Sei que
prometi a muitos amigos que comporia logo, mas tenho perdido o interesse na
escrita devido às muitas leituras que propus a mim mesmo durante estas
abençoadas e bem amadas férias. Por concluí-las me vejo sem tempo – e sem
aquele ardor – da continuada produção literária. Cá, porém, temos o fruto de
uma passada de roupa ouvindo música. Fruto parcial, talvez inteiro, inacabado,
de toda forma, um rascunho do que um dia virá a ser este enredo intitulado Vivendo Insana Libido (ou como bem
observou um grande amigo: “que bela sigla forma o título, não?”). Vamos à
narrativa.
Vivendo
Insana Libido
Arturo é o
nome daquele moço ali. Cabelos castanhos bagunçados, camisa de botões branca, desabotoada
nos dois primeiros, exibindo a corrente dourada, honrosamente pendurada no
pescoço, com o sobrenome gravado em letras grandes. No pulso direito vive o
relógio de ouro branco, pontualmente marcado com cinco de atraso, para que seu
dono sempre seja o primeiro, afinal, sente-se como o primeiro. Pele mais clara
que as moças com quem fala, é tido em boa conta por todos, é o que parece a
quem olha. Tem o corpo levemente definido, não é o maior fã de esportes ou
musculação, prefere viver à própria maneira, apreciando um bom charuto, como
faz agora, ou bebendo um uísque bem forte, com pouco gelo.
Encostado em
seu Corvette azul escuro, sente-se orgulhoso
do dinheiro. Orgulhoso de si mesmo, como um campeão deve se sentir, pensa,
afinal, foi campeão nos negócios. Estão, ele e as moças, conversando na frente
do Larry’s House, uma discoteca muito
boa, devo dizer. Muito famosa por sua música de ponta, sempre atual, além das
batatas fritas com queijo derretido aos dançarinos esfomeados. A quem prefere
os corredores que levam aos banheiros, a melhor cocaína está lá, pronta para
ser comprada e cheirada. Tudo isso – é claro – só acontece à noite, porque é à
noite que tudo acontece.
Jogando seu
charuto ao chão e pisando-o, Arturo finaliza a conversa com as bonitas morenas
e se vai, guiando seu carrão por aí, apreciando o ronco e a potência, a
velocidade e o vento no rosto, fresca brisa noturna de verão. Não longe do Larry’s, no caminho de Arturo, há um
circo. Nesse circo uma moça muito formosa conta seu dinheiro. Quantas vezes já contara?
Finalmente algum dinheiro! – comemorava. Arturo também contava seu dinheiro
muitas vezes, não agora, sobretudo porque dirigia e ouvia mais um hit no seu toca-fitas, pisando forte
para acelerar mais e mais, contrabaixo e motor misturados num só ritmo.
Maria é a esbelta circense do dinheiro. A frágil dama protegida pelo domador, a equilibrista magnífica da corda bamba, a bailarina impetuosa e destemida. Quando começara lá? Já não lembrava. Desde que se lembra, a infância era um borrão, uma névoa só onde não se pode ver nem os próprios pés. Não se importava em saber, o circo poderia ser melhor que pareceria a muitos. Apesar do dinheiro quase sempre baixo, eram todos muito alegres e respeitosos, ninguém parecia maior que ninguém, exceto pela estatura fisiológica. É claro que sonhava dançar sob as luzes do teatro, ouvir as mil palmas, ser toda ela críticas artísticas em jornais famosos, sentir o perfume do marido na mansão e correr a beijá-lo, devolver-lhe o dinheiro investido nas apresentações com seu carinho e seu corpo sensual. Ela sabia bem, era caliente, era ardente, era mulher de verdade. Pois estavam contados os trocados e os sonhos postos na carteira. Decidida estava: badalaria em alguma boa discoteca, para sair um pouco do padrão, dançar algo diferente, beber algo bem forte e se divertir muito. Mesmo o trabalho divertido se torna estressante depois de algum tempo.
Maria é a esbelta circense do dinheiro. A frágil dama protegida pelo domador, a equilibrista magnífica da corda bamba, a bailarina impetuosa e destemida. Quando começara lá? Já não lembrava. Desde que se lembra, a infância era um borrão, uma névoa só onde não se pode ver nem os próprios pés. Não se importava em saber, o circo poderia ser melhor que pareceria a muitos. Apesar do dinheiro quase sempre baixo, eram todos muito alegres e respeitosos, ninguém parecia maior que ninguém, exceto pela estatura fisiológica. É claro que sonhava dançar sob as luzes do teatro, ouvir as mil palmas, ser toda ela críticas artísticas em jornais famosos, sentir o perfume do marido na mansão e correr a beijá-lo, devolver-lhe o dinheiro investido nas apresentações com seu carinho e seu corpo sensual. Ela sabia bem, era caliente, era ardente, era mulher de verdade. Pois estavam contados os trocados e os sonhos postos na carteira. Decidida estava: badalaria em alguma boa discoteca, para sair um pouco do padrão, dançar algo diferente, beber algo bem forte e se divertir muito. Mesmo o trabalho divertido se torna estressante depois de algum tempo.
É noite de
segunda-feira, ainda são oito e meia, já se veem pernas entrando no Larry’s House, sedentas pelo ritmo e
pelo groove, louquinhas para dançar
até suarem toda a água de seus corpos. Pernas torneadas e acostumadas à dança
entram também cedo, são as pernas de Maria. Não dançou assim que entrou, nem se
deveria, seria ruim, estava faminta e beber de barriga vazia nunca foi boa
ideia. Sentou-se numa das mesas do segundo andar, após subir as escadas
aveludadas, e pediu as lendárias batatas, além de uma cerveja irlandesa. Pediu
para beber no gargalo da garrafa mesmo, lera em algum jornal que agora as
garrafas eram esterilizadas antes do reciclo, por isso não temia matar a sede e
o desejo num só gole.
Não comeu
tudo sozinha, seria um desastre, sentir-se-ia pesada demais para dançar, talvez
enjoasse. Henrique, loiro, olhos verdes, corpo bastante forte, não definido,
responsável pelo transporte e montagem do circo a acompanhava. Secretamente –
portanto ela não sabia – ele lha tinha tão forte afeto que a poderia beijar a
qualquer momento, mas, lembremos, secretamente. Na superfície, apenas um cara
jovem, forte, bom de piadas e tiradas, conversador e leitor de romances nas
horas vagas, todos comprados usados ou doados, é claro.
Enquanto
Henrique apreciava sua cerveja, não irlandesa, mas mexicana, ela lhe disse, com
licença, preciso ir, quero muito dançar e sabe que adoro sua companhia, mas um
espírito livre precisa voar, ao que ele sorriu e consentiu com a cabeça, pensou
consigo, que mal havia? e a deixou partir à pista de dança, não cheia – jamais uma
discoteca encheria, não era do feitio das discotecas se deixar encher, mesmo
por causa dos corredores que levavam aos banheiros – e ficou sentado, bebendo
devagar e sentindo o corpo se guiar pelo coral feminino que dominava as vozes
da canção, sentindo os breves ataques dos sopros metálicos acentuarem as
sílabas tônicas das palavras da letra.
Ah! Como
era bom vê-la dançar fora das sapatilhas! Como era leve e desenvolto seu corpo,
seus movimentos eram quase líquidos. Deliciava-o só vê-la dançar, mesmo que
sonhasse em estar ali, ao lado dela, sentindo o amor enchendo seus pulmões e
olhos e mãos e sentidos todos. Agora já eram dez e meia e ela voltou à mesa,
com outra cerveja irlandesa, igual à primeira, exceto que era outra, porque
estava cheia. Ofegando se sentou e sorriu, retirando da bolsa um pequeno pano
com o qual secou a testa e o pescoço. Henrique apressou-se em abrir a tampa da
cerveja com as próprias mãos, fazendo, em seguida, uma caricata pose de
fisiculturista, a que Maria riu e tomou das mãos dele a garrafa. Lembrou-se
ela, então, que desejara, na noite anterior, beber algo mais forte, mas como já
iniciara nas cervejas, ficaria com elas até o fim. Boas irlandesas, disse, humanizando
as cervejas e fazendo Henrique quase se babar, de tanto rir. Olhou, ela, para
longe e viu um homem de cabelo castanho claro e bagunçado, muito bonito e
ousado, bebendo uísque, fumando um cigarro branco e apenas acertando a ponta do
sapato contra o chão no ritmo. Sentiu enorme vontade de falar com ele. E foi. Henrique
se sentiu tomado de ciúme; reprimiu-se, contudo, não se relacionavam além da
amizade, nada lhe cabia fazer.
Olá. Você
gostaria de dançar? Arturo a olhou da cabeça aos pés e de volta àqueles olhos
negros como o abismo, ergueu o copo, como uma desculpa, ao que ela pegou e
bebeu todo o restante de uísque num só gole, ainda que fizesse uma careta antes
de devolvê-lo, vazio, às mãos macias do rico. Bem, se não te resta bebida,
vamos dançar? Deixou o cigarro sobre o cinzeiro, esquecendo-se dele e beijo-a a
mão. Quem seria a rainha que pede a Arturo, seu rei, que com ela dance? Maria,
disse ela, corando e sorrindo, recuando a mão de volta e já lhe dando as
costas, para retomar o ritmo e dançar. Pensou consigo como foi fácil beber algo
mais forte, bastaria se livrar dele durante a dança e, se nada funcionasse,
Henrique a protegeria, como não raras vezes já fez. Arturo, porém, lha agarrou
pela cintura com mãos firmes e dançaram muito.
Trocaram
palavras demais para descrever. Conversaram tanto, sequer puderam dançar seus
melhores movimentos um ao outro. Puderam apreciar as vozes, contudo, e como se
apreciaram um ao outro! Conversaram tanto que Maria saiu de mãos dadas com
Arturo, por uma porta aos fundos, após ver a pequena pilha de dinheiro que
Arturo deixou, para pagar algumas contas. Seu Corvette azul marinho era tentador demais para não sentar e
arrepiar com o enorme e barulhento motor. Estava ela apaixonada ou embriagada
de paixão? Não sabia dizer, só conseguia rir de alegria e contentamento.
Finalmente uma saída, um homem rico e encantador, um homem de verdade,
cheirando a dinheiro e charuto. Esvoaçava os cabelos com o rosto posto para
fora da janela, sentindo a noite preenchê-la toda. O vento secando os olhos e a
garganta, mais que a cerveja, mais que o gelo seco da boate.
Acordou na
terça-feira muito cansada e com alguma dor de cabeça, não muita. Sabia que se
lambuzara a noite toda com Arturo e ele já não estava mais ali, naquele motel
fajuto, apenas seu recado em papel, manuscrito, dizendo está tudo pago, incluso
almoço, não me procure, sei onde te achar; estaremos juntos de novo quando
possível. Promessa. Ela sorriu e apertou o papel contra seu peito, podia sentir
o perfume dele ali. Sabia, assim, que ele passava perfume nos pulsos também e
isso era muito chique e o tornava ainda mais atraente, apesar do cheiro de
cigarro e do sabor de uísque em sua língua.
Henrique
estava morrendo de raiva, de ciúme, de algo quente e intenso, algo fervente,
algo vulcânico dentro de si mesmo quando Maria chegou. Não conseguiu ler o dia
inteiro, seu peito apertava, era difícil respirar, tentou muito, sem resultado,
seus pulmões pareciam cheios de uma névoa negra, sombria, densa, profunda demais
para ser cortada ou afastada com razão e lógica. Ah! A dor humana! O sofrimento
não é mesmo lindo? Tanta intensidade!
Maria saiu
várias vezes com Arturo, enquanto Henrique remoia-se, afastando-se dela mais e
mais, esfriando em seu coração a chama que por ela, antes, queimava viva.
Maria, lentamente, todavia, percebera que seu amado saía com outras. Que
poderia fazer? Já não era tão jovem quanto antes e nem era tão ruim assim, ele
sempre voltava, como prometido naquele pequeno bilhete que ela ainda guardava.
Não é tão ruim, pensava consigo, enquanto descia um generoso gole de água
fresca pela garganta, sentada detrás das cortinas, após longa dança. Muitos
aplausos a coroavam, algumas vozes ainda a elogiavam, a chamavam linda,
maravilhosa, delícia, mas que representavam essas vozes? Seriam outros, amando
outras fora do espetáculo, que ali tornavam sua atenção a ela? Perguntava-se se
o mundo estaria cheio de outros como Arturo... Até que avistou Henrique,
correndo de um lado para o outro e sorriu aliviada. Alguém no mundo ainda lia
romances, isso atenuava seu quieto e mudo sofrimento.
Mais dia,
menos dia, Arturo, vendo o sucesso do circo, quis se aproximar dos membros e se
apresentar como pretendente, futuro marido de Maria. Não foi a mais feliz das
escolhas, todos o conheciam antes de Maria e já o sabiam cruel amante de
muitas. O fatídico momento encontrou sua concretização quando, em uma severa
discussão com Henrique, após este quase bater o Corvette azul num estacionamento, Maria ouviu a verdade mais
dolorosa: Arturo era cafetão. Comprava suas mulheres como a comprara. Motéis,
carros, bebidas, cigarros, roupas, sapatos, a promessa de um futuro brilhante e
a pretensa visão dos talentos de cada um. Mentiras. Não! Pensou ela, confusa.
Mentira! Estão tentando tirá-lo de mim! Isso tudo é mentira! Gritava ela, caída
sobre os próprios joelhos, na areia do estacionamento, com as mãos na cabeça,
apertando forte, chorando, a maquiagem escorrendo como tinta jogada num rio.
Arturo a
amava de verdade, curiosamente. Vendo a loucura a que Henrique trouxe a moça,
Arturo avançou nele, insano, irado, colérico! Henrique, muito mais forte da
labuta diária, surrou o libertino até a morte, calando seus ensandecidos punhos
apenas quando a carne do oponente jazia fria, o sangue todo espalhado, como uma
pintura de criança, tortuoso e amplo.
Preso pela
polícia presente no local, Henrique deixou, ao contrário do que jamais pensou,
Maria sozinha, pela primeira vez desde quando a conheceu. O peso da
responsabilidade esvaía-se de seus ombros, esvaía-se vagaroso como uma ave que
voa pela primeira vez. A estranheza daquela súbita leveza lhe causava um nojo
incompreensível e certo desespero. Não conseguia, todavia, repelir o alívio.
Era imenso demais para recusar um mergulho direto nele. Maria, do outro lado do
espectro emocional, sentia o peso de um homicídio, um ódio, dois corações
quebrados e todos os seus sonhos sendo enviados direto para o lixo, sem chance
de volta. Ela, por sua vez, sentia, portanto, o peso da existência solitária. E
era impossível não perecer ao peso e mergulhar inteiramente.
Agora Maria passa – vinte anos depois – na frente do Larry’s. Que homem inventivo e cheio de visão. A casa continua de pé, agora tocando uma tal de House Music que ela não entende bem como derivou da Disco de outrora, nem como a nova droga dos corredores de banheiros, um tal de ecstasy, dominou tudo e dominou, mais que antes, a juventude, porque, pensou consigo, pelo menos os velhos cheiravam cocaína, não as crianças enlouquecidas, dançando ao som de batidas repetitivas. Percebia que os bateristas e percussionistas foram dispensados por sintetizadores, assim como os tecladistas, os guitarristas, todos, as bandas podiam se reunir a um ou dois instrumentistas e uma voz. O mundo já não era mais o mesmo. E foi naquela discoteca que ela perdeu sua alma para sempre. Jurou que jamais pisaria ali de novo. E jamais pisou.
Agora Maria passa – vinte anos depois – na frente do Larry’s. Que homem inventivo e cheio de visão. A casa continua de pé, agora tocando uma tal de House Music que ela não entende bem como derivou da Disco de outrora, nem como a nova droga dos corredores de banheiros, um tal de ecstasy, dominou tudo e dominou, mais que antes, a juventude, porque, pensou consigo, pelo menos os velhos cheiravam cocaína, não as crianças enlouquecidas, dançando ao som de batidas repetitivas. Percebia que os bateristas e percussionistas foram dispensados por sintetizadores, assim como os tecladistas, os guitarristas, todos, as bandas podiam se reunir a um ou dois instrumentistas e uma voz. O mundo já não era mais o mesmo. E foi naquela discoteca que ela perdeu sua alma para sempre. Jurou que jamais pisaria ali de novo. E jamais pisou.
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