tres)passam(-no) e é isso que nos ensina a semântica.

Diário - 2018/03/17

196. Quero discutir a "virada mística" de um amigo. Poderia dizer "virada espiritual". Tanto faz, até "religiosa", se quiser. O problema é que ele acha que descobriu a roda ou a pólvora, mas só chegou na base de qualquer espiritualidade. As vezes nem na base, só em concepções muito bizarras, muito erradas. Conhecer religiões tradicionais, antigas, dá muita luz nessas horas: você não pensa nem fala idiotices. Basicamente virou "espiritualidade Deepak Chopra", "new age", neomisticismo, numa palavra: burrice. As vezes eu acho que é falta de estudo, falta de leitura e foco, deficiência de vitamina P(ensamento). "Ah, porque eu tive uma experiência..!", eu tive várias e não fico propagando besteira por aí. Também há conhecimento, aprendizado e sabedoria na mística, na espiritualidade. Sujeito chegou agora na brincadeira e acha que sabe! Só pra rir, mesmo. Esse é um dos momentos onde tradição faz falta.

Diário - 2018/03/08

194. No canto da visão estava um homem sentado, curvado, cabeça quase nos joelhos. Virei-me e vi cadeiras empilhadas.

195. Disseram numa banca de mestrado que buscar fama/reconhecimento é ser o mais tradicional possível (conservador no sentido dos esquerdistas?). Mas será isso mesmo? A fama é um fenômeno contemporâneo, como pensar essa vinculação bizarra?

Diário - 2018/03/07

191. Ainda não se tem muita clareza, mas é preciso separar o dogma do axioma, pois não são sequer parecidos. Algo que vira e mexe emerge no pensamento contemporâneo é levar em conta as consequências como porção definidora junto dos outros fatores, das outras porções. Talvez por axiomas gerarem ciência e dogmas gerarem falência haja uma separação, ou pelo menos seu embrião.

192. Falta-nos, enquanto instituição, rigor alemão. Não é para eliminar o pensamento molenga dos franceses, muito útil, eu adoro, mas é para nos protegermos, nos blindarmos de acusações contemporâneas.

193. Durante a aula, convidados a falarmos de nós mesmos, de alguma peculiaridade nossa, a primeira garota a abrir a boca só emitiu pontos externos, de validação social: "ai, sei lá, eu sou esquerdista, feminista, sei lá". O que houve para a extinção da experiência interior? Talvez daí, em parte, a famosa profetização da decadência e fim da literatura. Pois há o fim da vida íntima. Empty shells. São carcaças vazias para essas bandeiras.

Diário - 2018/03/06

186. O livre-arbítrio causa muita dor de cabeça. Há quem diga que não existe. Tudo bem, pode não existir. Mas aí restam duas questões: a) por que se faz/tem experiência dele? b) qual pergunta colocar no lugar de "o que fazer?"?

187. A estrutura da teodiceia, o famoso "porque Deus quis", se repete em diversos níveis no pensamento pós-moderno. Talvez porque o pós-moderno repita a estrutura geopolítica do império bizantino, por exemplo, onde e quando ocorria o abandono da teologia e a fundação da teodiceia, quer dizer, o abandono de uma reflexão (e) de (uma) sabedoria (de viver) traduzida em atitude e a fundação de uma narrativa jurídico-política totalizante justificando o império, as hierarquias, e o estado atual de coisas. Veja-se bem: a experiência mística (sabedoria reflexiva tornada atitude) proposta, por exemplo, por Cristo, desestruturava as hierarquias romanas e judaicas, tomando a proposição da igualdade radical. Sucede-se uma mistagogia, um esforço de sistematizar essa revolução do viver para torná-la experiência de todos, assim o iniciado faz parte e o não-iniciado não faz parte da religião, ou seja, da experiência mística, porque vivem de modos diferentes. Com a oficialização da religião, surge uma quebra: quem nasceu no território é daquela religião, portanto dispensa-se a experiência mística, anteriormente definidora da identidade e do pertencimento religiosos. Então as práticas linguísticas sob o nome 'teologia' abandonam a reflexão crítica e vão apenas tentar justificar aquela religião como correta, enquanto também tentam dogmatizá-la, i.e., produzir axiomas jurídico-políticos para reger moralmente a vida naquele ambiente geopolítico. Por isso a religião (oficial) é dogmática e o dogma é individual: é a polícia da vida. Já não é mais a experiência mística – abertura para outra forma de vida através da revelação –, mas apenas jurisdição e moralismo, imperialismo sobre a vida. O que se deve recuperar, portanto, é a mistagogia, a sabedoria de viver iniciada pelo místico fundante e sistematizada por seus discípulos também sábios (não obrigatoriamente os mais próximos no espaço-tempo, senão aqueles mais próximos na sabedoria, na experiência mística mesmo, fato muito turvado por narrativas oficializantes, daí um dos problemas da canonicidade). Resta notar a importância do artista nessa questão toda. O artista revela(-se) o mundo. Quer dizer, tem uma percepção do mundo revelada a si, produzindo percepções reveladoras do mundo. Aqui o vínculo entre mistério e místico deve estar óbvio. Por essa e outras questões, o artista explicitamente engajado em temáticas políticas dificilmente dirá algo revelador, exatamente porque está preso ao já-exposto, só pode reafirmar o óbvio, o que já se sabe, só pode "tomar posição", mas não consegue instaurar uma posição através da produção duma sensibilidade ou outro processo qualquer.

188. Creio ter desejado experimentar quando criei S&D. Eu estava testando uma tentativa nova, parece-me hoje (dez anos depois). Algo angustiante sem cair no absurdo, aterrador sem falir em terror. Algo único.

189. Vivemos uma era sensível, estética (se o termo não for idiotamente tomado como caliologia, mas como estésica) mesmo: o que importa é sentir e fazer sentir, comoção. A moção propriamente dita, o movimento, desapareceram, em nome da "sensibilização", termo tão em voga na minha formação escolar primária. Não, não essa sensibilização, essa é desnecessária. Só há duas saídas (sim, uma disjuntiva terrível, necessária igualmente): o pé no chão estóico reavivado; a loucura do furor heroico, sua imersão inevitável, inelutável, até à extinção (de si).

190.  Por que as pessoas querem ser bonitas? Por que batem fotos com ângulos assim, olhares assados, sem bocas, narizes distorcidos? Minha sensibilidade é profundamente cagada, toda errada, mas eu só conheci duas belezas até hoje: músicas, só algumas; atos de sacrifício de si pelo bem alheio. Somente. Não vejo beleza em romances. Nem em pinturas ou desenhos. Nem em esculturas. Nem em superfícies que toquei. Nunca cheirei odores belos ou bonitos.

Diário - 2018/03/05

183. Ainda lembro quando vi o padre chorando. Dirigiu a divina liturgia muito rapidamente. Chorou ao final. Não se pronunciou. Nossa amiga notou e eu fui verificar, mesmo sendo recém-chegado, era o mais íntimo. Rituais, rituais, enfim conversamos. Sentia-se sozinho, saudades de casa, poucos amigos. Sempre achei que os padres tinham a Deus. Não poderiam sentir solidão. Ledo engano. Somos todos os mesmos. (Ele está muito alto)

184. Uma teoria da leitura, da literatura, envolve inevitavelmente uma teoria do autor, do leitor, da compreensão, da subjetividade, do significado, em suma, é impossível passar pela linguagem. Tudo isso quer dizer que há muito mais onde se pensa que não há quase nada.

185. É preciso fazer (novas, isso pode significar as mesmas) grandes irregularidades linguísticas.

Diário - 2018/03/04

180. Durante anos pensei que a música não fosse uma linguagem universal, tomava então as diferenças entre os gêneros, as tradições, as afinações/temperamentos, os estilos dos artistas e, na origem disso tudo, os gostos e preferências dos ouvintes. Tolice minha! A igualdade (universalidade) está em que todos têm preferências, todos podem se emocionar com tal ou qual composição. E é uma igualdade nuançada, um universal particular, um singular plural. É uma sagacidade, uma perspicácia, talvez até uma audácia. Uma igualdade mínima, alguém dirá, sem dúvida, concordarei, mas ninguém disse que se deveria começar ou encontrar igualdades extremas ou máximas. Talvez possamos chegar nelas.

181. As postulações crísticas afirmativas (suplantando a negatividade dos mandamentos precedentes) demonstra como a separação bem x mal já configura o fracasso da (verdadeira) bondade: se há "nós versus eles", acabou a humildade, o perdão, a benignidade, etc., todas as virtudes. Inexiste caridade com inimizade ("perdoa teu irmão antes de prestar tua oferta ao Pai" e tudo o mais). Cristo vem relegar toda "história de heróis" – assim denominemos o vício nas divisões (falsamente bem delimitadas) "bem versus mal" – ao passado arcaico e suprimido, realmente superado, estabelecendo o reino vindouro, o "reino doutro mundo", reino dos iguais.

182. A postulação de Leopardi nas páginas quatro mil cento e qualquer coisa do Zibaldone sobre o Mal me remete à pergunta do "por que há algo (vida, mundo, língua) em vez de nada?" como aplicada exatamente ao terceiro termo dos parêntesis dada a conjuntura atual: por que ainda há poesia em vez de silêncio?

Diário - 2018/03/03

179. Escreve-se no início do texto de hoje da Fausto mag: "Em 2018, comemoramos 190 anos do nascimento de Liev Tolstói.

Os grandes romances que escreveu – Guerra e Paz, Anna Kariênina e Ressurreição – não figuram entre as obras-primas da Literatura Universal apenas porque são histórias interessantíssimas, mas, principalmente, porque dizem sobre a natureza humana. Não a natureza do outro – ainda que possa vir a ser a natureza do outro –, mas a nossa.

Obras-primas da Literatura são então como espelhos. Ou melhor! Obras-primas da Literatura formam parte de nossa consciência."

Logo se vê que é uma escrita bem bosta, bem medíocre. Já começa numa confusão com hipocrisias como "natureza humana" (nossa? do outro!? delirantes!) e segue piorando pela incapacidade de ver a repetição feita em "espelho" e "consciência" – dá na mesma! O homo sapiens é tão mídia quanto qualquer outro vivente. É mesmo um dos maiores responsáveis pela proliferação das imagens! Quanta bobagem só para defender e congratular um morto. De outras terras!

P.S. eu poderia, talvez devesse mesmo, analisar o resto do texto, mas é intragável. Insuportável. Sem exagero. Não consegui ler até o fim. É horrendo, para dizer o mínimo. Abunda lugares-comuns. And it lacks brains.

Diário - 2018/03/02

171. Em tom de César Aira: Quem escreve tem uma sensibilidade mais filosófica, mais racional, mais consciente (digo assim por falta de termos melhores nesta manhã) comparado a quem desenha, por exemplo. Não digo consciente da ou na pieguice esquerdista, senão simplesmente esse pensamento capaz de se pensar. A imaginação visual pode ser abstrata ("não-figurativa", dizem os especialistas), a linguística jamais. Isso não é defeito ou motivo de choro, é só como as coisas são. Como as coisas se dão. A escrita moderna – chama(va)m escritura, poesia – tem disso de (se [meter a]) pensar. Oponhamos, pois oposições são muito modernas, a escrita a o escrito. É uma ideia interessante, só para evitarmos os termos de sempre – renovar as palavras é impedir à força a necrose (impedir a necrose à força?). A escrita é maleável, já apareceu em verso e prosa.
P.S. não é a alusão, nem a referência, tampouco a dificuldade, nem mesmo a forma(ta)ção, também não a invenção, ou a falta de sentido (ou seu excesso). É ainda outra coisa e claramente não a sei delinear, menos ainda definir.
P.P.S. talvez seja "encontrar uma língua"; mesmo isso parece insatisfatório, mas é preciso começar de algum lugar.
P.P.P.S. tem mais a ver com alquimia e ocultismo, hermetismo e esoterismo. Não é magia, estejamos atentos.

172. Odeio burocracia. Sinto-me nu (à força).

173. Um amigo começou a se perder como eu para os encantos da filosofia, está deixando sua poesia de lado (ele não era muito da prosa). Tenho medo disso. Quero dizer, parece-me um problema sério, um espírito do tempo, uma moda de época: "filosofia é legal porque o trabalho da ficção surge na criação de conceitos", tudo bem, mas ninguém está tão livre quanto estava na ficção, estão (estamos?) todos preocupados com (um)a realidade, com (um)a sociedade, etc., esse tipo de baboseira. Perdemos a última liberdade. Estamos nos alienando de nós mesmos. O que restará?

174. "À força" apareceu duas vezes, nas duas primeiras entradas de hoje, e agora é só oito da manhã. Não sei o que nos permeia, mas é aterrador.

175. Escreve-se por amor à literatura. Nada mais (nem menos).

176. Se é preciso come to terms com a mímese, façamos esse terrível trabalho: a arte não representa belamente, não deve criar imagens belas. (Quase) Ao contrário, deve imaginar justamente.

177. Literatura é devoção (total) à língua. "Qual língua?", perguntará o incrédulo. Não sabemos (ainda).

178. "Perto é outra coisa. Tuas fotos não te desenham nem um pouco.", disseram a ela.

Diário - 2018/03/01

164. Essa retomada do corpo, da performance, e afins, não passa de uma conjunção do desejo de um futuro que nos foi roubado pelo kapital e da saudade da presença, do evento, messianicamente definido e estimulado. Por um lado é falso, porque não teremos salvação se não a fizermos nós mesmos, não há "outro", magicamente diferente até os ossos, capaz de nos tirar da infinita devoração de Qi/Chi/Ki; por outro lado, é também falso, porque o projeto messiânico é o projeto de nossa devoração de Qi/Chi/Ki, de nossa subjugação e destruição, e isso é igual a humanismo, é igual a antropocentrismo, é igual a pós- e trans-humanismo.

165. Há coisas que sempre serão iguais. Simplesmente são assim, não mudar é sua mudança. Recusar-se. A terra, por exemplo. Outro exemplo? A poesia, essa sempre permanecerá a indefinição de si mesma. Verdadeiro não.

166. Como não existe "Eu absoluto", não existe "não-eu".

167. Outro mundo é sempre este mundo. Só muda como vivemos.

168. É preciso cortar. Não sei bem o que, mas é. Uma urgência de corte demanda um corte de urgência.

169. Encarei a tela branca desta entrada por quase dez minutos. Não sei o que escrever. Por que a escrita se nos esvai? O que há quando a musa se ausenta?

170. ∅

Diário - 2018/02/24

160. Talvez haja algo de inimitável entre uma arte e outra, duma para as outras. Classificatórias baseadas no espaço-tempo ou nos cinco sentidos são inúteis porque todas as artes entrarão nalgum momento, com suas respectivas potências em cada aspecto. Há aproximações e distâncias e é tudo uma questão de defesa, ou seja, não há verdade, é só retórica. Quem sabe a verdade seja retórica? "Ou a retórica seja verdade?", falso, porque a mentira é possível. Inverter a fórmula da verdade pela da mentira apenas porque esta última tem mais ocorrências e instâncias parece interessante, mas permanece insuficiente, especialmente quando se leva em conta a ética, coisa que muita gente já deixou de fazer faz tempo, daí o estado atual de coisas. Por quanto se queira, é impossível se livrar da verdade em última instância. O que é possível é refinar seu pensamento (sim, a ambiguidade do pronome é proposital e necessária) – eis a ficção, forma menos rude, menos rudimentar de conceber a verdade.

161. Entro no segundo ônibus, perdi o primeiro. Em ambos não há elevador. Uma garota sobre cadeira de rodas aguarda, visivelmente impaciente. Não me desperta compaixão, ou sofrimento, nada. É um vácuo. Não a vejo, não a ouço, não a toco, não a cheiro, não a saboreio, não a sinto, não a penso. Definitivamente não estou anestesiado, é ainda outra coisa, outro lugar, outro pensar, talvez algo impensado.

162. Pensar e pesar soam parecidos. Há algo aí.

163. Sensível é aquilo que está pensado já fora dos objetos e ainda não dentro dos sujeitos (não necessariamente humanos, sempre vale lembrar, um espelho, por exemplo, é o sujeito por excelência, arquetípico, do sensível visual). O tal "espírito objetivo" hegeliano não passa disso, duma recepção praticamente passiva dos sensíveis por parte do "espírito (do sujeito)".

Diário - 2018/02/24

156. Talvez haja algo de inimitável entre uma arte e outra, duma para as outras. Classificatórias baseadas no espaço-tempo ou nos cinco sentidos são inúteis porque todas as artes entrarão nalgum momento, com suas respectivas potências em cada aspecto. Há aproximações e distâncias e é tudo uma questão de defesa, ou seja, não há verdade, é só retórica. Quem sabe a verdade seja retórica? "Ou a retórica seja verdade?", falso, porque a mentira é possível. Inverter a fórmula da verdade pela da mentira apenas porque esta última tem mais ocorrências e instâncias parece interessante, mas permanece insuficiente, especialmente quando se leva em conta a ética, coisa que muita gente já deixou de fazer faz tempo, daí o estado atual de coisas. Por quanto se queira, é impossível se livrar da verdade em última instância. O que é possível é refinar seu pensamento (sim, a ambiguidade do pronome é proposital e necessária) – eis a ficção, forma menos rude, menos rudimentar de conceber a verdade.

157. Entro no segundo ônibus, perdi o primeiro. Em ambos não há elevador. Uma garota sobre cadeira de rodas aguarda, visivelmente impaciente. Não me desperta compaixão, ou sofrimento, nada. É um vácuo. Não a vejo, não a ouço, não a toco, não a cheiro, não a saboreio, não a sinto, não a penso. Definitivamente não estou anestesiado, é ainda outra coisa, outro lugar, outro pensar, talvez algo impensado.

158. Pensar e pesar soam parecidos. Há algo aí.

159. Sensível é aquilo que está pensado já fora dos objetos e ainda não dentro dos sujeitos (não necessariamente humanos, sempre vale lembrar, um espelho, por exemplo, é o sujeito por excelência, arquetípico, do sensível visual). O tal "espírito objetivo" hegeliano não passa disso, duma recepção praticamente passiva dos sensíveis por parte do "espírito (do sujeito)".

terça-feira, 27 de março de 2018

Paciência

versai.

Nimbo

Faço pedidos cadente(s) junto(s) à estrela.
Parto d(aqui).
Presa em sonhos, orando por escapes,
por enquanto lida com a travessura
de tantos pensamentos pela cabeça.
Dormindo tão profundamente, pensaram estar morto.
Coração batendo no foco.
Caindo das nuvens com(o) chumbo.
Caminhando no pesadelo
acordado.
Só queria demônios justos.
Viver uma vida
onde(?)
a paz não viesse com(o) ar noturno.
Os sonhos vêm aos travesseiros.
Sentir o luar janelar
relaxar e aliviar
esse estranho estresse entranhado.
Exilado externo entre estrelas exigindo existir extra(vagante) elemento extra(ordinário).
Somente no palco quando imerso;
ninguém percebe pois a máscara é viva.
Temer não durar
até a última noite
sonhando pela metade
até esgotar, extraviar, extinguir, e(liminar).
Esquecer com(o) respirar = asma.
Concordam: não é (dis)simulado,
(in)afetado;
seria fictício?
T(r)emo(r) – é viver sofrer?
Amo(r) = ter catorze numa bolha.
Cansaço de cansar, cansaço de cansado.
Languidesejo.
Lubri(cida[de)la].
Cansaço de acordar em dormir.
Olhos bem abertos de sonhar.
Palavrento.
Amórdio.
Es(forço).
Normanimalidade.
Insensinverno.
(In)clemente.
Não pode pedir mais, não pode pedir muito, não pode pedir. (nada)
Braços em derredor enlouquecem,
peitopresso
, carinhosamante.
Claramente seguro
pela vigília.
Medos quase passados.
Intragradável.
Dos astros, a queda
calamidadesastrexpansão.

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

sem boca sem fome sem boca sem fome sem boca sem

Boca sem fome. Fome sem boca. Desejo.

Há um fenômeno contemporâneo que quero explorar aqui, evocado em mim por essa boca, digo, por essa foto. Trata-se da sedução: quero crer ser uma malignidade, uma maldade por excelência. A sedução é uma sobreposição (uma simultaneidade: um odio, enemistad, rivalidad, competición, mas competição de que, meu Deus!? Falaremos disso logo) de ausências. "Sobreposição de ausências? Estás louco, homem!? Acaso endoideceste? Ora (direis) ouvir estrelas! Certo perdeste o senso!" Não, mes amis, je ne suis pas fou. O que se passa é que há uma boca ausente em seu lugar e uma fome ausente em seu lugar, duas ausências num só lugar (seria isso uma frase de promoção? Sintomático, a lógica vigente opera através da sedução [e de outros dispositivos, é óbvio] e também da fome). A boca se ausenta pelo escamoteamento (planejado) da animalidade constitutiva do homo sapiens, exatamente a operação que sinaliza (a tentativa d)o início do humano (a tentativa de eliminar o animal humano e instituir o humano puro, daí todo pós-humanismo e trans-humanismo não passam de humanismo elevado a qualquer potência maior e a ecologia é um dos terrenos privilegiados do não-humano, quer dizer, da real saída do humanismo, um dos últimos refúgios do [verdadeiro] pensamento). A fome se ausenta pela (constituição do e) servilismo ao desejo (pela antropofagia simbólica constitutiva da sexualidade [feminina? A 'gina enquanto boca devorando o falo] e da cópula→sintomaticamente o nome técnico dos 'verbos de ligação'→cópula, copuladores, não apenas ligadores [lembremos Lacan: il n'y a pas de rapport sexuel→"não há relação sexual" como se costuma traduzir, não há completude, completação, ligação, vinculação←gosto como -ação emerge vez e outra, pulsando incontinente], senão devoradores, sexuadores, são operadores de sexuação, a divisão, a separação, o split constitutivo de todo liame, a [in]cisão de/do um produzindo o múltiplo, o gesto deflagrador do pensamento, daí a emergência da[s] verdade[s], são bactérias, vírus linguísticos incômodos, mas como me dizia um amigo antropólogo: "o que fazer com os índios que não têm o verbo ser?", boa pergunta, não consigo sequer imaginar como eles imaginam, como eles pensam, mas devo pensar para chegar lá, à altura deles). Desse modo, a sedução é uma malignidade, uma crueldade por excelência: não é boca animal (caminho inevitável da excrescência, o outro do ânus e o outro, sabemos, sempre constitui o eu, evoca-o pelo avesso, neste caso quase literal) que tem fome de carne sangrenta, de talo vegetal crocante, ou de sucos frutíferos, apenas uma boca de enfeite, querendo comer apenas o que não pode, o que se lhe impede, o proibido, não proibido por lei e decreto, afinal, não se trata de devoração digestiva, empírica, literal, quer dizer, é literal porque é de littera, de letra, de signo, de símbolo, de sentido(s), de experiência, de vida, é devoração semantont(ic)ológica (semântico-existencial, semântico-Real). Daí a sedução (seducção? Ducere ad se? Ou ab se? Levar a si, ou afastar de si? Os dois, talvez? Ou nenhum?) ser um simultas: ela diverge a atenção pela produção de ódio, ou diverge ódio pela produção de atenção, não importa, importa saber ela ser feita para seduzir os não-padrão (ou não-padrões, tanto faz, non-standard também non-default). 'Duzi-los ab se, fora de si mesmos, de suas preocupações (relevantes) e ad se, a si mesma, em direção à sedução ela mesma, claro, no processo (dialético) o movimento se repete, ad se, para dentro deles de maneira ruim, improdutiva e ab se, para longe da sedução como ela de fato é, apenas para como ela quer ser vista, como ela se faz sentida, não quem ela é realmente. Eis um pensamento!

Animais domésticos; mundos crepusculares

Dois crepúsculos.

Animais domésticos vivem num mundo crepuscular: nem selvagens, tampouco humanos (nem mesmo nós, homo sapiens, somos), eles coabitam (conosco) uma existência turva, um espaço interessante→inter-esse(re): entre ser(es), interstício, entrestações→statio, posto, parada, stare, estar, ficar, manter-se, stand(still)still life: a vida para(lisa)da, a vida não-viva, a vida que se recusa a viver (segund'os ordenamentos do imperador). Essa vida imperiosa é anômica: rege-se a si mesma e nada mais nem mais ninguém. É exatamente por isso que pode se enredar a e com outras vidas. Se pensarmos bem, o animal doméstico, habitante do'mos, enclausurado, é o homo sapiens, pois só ele faz questão da casa e passa muito mal sem ela. Ele passa muito mal sem ela. Como não? Ela é onde ele quer estar. Acho isso mesmo. Comvicção. Nu e cru ele passa mal. Ela lhe é essencial. Ele, sem ela, não sabe pensar, não sabe viver, não sabe ser. Ele pode e até vive, porém muito mal. Muito mal é interessante. É possível viver muito e viver mal simultaneamente? É bom ver como simultâneo tem dentro de si uma simulação→ação simulada, dizem que simul é latim para "ao mesmo tempo", que vem de similis, "parecido, similar"→similar. Parecença, lar e tempo se confundem, coexistem e não podemos fazer muito mais que suportá-los assim, juntinhos. Contudo, parece-me isso fundamental, um dicionário etimológico espanhol me diz simultas ser também originário e significar: "'rivalidad', 'competición', y también 'odio', enemistad'." ora se não é interessantíssimo! A misologia vive! Mais, ela habita! Ela tem lar e ele é a simultaneidade! O concomitante é o odioso por excelência! Que lógos fantástico se esconde atrás disso? Ou à frente, vai saber... Quero crer que seja a incapacidade semantocerebral, ou semântico-cerebral para os que gostam do bem escrever (escrever bem não é escrever ficção←Arturo Carrero), de tomar dois sentidos juntos duma tacada só. Essa limitação psicometafisi(c)ológica é, mesmo se apenas parcialmente, superada ou transcendida como gostam os "filósofos", pela transcendência. Ou pela Ideia (forma?), como queria Platão (e como quer Badiou, tanto faz). Ou pela subjetividade como gostam os psicologizantes. Ou pelo Ser, para os heideggerianos afoitos. Os kantianos já têm a resposta na ponta da língua. Importante aqui é lidar com esse resultado conhecidos dos estudos em semântico cognitiv(ist)a (neuropsicossemântica?)→por que temos essa limitação cérebropessoal? Como lidamos com ela aqui e como lidaremos com ela a partir desse saber (até porque "a partir de agora" não quer dizer nada sobre o saber em questão)? Tentaremos superar? Se for possível superar, teremos como saber? E se não for, também teremos como saber que não é (o que é um não-saber)? Seja como for acompanhado→apanhado com, junto tudo muda de figura.  E temos duas figuras, portanto. E dois figurões! Veja como eles encaram a coisa (toda)! O doméstico, a casa, o lar, o habitáculo, a residência, a morada, o teto, o ambiente, o espaço, o lugar. Agora penso mesmo: é preciso pensar!

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Final de "Pequeno manual de inestética"

3) A FIDELIDADE

a) Negativamente, o poema esboça uma teoria completa da infidelidade. A sua forma mais imediata é a memória, a infidelidade narrativa ou histórica. Ser fiel a um acontecimento não quer nunca dizer que dele nos recordamos e significa sempre, em contrapartida, os usos que se fazem do seu nome. Mas, para além do perigo da memória, o poema expõe três figuras tentadoras, três formas de abdicar:

— A identificação com o lugar, ou figura do êxtase. Abandonando o nome supranumerário, essa figura abole o sujeito na permanência do lugar.
— A escolha do simulacro. Aceitando que o nome seja fictício, essa figura preenche o seu vazio com uma plenitude desejosa. Desde logo, o sujeito não é senão a onipotência ébria, em que o pleno e o vazio se confundem.
— A escola dum nome imemorial e único, que suplanta e esmaga a singularidade do acontecimento.

Digamos que o êxtase, a plenitude e o sagrado são as três tentações que, do interior dum surgimento fático, organizam a sua corrupção e denegação.

b) Positivamente, o poema estabelece a existência dum operador de fidelidade, que aqui é o binômio das hipóteses e da dúvida que as afeta. A partir do que, se compõe um trajeto aleatório, que explora sob o nome fixo toda a situação, experimenta, ultrapassa as tentações e termina no futuro anterior do sujeito em que esse trajeto se transformou. Os tipos de trajetos aqui tomados em consideração relevam, quanto à determinação do «eu» atormentado pelo nome «essas ninfas», do desejo amoroso e da produção poética.

Do desejo que se liga ao nome daquilo que desapareceu, depende que, revogado esse desejo, um sujeito seja urdido por essa verdade singular, que ele fez surgir sem o saber.