quinta-feira, 9 de maio de 2024

Anotações auxiliares a uma grande amiga em sua pergunta sobre um trecho de Heidegger

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O elemento distinto do pensamento metafísico, elemento que erige o fundamento para o ente, reside no fato de, partindo do que se presenta, representa a este em sua presença e assim o apresentar como fundado desde seu fundamento.

Martin Heidegger

Primeiro, modifiquemos a ordem, isso auxiliará: Partindo do que se presenta, o elemento distinto do pensamento metafísico reside no fato de representar ao ente em sua presença e assim o apresentar como fundado desde seu fundamento, esse elemento distintivo do pensamento metafísico erige o fundamento para o ente.

Comentemos.

Nessa época, o Heidegger já diferenciava filosofia (uma tarefa que chegou ao seu fim histórico) de pensamento (algo ainda por fazer), daí denominar "pensamento metafísico" ao impulso (filosófico) que percorre a história do pensamento. A filosofia ("pensamento metafísico") caracteriza-se pela busca de um ente especial e último que serviria de fundamento a todos os outros: água (para Tales de Mileto), o indivisível ou o átomo (para Demócrito e cia.), a ideia (para Platão), substância e forma (para Aristóteles), etc. Esse ente último e fundante preside sobre essa busca de maneira a desdiferenciar o ser e os entes, pois o ser estaria (1) presente em todos os entes e (2) seria sempre idêntico a si (autossimilar, selfsame). Por o ser estar sempre presente em todos os entes e aparecer assim como os entes aparecem, dar-se-ia ao conhecimento (expondo plenamente a fenomenalidade dos fenômenos).

Isso está contrário à proposta heideggeriana de que o aparecer dos entes gera uma basculação do ser, pois o próprio fato de aparecer, o aparecimento em si, desaparece para que a coisa aparecida apareça(-nos). Sei que "apresentar o ente como fundado desde seu fundamento" soa confuso, mas Heidegger avança, com essa afirmação, ao núcleo da questão: o aparecer nunca se dá plenamente, esconde algo ao ocorrer, fazendo com que a verdade (se) re-vele (esconda-se e exponha-se e esconda e exponha algo simultaneamente). Se há basculação, não pode haver presença constante, senão ausência ocasional.

domingo, 5 de maio de 2024

Anotações pessoais sobre escapismo a partir de uma discussão com um conhecido

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Acusou-se um conhecido meu de “chatice” por ele recusar elogiar arte de escape. Como se podem pensar os possíveis valores do escapismo?

Situar o ocorrido: acusação: “quem critica escapismo enfia política em tudo”.

Essa acusação sofre de um mal óbvio: não se pode escapar aos modos de convívio das interações humanas. Mesmo os isolados em cavernas e florestas vivem como humanos: trazem consigo a bagagem cultural (convencional) dessa maldição. Portanto, a acusação, tal qual formulada, diz pouco ou nada sobre a questão. O que se pode extrair da situação então? Reciclemos: o espírito da acusação expõe insatisfação com algo outro que não o acusado e sua atitude.

Estamos todos fartos da política institucional sob a qual vivemos — de acordo. Também estamos todos aprendendo a identificar as conexões que todas as coisas têm entre si e que nos revelam o mundo em sua complexidade real. Escapar da realidade circundante através de um artefato estético como um produto de entretenimento ou uma obra de arte traz repouso e sonho. Fantasiar, como se sabe, compõe o rol de práticas cruciais para sustentar a vida psíquica: sem expectativas, perde-se o sabor de alcançar o que quer que seja. Contudo, essa compreensão do escape não institui uma negação da política, mesmo da pequena política presente em todas as esferas do cotidiano, senão expõe como o escapismo encontra seu valor na relação concreta que estabelece com a vida rotineira. Compreender essa conexão importa para não se fugir da realidade maior que se impõe sobre esse cotidiano e essa vivência.

Todavia, quando o escapismo torna-se norma e régua para apreciação de artefatos estéticos, então se perde sua posição (sua eficácia em posicionar-nos distantes da melancolia e do fracasso cotidianos, sem nos desvincular inteiramente da apreensão desse cotidiano e das causas desse sofrimento). Estabelecer essa norma conduz ao problema da desresponsabilização de si.

Expliquemos: escapar sempre que possível implica jamais assumir a própria parcela na composição do sofrimento ubíquo a que todos estamos submetidos. “Como isso é possível?”, ouço em gritos. Simples: desvinculando-se da realidade (em) que se vive.

Anestesiar o próprio entendimento em cada oportunidade recusa compreender o próprio sofrimento (e o alheio também), impedindo apreender a situação maior e seus vínculos com os acontecimentos menores. Trata-se, não de fugir do humano (como os metidos em florestas e cavernas mencionados antes), senão de ser humano sem responsabilidades. Chama-se isso dependência (no pior sentido possível). Quem depende onera os circundantes com responsabilidade de cuidado. Certamente — isso deveria ser tão óbvio que não necessitasse esta afirmação — todos dependemos, mas, no ideal, de maneira não tão profunda que se comprometa a própria vida a cuidar dos outros (ou a vida dos outros a cuidar da nossa). Infantilização no sentido etário: regressão às possibilidades de vida do bebê, da primeira infância: dependência alheia e ausência de responsabilidades. Há mão do capitalismo nisso (quiçá um braço inteiro).