Arte é contato com o inumano que habita em todos nós: seja o animalesco e abjeto infra-humano — como em Lautréamont, Clive Barker, Artaud, Pierre Guyotat —, seja o angelical e santificado sobre-humano — como no salmista bíblico, em Rōdhakī, Hāfez ou Petrarca. Estilo, portanto, não é uma tal ou qual forma da expressão individual, externalização da alma, exposição de uma suposta interioridade, mas a construção de uma forma justa (justa e correta, como no Direito, justa e adequada, como na Moda). Essa forma é justa porque é homóloga ao mundo, segue a mesma lógica do mundo (homo-logos): tão obscura, densa e impenetrável quanto a matéria do dia. O estilo, portanto, é a maneira que se encontrou para fazer com que as coisas — as ideias, os seres, os momentos — durem no tempo, o que faz com que a linguagem também endureça para permitir essa duração. Mostra-se, assim, como a chance de um leitor colocar seu próprio tempo transversalmente no tempo cronometrado do trabalho e da rotina.
Por isso me surpreende que vocês leiam sempre as mesmas obras feitas de linguagens apaziguadas, bem-pensantes e bem-falantes, retoricamente polidas dos séculos ⅩⅧ e ⅩⅨ. Certamente esse último foi o século da consolidação do que chamamos e entendemos por literatura, mas isso não significa que possamos reduzi-la apenas a suas manifestações melhor domesticadas. Em palavras muito diretas: não podemos ler sempre os mesmos textos e autores que todos já leram e que absorvemos quase por osmose social. Se a função deste grupo de leitura é dar a conhecer, não pensemos que isso se reduz apenas a travar contato com as obras, mas também pensemos em entendê-las, conhecê-las, gerar conhecimento a partir da leitura da literatura, essa atitude quase herética para o mundo atual, no qual aquilo que não entretém não deve figurar no rol das artes, mas deve ser relegado ao âmbito científico. Pelo contrário: a literatura faz conhecer e gera conhecimento, nem que seja o mínimo grão de conhecimento existencial do humano.
Isso só poderá ser visto nas obras desafiadoras dos séculos ⅩⅨ e ⅩⅩ, nesse grande drama da linguagem que se convencionou chamar estilo. O estilo não é redutível ao belo fraseado, ao vocabulário preciosista, à rima que demonstra bom comportamento — o cão desobediente é tão cão quanto o de casa e talvez nos revele mais da natureza canina que seu irmão domesticado e obediente. Porque o estilo responde à angústia e à vergonha de se ficar sem palavras de tanto se utilizar a linguagem de todos que, por só deixar falar o que é comum a todos, já não é mais linguagem de ninguém e não faz do mundo uma imagem minimamente verdadeira (honesta, sincera, justa, adequada). O estilo é uma resposta com sabor de pergunta: como falar, com quais palavras, de qual modo, quando todo falar aprendido e internalizado parece falso e inadequado? O escritor, autor, produtor, não de conteúdo, mas de uma escrita se vê nessa luta por inventar uma linguagem.
Lendo sempre os mesmos autores, chegaremos apenas até uma nação de dois ou três autores repetidos à exaustão. Entretanto, tendo em vista a enxurrada de obras traduzidas para o português e seu consumo imenso, suas vendas muito superiores a títulos nacionais, estamos a caminho de uma situação pior: perderemos até os grandes nomes de sempre e jazeremos soterrados sob a literatura lixo — a lixeratura —, essa maçaroca de entretenimento feito com palavras, que vende muito e lota os vídeos-resenhas de booktubers e bookstagrammers (e o fato de serem resenhas em vídeo já deveria denunciar quão longe estamos do mundo da palavra escrita que engendrou a literatura originalmente). Entendam-me bem: gosto de literatura erótica, ficção científica, investigação policialesca, mas também entendo o valor do Poundemonium de Julian Ríos, do moinho vermelho de Jacobo Fijman, da Schneepart de Paul Celan, do Finnegans Wake de Joyce, dos narradores incertos de Beckett, do copo de cólera de Raduan Nassar, da Voz submersa de Salim Miguel, do Quadrilátero de Adolfo Boos Jr., do rei inclinado de Herta Müller, dos diários de Carolina Maria de Jesus (que não devia nada a Lispector, ao contrário da comparação que faziam mais cedo, basta ver os dois volumes de Casa de alvenaria).
Inventar uma linguagem não quer dizer apenas brincar inconsequentemente com morfemas, fonemas e ordens sintáticas. Apesar que até mesmo isso está em baixa hoje em dia, já não produzimos in terra brasilis grandes brincalhões desgramáticos como Manoel de Barros (na poesia) e Salim Miguel (na prosa). Temos de baixar a cabeça para arados tortos fingindo que nos satisfazem com sua antropologia de 5ª série e seu realismo sociológico de 1930 que até mesmo Graciliano Ramos já superara em S. Bernardo e, mais sabidamente, em Vidas secas.
Arte, como dizia, é contato com o Mal (maiúsculo) que nos habita e que sabemos habitar em todos nós, a impureza de fundo que nos previne de todo delírio de pureza. Esse contato não vem sob a forma de uma cura, um remédio para nossa consciência culpada, senão como a forma comunicável dessa consciência, o ato de levar a sério e até às últimas consequências esse saber. Por isso, a literatura não é uma cura, mas um tratamento, mais psicanálise que medicina: não pode retirar de nós esse Mal inumano, pode apenas nos ajudar a admiti-lo e a ter palavras para dizê-lo, encontrá-lo, identificá-lo e conhecê-lo.
O estilo é essa crispação, essa inquietação, esse toque com o menos-que-humano — ou o mais-que-humano, porque também os anjos apareciam em visões medonhas —, essa dureza, essa dificuldade, seja devido ao excesso, como nas línguas babélicas do último Joyce e de Julian Ríos, no enciclopedismo sufocante de Joseph Heller e Pynchon, seja devido à falta quase silenciosa, como nas figuras cristalizadas de Mallarmé, nas repetições fracassadas de Beckett, nas reticências de Ungaretti ou no silêncio em que caem a poesia final de Pizarnik e de Celan, ou até nas figuras absurdas de palavra e gesto de Kafka, Ionesco, Novarina. Portanto, o estilo não está em função do entretenimento, mas da formulação justa e adequada de uma linguagem capaz de dizer a verdade existencial, a angústia e a alegria, em suas devidas medidas, não um verniz cosmético para tolerar o intolerável, senão o contrário, a própria carne viva do poeta transformada em matéria transmissível, experiência vicária que se pode fazer dessa exposição.
O estilo é também isso, esse tremor subterrâneo (ou essa luz descida dos céus) que trabalha a linguagem rumo a algo simultaneamente aquém e além da expressão, porque um bom conto ou um grande romance não importam devido à morte real (ou imaginada) de um familiar do autor, mas apenas devido à morte que se pode vivenciar através da leitura desse texto. Como dizia: algo aquém da expressão: a literatura nos concerne a todos, toca-nos, alcança-nos e, se conseguimos nos identificar com os personagens e os narradores, é apenas porque traz, em sua linguagem, caracteres, marcas produtoras de uma personalidade, de uma psique, de uma subjetividade; também algo além da expressão: aquele mundo de interações entre personagens, sentimentos, associações entre acontecimentos, entre palavras, entre acontecimentos e palavras que não conseguimos resumir não importa quanto tentemos, aquela inteligência narrativa que parece nos exceder em cada livro, porque a língua traz, escondido em seu ventre, a sabedoria acumulada de todos que já falaram-na e escreveram-na, como um grande acervo ou arquivo de toda a humanidade que habitou essa língua.
Dessa maneira, compreende-se que a arte é um espaço público no sentido fundamental da palavra: um espaço em que todos podem adentrar, em que todos podem colaborar e em que todos são iguais no fato de serem diferentes entre si. Por isso, por ser radicalmente pública, arte é linguagem, pois as línguas humanas (e todas as outras linguagens) fundamentam-se nessa participação geral e aberta, irrestrita. Linguagem (e a arte compondo um subgrupo de linguagens), portanto, traz um pensamento outro que não seja o pensamento calculativo-representacional da mentalidade tecno-centrada (seja do operador de Direito ou do operador de uma retroescavadeira, ambos reduzidos a uma posição pré-pensante), a linguagem — a arte — permanece irredutível a essa lógica burocrática e abre a porta para o não-idêntico. Nisso, talvez, a arte faça isso que popularmente se chama "humanização" e que vocês têm enfatizado tanto como função da arte, mas que merece ainda algum outro nome melhor (mais justo, mais adequado, mais correto) que esse. Talvez a desumanização ou a inumanização do humano, pois a linguagem é o lugar em que tudo se reúne (e se dispersa), em que a atenção humana lança-se ao mundo e tenta trazê-lo de volta no mesmo gesto em que o afasta ao nomeá-lo. O mundo é dado (e retirado) pela língua.
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