quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Geografia sentimental: ensaio sobre lirismo e memória

Últimas especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

Dois apaixonados não se podem encontrar publicamente por algum preconceito social vigente. Cruzam-se, combinados de antemão, porém fingindo gratuidade, pelos trens da cidade, tomando aqueles de trajeto mais longo para demorarem-se na presença e atenção um do outro. A ideia, caso pareça romântica demais para a vida concreta fora dos cinemas, provém daí mesmo: da rudeza dos dias. Em versos assemelhados a sopros de antigas tradições líricas, um mundo de amores e saudades ganha forma, moldado pela mesma força poética que inspirava Florbela Espanca a transformar o íntimo em experiência digna de filme. Todavia, aqui, os versos não se assumem confissão, mesmo quando o eu lírico diz:

entre um amor e um lar estendo as mãos
lavadas nas memórias de um ser frágil
no reino dos olhares imortais
procurando seu rosto e uma canção

Amor, cotidiano, saudade e singeleza — forças orientadoras da escrita de um poeta que, saído de Camanducaia, Minas Gerais, encontrou em Florianópolis, Santa Catarina, o assento para construir um mapa afetivo com sua poesia. Esse mapa conduz-nos por memórias, morros e vozes que parecem brotar de tempos e terras esquecidos, sempre com sofisticação em diálogo com a tradição, sem se deixar arrastar por essa, sempre com pena nova.

Mapa dos afetos: geografia sentimental: cotidiano, memória, saudade

Os versos de Marcos Oliveira Jr. cartografam onde saudade, cotidiano e amor cruzam-se, em linhas da superfície emocional ao subterrâneo do sentido. Em “as forças que fazem o dia”, celebra-se a presença e a partilha da intimidade característica do amor como força vital promovedora de luz e calor “mais que o sol”, com intensidade capaz de superar o próprio escopo da história:

sua presença viva mais imensa
que a história de tudo que foi visto,

mais que o sol, irradia em nós a fé
em outros dias grandes como hoje,
bonitos como as horas de saudades

Esse lirismo emoldura os instantes na contemplação do eterno no efêmero. Os poemas de Marcos Oliveira Jr. erigem cenários em que a singeleza e a intensidade coexistem, como em “manto”, poema “nessas paragens do sonho” em que “os vossos abraços de sono” são tanto refúgio quanto revelação, com um neologismo ao final “vindo pras aulas da infância”:

e, só aqui, nesse abraço noturno,
caibo mais forte e mais aberto, sem medo do céu

Nesse mapa afetivo, os temas fluem naturalmente entre pequenos gestos rotineiros e densas saudades: stillebentraduz uma cena ordinária — roupa no varal, chuva aproximando-se — em uma narrativa de pulsação quase mística, de modo que a própria chuva caracteriza-se como “água solar”, dessas imagens tão sensíveis que se fixam na memória à revelia da vontade da gente:

uma porta alta e aberta está à espera
de algum impulso que a toque como um leme

[…]

uma entrada ruidosa vigiando
o corpo recolhendo a roupa limpa
que a chuva vem manchando no quintal

A obra do poeta em questão também se destaca pela maneira de harmonizar essas imagens de rotina com reflexões existenciais: em o traje comum do poeta, canta-se o fazer poético costurando memórias, inspirações e paisagens internas (afeitas às inscapes de Gerard Manley Hopkins), louvando-se o espaço infinito da poesia em sustentar a memória e servir de costura do tempo (nos primeiros dois versos), até o limite do diálogo com a tradição (sétimo verso) e sua culminação nas poderosas e inolvidáveis imagens dos dois dísticos finais (uma “terra/irrigada da luz boa dos pirilampos” e “[…] os vulcões/submersos nas montanhas da saudade”):

por dentro sobra espaço pra conter
os amores passados em seu nome

leve como essa capa atada a peles
de derrotadas feras de impecável
beleza e justa sorte, preparadas
pro dia do casamento com sua musa

e brilham como o sol mal de Faetonte
os broches de marfim com os brasões
enraizando as pegadas numa terra
irrigada da luz boa dos pirilampos

Essa geografia sentimental compõe cenário, não tanto físico quanto espiritual (com o mesmo vigor da poesia ortônima de Fernando Pessoa em que se equaliza ambiente externo e interioridade subjetiva). Essa geografia constitui convite para o leitor perder-se em um espaço no qual se tratam afetos com delicadeza, mas também se respeita seu digno senso de urgência.

Tradição, técnica e força estética: lirismo, diálogo e artesania poética

O rigor técnico da poesia de Marcos Oliveira Jr. revela a paciência do artesão: seus versos forjam-se sob o senso de medida que equilibra emoção e técnica, oferecendo ao leitor lirismo elaborado, sem desperdiçar uma gota de vitalidade espontânea. Em poemas como os cristais de Morfeu, esse diálogo com a tradição poética e mitológica greco-latina expõe-se:

Os cristais de Morfeu
eu costumo dizer
‘inda vão ser os seus

meu amor mas você
quase não acredita
e me abraça pra ver

se essa pedra bendita
se parece com febre
se é promessa esquisita

e eu percebo o que cobre
a sua roupa bonita
e acredito que é nobre

esse evento que evita
os cuidados que temes
se amor que duvida

O imaginário onírico de Morfeu, tão caro à tradição clássica, repagina-se com sensibilidade contemporânea, transportando o mito à intimidade do convívio de casal; ecoa a elevação do íntimo ao universal que Florbela Espanca praticava, mas com uma diferença: enquanto Florbela resgata o pathos trágico do amor, Marcos sugere uma fusão delicada entre o simbólico e o cotidiano. Esse gesto de fusão também ocorre em cartão-postal, poema em que memória e matéria do espaço conjugam-se singularmente “no tempo de criança”:

A banca desse povoado não
possui jornais, nem oferece livros;
o que se vê bastante são as terras,
em tudo como os mapas que decifro

nos dias santos, recordando o rosto
de minha vó multiplicando a carne
de um porco assado lá no chão da roça
que a gente ia no tempo de criança.

Os bancos postos nas calçadas são
comuns aqui no povoado; soube
que é assim porque você jurou
voltar num barco cheio de peixe bom.

A descrição do povoado transborda senso de pertencimento, enquanto constrói um arquivo sentimental, no qual promessas e lembranças moldam os versos, ditando seus movimentos conforme a recordação (e essa deixa-se afetar pelo particular impulso da poesia). Como perfuração no tecido cotidiano, o “barco cheio de peixe bom” move o poema e revela quanto de extraordinário enraíza-se no comum.

Impressiona, na obra do poeta, como os versos alçam-se à densidade permanecendo fluidos, rasgam-se intensos, todavia leves. Essa tensão criativa nota-se especialmente em Foram ciúmes do tempo que te acolhe, poema que encapsula o turbilhão emocional do convívio íntimo com suas peculiares complicações, num inventário íntimo desse sentimento tido por feio, mas sentido por todos nós, os ciúmes:

Foram ciúmes do tempo que te acolhe;
das palavras que usas pra encantar
a todos; das canções sem fim de tua
memória; dos cabelos que se prendem
em teus lábios… cabelos que se envolvem
no teu colo; dos olhos de quem vê
os teus iluminando sempre o mundo
com o amor que te dá tuas ideias;
das tuas mãos que engendram a verdade
nas entranhas da Vida; das guitarras
que te excitam, dos drinques que te arrepiam,
dos cigarros que tu desejas ter;
dos lápis que seguras entre tuas
falanges, dos papeis que não são minha
pele; todas as vezes que esperas
por isso, ela ou ele; do café
que te aquece; dos mapas que tu segues
[…]

Cada objeto, gesto e situação enumerados com precisão obsessiva, como se o poeta tentasse fixar no tempo o que a vida insiste em dissolver, lutando em vão, resignado, jamais desistente, contra o efêmero.

Por fim, em poema, o poeta Marcos Oliveira Jr. encarna a metapoesia em uma inovação significativa: de forma testamentária, retribuindo à arte seu legado que transcende o corpo físico através de suas mazelas (vividas ou imaginadas):

vos nego e integro-me por vós ao tempo fora da frase
à prosa só ruído e sem rosa
ao espaço longe da oração
à rima da roça de nossa nação

vos legarei a minha pena e sobre vosso leito encontrareis isto escrito ou imaginado

respondereis a mim num aceno bonito de ver

vós estareis sabendo e eu estarei de chapéu
vós estareis me vendo e eu vos darei o que é meu
vós estareis lendo e eu vos trarei comigo pra comer
vós comereis bem e eu vos servirei a fome
vós me fareis dócil e eu vos farei conforme
vós sabereis do mundo e eu vos direi do meu roçado
vós sereis tudo a meus bichos e eu vos verei sorrindo
vós perdereis o caminho e eu vos morderei o mindinho
vós vos descobrireis capitalista e eu vos deixarei minha única mão limpa
vós amareis minha roça a outra mão bruta e as ferramentas que uso e eu vos levarei ao celeiro
[…]

Entre a vida e o trocadilho, nas sentenças mais abstratas extraídas das ações concretas e simples da vida prática, o “poema” encapsula a ambição da obra do poeta: ser, além de labuta interna com a linguagem (sempre herdada de um mundo que não criamos), feito perene ressoando através dos tempos.

Síntese conclusiva

A lírica de Marcos Oliveira Jr. resiste às dicotomias usuais entre efêmero e eterno, singular e universal, ordinário e sublime; em vez de resolver essas tensões, seus poemas encarnam-nas, produzindo um gesto que se desdobra sobre si, desafiando a linearidade do tempo com as ondas da memória e o confinamento do espaço com as perturbações da viagem. Dessa maneira, o poema ultrapassa seu estatuto de construção estética, singularizando-se em um acontecimento que, no sentido de Heidegger, desvela e funda mundos.

Seus versos, enraizados na experiência cotidiana, transcendem-na mediante uma sensibilidade que desestabiliza os limites da linguagem comum. Em casos como os cristais de Morfeu, o poeta inscreve-se na longa tradição da lírica ocidental, dialogando com mitos greco-latinos enquanto os reconfigura pela intimidade dos afetos (vividos ou fingidos, como ensinava Fernando Pessoa). Esse diálogo transforma o texto em um campo de forças, no qual rememoração e mito colidem e reconstroem-se rumo a novas ordens.

Mais do que representar, cada verso não apenas diz, como também retém, desvia e repete significações em movimento incessante. Em Foram ciúmes do tempo que te acolhe, por exemplo, a construção enumerativa excede mera catalogação, antes, funciona como estratégia de fixação — tentativa de aprisionar aquilo que é, por natureza, inapreensível. Essa obsessão pela captura do fugidio faz do gesto poético esforço de cristalizar o instante sem possuí-lo de fato.

A geografia sentimental emergente de seus poemas é cartográfica, ética e estética — em poema, o texto dobra-se sobre si, refletindo sobre o próprio fazer poético, porém, não de maneira explícita e entregue, senão por usos inesperados do cotidiano e sutilezas linguísticas:

vos nego e integro-me por vós ao tempo fora da frase
à prosa só ruído e sem rosa
ao espaço longe da oração
à rima da roça de nossa nação

O poeta inscreve a criação lírica como tensão entre singular e múltiplo, ruído e silêncio — fora e dentro. Tal metapoesia é não apenas um comentário sobre o estatuto do poema, mas também um ato de resistência contra a banalidade contemporânea. Como diria Adorno, a arte, para ser verdadeira, deve ser irreconciliável e, nesse sentido, a poesia de Marcos Oliveira Jr. não apenas se recusa a reconciliar-se com os clichês do mundo, como também insiste em sua própria alteridade radical, aceitando a longa linhagem do amor, porém mantendo-se irredutível aos clichês que a caracterizam e saturam no imaginário coletivo.

Só se pode entender a poesia em relação à vida. Muita vida brota dos versos do camanducaiense. Refiro-me à vida vivida, evidentemente, pois a lírica requer essa, seja confessada ou simulada, como também me refiro à vida do intelecto, essa espécie de música sem som executada pelo deslocamento dos conceitos, das percepções, das maneiras de descrever e narrar os acontecimentos, o movimento ondeante da memória e sua enviesada recuperação. Há, sim, harmonia cognitiva no seu versejar. Convida-nos a reorganizar nosso sentir, como uma educação da sensibilidade, resultado sempre da poesia forte, a qual se torna nova medida do vivenciado, pois lhe dá verbo, enunciado, maneira de dizê-lo, assim, transmiti-lo adiante, enriquecendo-nos nisso, como um artefato estético que transcende a história de sua própria constituição, sem exigir ser destrinchado por categorias de análise formal estabelecidas de antemão, sem recorrer tampouco ao preciosismo linguístico que esperaria da poesia um léxico e uma sintaxe “poeticamente puros”, se precisamos nomear essa ânsia. Nada disso. Responde a tendências sociais e históricas, como também biográficas, mantendo sempre a qualidade estética em primeiro lugar. Se não nos pode ensinar a viver, pois não se propõe didática, ainda assim, mede a vida com escansões mais que verbais, segmentando o fluxo das vivências por ritmos abstratos, produto da sonoridade e, mais ainda, das relações entre as ideias e os fatos. Arte intelectiva e espiritual de fato.

A lírica aqui comentada afirma, com força (discreta — o sobressalto nasce da atenção leitora, não de letras garrafais gritando nos olhos ouvintes do leitor), o valor da poesia hoje: não fuga do presente, senão forma de intensificá-lo, de habitar o tempo com uma densidade de palavras homóloga à maçaroca verbal que se nos impõem as mídias e as agruras do mundo do trabalho. Como disse Blanchot, o poema não é a ausência do mundo; é sua presença mais fiel. E é exatamente isso que os poemas de Marcos Oliveira Jr. oferecem: fidelidade à experiência, ao instante, ao outro — tudo, enfim, que resiste à captura e à explicação total.

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