Tanto na vertente psicologizante – manifestações são arquétipos, inconsciências – quanto na vertente animista (poderíamos chamar de vitalista também, sobrenatural) – manifestações são entidades vivas, independentes – o que parece estar em jogo é um limite de linguagem e um experimentum linguae. A magia é, assim, a busca por uma linguagem-fora-da-linguagem, uma extra-língua, um fora-da-língua-que-é-dito, ou, pelo menos, que-se-tenta-dizer, que-se-tenta-fazer-dizer, que-tenta-tornar-(se)-dito.
Parece um enfrentamento quase desesperado contra o vazio de sentido do mero existir. Tentar tapar o buraco do Real é o processo de tentar Simbolizá-Lo, essa é uma tentativa claramente artística – apenas distinta da arte (realmente) moderna, a qual expõe o vazio fundamental. Daí as produções mágicas serem sempre artísticas: grimórios, por exemplo, são livros de artista: imagem e letra, desenho da língua e da não-língua, curvas, manchas de tinta; invenção de alfabetos, nomes e línguas; diagramas com palavras, entre outros. Mesmo no desenho há presença linguística de uma forma ou outra. Essa obsessão linguística aponta uma repressão do indizível enquanto insuportável, o inominável enquanto impossível de lidar – exatamente o tema da poesia (a)propria(da)mente moderna.
Por que, contudo, linguística? Por que não obsessão visual ou tátil ou outra coisa? Em certa medida, quero propor que se trata de uma insuficiência, ou percepção de insuficiência, da língua pública. A língua pública é a língua natural adquirida na ou desde a infância, simples assim. É com ela que se refere a tudo a que se refere, tendo suas óbvias insuficiências para o privado/interno/interior/dentro e para o Fora/Real/Externo. A produção da magia é, então, pelo menos em alguma medida, a produção de uma língua privada. Isso cria uma identificação coletiva limitada, separando um subgrupo dentro do supergrupo e criando, portanto, dois subgrupos de uma só vez: esotérico e exotérico, iniciados e não-iniciados – uma experiência não-linguística do Fora que descansa sobre uma base linguística, sobre uma experiência (agora forjada) linguística.
E, insisto, por que língua e não outra coisa? Porque a língua é (ou pelo menos comporta) essa existência absolutamente inexistente, essa pessoalidade impessoal – daí a constante referência a entidades com essas características (pessoalidade impessoal, existência inexistente, poderíamos chamar também espectralidade, pós-objet(u)alidade, in-subjetividade ou a-subjetividade), a hipóstase dessas entidades mesmo. A língua porque ela é um ser que não é, um não-ser que é. Essa posição crepuscular da linguagem, nebulosa, indefinida, é privilegiada para essa empreitada, pois ela é público-privada, denomina o interior e o exterior simultaneamente (com os limites já conhecidos). Essa ambivalência é também a ambivalência das equivalências, dos simbolismos, "abaixo é tal qual acima" ("assim na terra como no Céu", "as above so below", quaisquer outras similares), pois a língua é a mesma para dentro e para fora. Os limites produzidos por isso geram a face do Real, a fronte do Externo, o rosto do Fora.
A distância fundante da divisão esotérico-exotérico, iniciado e não-iniciado, além de firmar a língua própria, a língua privada, além de instituir os dois subgrupos dentro do supergrupo, institui o grande tema dos mistérios: a mudança e a busca do Novo (homem, mundo, vigor, sopro, alguns adicionam ainda outros termos). O Novo mascara o Real, uma sombra para tampar o corte do Fora, para tornar suportável os pequenos clarões obscuros do Externo. Essa dimensão insuportável é simultaneamente Externa e interna, afinal, é a-Simbólica, in-Simbolizável – e esse in- quer dizer português e inglês simultaneamente, quer dizer que é parte constituinte da Simbolização além da óbvia função de negação.
"É a diferença entre nirvikalpa-samadhi (dissolução da alma no brahman) e keivalya-samadhi (onde se mantém a individualidade da alma)..."
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