domingo, 17 de setembro de 2023

Sobre um parágrafo de Gustave Flaubert

Sobre Mário Quintana

Mesmo que não comunique nada, o discurso representa a existência da comunicação; mesmo que negue a evidência, afirma que a fala constitui a verdade; mesmo que se destine a enganar, especula com a fé no testemunho. […] O inconsciente é a parte do discurso concreto, como transindividual, que falta à disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de seu discurso consciente. (Lacan, 1998, cap. “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise — 1953”, pp. 253, 260)

Literatura, subjetivação e o âmbito simbólico

O que a poesia faz ao sujeito? Essa pergunta eminentemente moderna transforma as ordens poéticas até então estabelecidas (ordenações estéticas e epistemológicas). A partir dessa questão, compreende-se que o poema torna-se em um plano simbólico de subjetivação, ou seja, um dos âmbitos de produção de subjetividade (Lacan, 1998, pp. 292, 302 et seq., 2021, cap. Ⅴ et seq.). Misturando os sujeitos — sujeito poético (ou diegético), sujeito poeta (ou autor), sujeito leitor —, a poesia não se reduz ao seu tema ou assunto1 e atua na subjetividade em geral.

Assim, poesia: uso irregular e desregulado do ser da linguagem, perturbação das certezas de autoconsciência e subjetividade do cogito. Afinal, ambos (cogito e poesia) fazem-se da mesma matéria: linguagem. Recusar-se a admitir essa última em suas potências e ocorrências poéticas não muda o fato de que afeta o sujeito enquanto estrutura discursiva, produtora de sentido, culturalmente situada — simbólica2.

Temendo as consequências para o senso de identidade, de si, de self, o pensamento ocidental evitou encarar o ser da linguagem até meados do século ⅩⅩ — mas não a poesia. Porque escrever é recusar visões assujeitadas (Prigent, 2017, 83). Através dessa escrita poética, literária, tentamos nos desvincular das imagens constituídas, dos discursos prontos, das frases feitas, dos lugares-comuns que tentam nos assujeitar (Prigent, 2017, 84). Se chamei até aqui poesia a essa palavra voltada contra o discurso instituído, gostaria de fazer saber que isso se lê tanto na prosa de Joyce quanto nos versos de Pound, por exemplo […] tanto nos poemas — Quinto Ênio, Lucrécio, Khlebnikov ou Gherasim Luca — quanto nas prosas — Joyce, Beckett, Guyotat. (Prigent, 2017, pp. 35, 48)

Isso — poesia, literatura, escrita — voltou-se a elaborar obras escritas menos para produzir sentido do que para interrogar a própria questão do sentido e modernos são aqueles que, desde sempre, tentam […] atravessar a opacidade estabilizada do sentido e abrir para o não-sentido que se escancara no cerne de nossa condição de homem. (Prigent, 2017, 67)

Por isso,

[…] a questão, para quem escreve, é a de que a língua faz sujeitos, a questão da invenção dos sujeitos pela língua, a questão da ficção dos falantes pela palavra. […] a língua semelhante para cada um não passa de um denominador socialmente comum e que ela representa apenas a realidade — isto é, como escrevia Proust, “o dejeto da experiência”. [Fazer] da poesia essa obstinação em resistir à dominação da língua de todos porque a língua de todos, da qual somos necessariamente reféns, é a língua do poder que só se mantém se limitar o acesso dos sujeitos à intimidade de sua própria ficção, à invenção de sua própria vida. (Prigent, 2017, pp. 100–1)

Quando Mallarmé diz que o trabalho da poesia (da literatura) leva à desaparição do poeta em suas palavras e essas tomam a iniciativa3, já se iniciou o pensamento da poesia, a questão do que essa faz ao sujeito e sua concepção enquanto plano de subjetivação. Entende-se quanto essa reflexão importa à literatura ao dar-se conta de que saiu da pena de um escritor, não de um filósofo ou de um cientista.

A literatura nasce — pois é uma instituição eminentemente moderna — perguntando pela subjetividade e estabelecendo um esforço que segue do século ⅩⅨ até hoje: a constante — quiçá interminável — superação do subjetivo. Essa tendência do pessoal ao impessoal (ou pré-pessoal), da expressão individual ao processo anônimo, é a própria encenação da passagem do subjetivo à subjetivação, do sujeito constituído ao processo de constituição de sujeitos. Por essa razão, encontra-se o sujeito em crise ou a crise do sujeito na literatura tantas vezes, é sua maneira de agir no cogito mesmo que esse não se queira deixar afetar.

O sujeito poético ou diegético lança-se em busca de seu próprio centro fora de si como a vesícula indiferenciada de substância estimulável de Freud4 com sua superfície voltada para o mundo exterior. Distende-se na tensão entre lucidez intelectual de sua fragmentação constitutiva e sua aspiração sentimental de unidade e clausura. A escrita mostra a perplexidade ante a alteridade que habita a identidade, faz tremer a subjetividade e encena o tremor do sujeito: tensiona a distensão. O próprio, o si, o self, assim, já não se encontra na interioridade, mas na exterioridade e essa habita no íntimo, esse lugar central, essa exterioridade íntima, essa extimidade, que é a Coisa (Lacan, 2008, 169, ênfase adicionada).

Relata-se ou figura-se uma maneira de habitar, um modo de ser, um puro sentir, através de uma enunciação que articula ao discurso subjetivo, à sua aventura singular, algo que é pré-subjetivo, uma dimensão a-subjetiva, porém constituinte da subjetividade, relativa ao que funda o discurso, e que está tanto aquém quanto além do sujeito, é infra e suprapessoal (Rabaté, 1996; Fioretos, 2012). Seja através da relação com o animalesco, instintual, infrapessoal (Lacan, 2021) ou com o acúmulo intelectual, cultural, histórico suprapessoal (Fioretos, 2012), isso — literatura, escrita — opera aquém e além do sujeito por operar precisamente no campo simbólico de sua constituição: linguagem (Lacan, 1998; Prigent, 2017). As palavras rumam além de si próprias, estendem-se até sua alteridade, até o mundo que evocam e convocam com seu chamado (Lacan, 2021) e até as outras palavras com que se parecem ou de que se diferenciam (Saussure, 2011). Todo enunciado responde a um enunciado anterior, pergunta ou apenas pressuposição, e aguarda outro, resposta a si ou comentário.

Assim, mesmo quando repete formas historicamente reconhecíveis porque convencionadas e estabilizadas, a literatura põe em questão essas formas, sua estabilidade e sua convenção — e a própria estabilidade e o próprio ato de convencionar —, pois todo texto traz consigo (e até em si) sua historicidade e estabelece-se como sua própria medida, o que é, no limite, impossível, evocando a comparação ao exigir que não seja feita. Questiona todos os seus parâmetros e definições a fim de compreender e compreender-se melhor e ampliar-se sobre o que era antes, em sentido restrito. Se afirmei, no início do texto, que isso foi feito pela poesia, não o fiz senão por força do hábito, como dito antes, pois [a] prosa não é um gênero nem o oposto da poesia. É o ideal básico da literatura, em outras palavras, um horizonte, e insufla nela um ritmo, uma política. (Alféri, s.d., minha tradução)

Tratando-se do ritmo, medimo-lo por convenção pelo padrão dos versos regulares; a prosa também tem seu ritmo, apesar da dificuldade em reconhecê-lo. Entretanto, o elogio da poesia como palavra originária e musical da qual a prosa teria se desprendido, é apenas um mitologema algo moderno.

Essa lenda dá origem ao uso negligente de “prosa” para designar aquilo que não é verso, formalmente vago, prosa que se faz sem saber. Mas podemos distinguir o ritmo, que não está isento de regularidade, de sua medida, que é irregular na prosa; e reivindicar para esta última a tarefa poética mais delicada. Também podemos contar a história dos nascimentos ao contrário, dizendo que toda a poesia moderna surgiu da prosa e que está se voltando para ela. (Alféri, s.d., minha tradução)

Por essa reversão histórica, a prosa é tão familiar e estranha ao poema quanto ao romance, nem mais nem menos.

Pensar em prosa, até mesmo pensar nela, visualizá-la, sonhar com ela, é desejar para a literatura — toda ela — o rigor de uma prosódia irregular, de uma poética mutante, ao mesmo tempo que o abandono da existência profana e do estado “vulgar” (contemporâneo) da linguagem. Se a prosa designa essa tensão máxima entre uma forma que não conhece modelo e um campo real que não deixa nenhum ponto de vista pendente, então os romances não a alcançam mais frequentemente que os poemas. (Alféri, s.d., minha tradução)

Essa ideia exige uma resposta política, ou seja, uma crítica (literária), evocando-nos todos os jeitos com que os livros batem-se com a prosa do mundo, a sujeira dos dias, o êxtase da vida, etc. (os mil assuntos, os mil sujeitos — sujets —, qualquer assunto, qualquer um, nenhum assunto, ninguém). Perante essa maneira renovada de conceber a prosa, a poesia — obcecada — tenta mostrá-la com cortes, escansões, subitaneidades, enquanto o romance busca-a na consistência, no esforço de inteireza, integridade. Nada disso refaz a linha reta rumo ao mundo, a antiga prosa oratio; no entanto, todos esses esforços visam às circunstâncias em que estamos nos afogando.

Mas, nesta era de retratação, há muitos escritores que fogem tanto da dificuldade de escrever quanto da demanda imperativa e pouco clara (tanto mais que está em toda parte excelentemente “representada”) do mundo. O resultado é uma literatura de complacência, para a qual muitos críticos emitem um certificado, evitando a dificuldade de leitura. Como resultado, tem-se que vasculhar toneladas de histórias, diálogos e versos para se encontrar um grama de prosa. O que poderia ser mais acessível, mais modesto? A prosa não é mais do que um rumor ao qual um humor, nada sério, mas discreto como ele, sabe como responder. (Alféri, s.d., minha tradução)

Comentemos, portanto, um parágrafo de um autor que não teve retratações com seu tempo; pelo contrário, estapeou-o com um tijolo escondido na luva de pelica.

Duas minibiografias

O autor em questão é Flaubert. Apresento, a seguir, duas minibiografias dele, presentes nas duas traduções que consultei para elaborar este texto. Situo-o, antes de situar a obra.

Gustave Flaubert, o filho caçula de um médico provincial, nasceu na cidade de Rouen, na França, em 1821. Ainda menino, cheio de desprezo romântico pelo mundo burguês, declarou-se “enojado com a vida”. Aos dezoito anos, foi estudar direito em Paris, mas não lamentou quando, apenas três anos depois, uma doença nervosa lhe interrompeu a carreira. Flaubert passou a morar com a mãe viúva na casa da família em Croisset, à beira do rio Sena, perto de Rouen. Vivendo de renda, dedicou-se a escrever.
Na obra inicial, particularmente A tentação de santo Antão, deu rédeas soltas à imaginação exuberante, mas, posteriormente, seguindo o conselho dos amigos, disciplinou esse entusiasmo romântico em um esforço para lograr objetividade artística e um estilo harmonioso de prosa. Seu perfeccionismo custava-lhe um trabalho árduo e só lhe valeu um sucesso limitado. Após a publicação de Madame Bovary em 1857, ele foi processado por ofender a moral pública; seu romance exótico Salambô (1862) foi criticado pelas incrustações de detalhes arqueológicos; A educação sentimental (1869), que devia ser a história moral de sua geração, foi muito mal interpretado pela crítica; e a peça política O candidato (1874) fracassou desastrosamente. Apenas Três contos (1877) teve um grande sucesso, mas foi publicado quando o espírito, a saúde e as finanças de Flaubert haviam chegado a seu ponto mais baixo.
Após a sua morte em 1880, a fama e a reputação de Flaubert cresceram continuamente, reforçadas pela publicação de sua obra-prima cômica inacabada Bouvard e Pécuchet (1881) e pelos muitos volumes notáveis de sua correspondência. (Flaubert, 2011b, seção “Sobre o autor”, Penguin/Cia. das Letras)

Contraponha-se esse resumo breve constante no final da edição com a minibiografia seguinte, presente no início da edição L&PM Pocket.

Flaubert nasceu em Rouen, na França, em 12 de dezembro de 1821, e morreu no dia 8 de maio de 1880. Filho do cirurgião-chefe do hospital local, cresceu nas imediações do hospital, entre doentes, utensílios médicos e enfermeiros. Começou a escrever ainda cedo, na mesma época em que foi reprovado nos exames da Faculdade de Direito de Paris. Seu pai, evidentemente, opunha-se às aspirações artísticas do filho. Entre 1844 e 1851, uma série de acontecimentos dramáticos desestabilizaram o jovem escritor: a sua epilepsia manifestou-se, a querida irmã, Caroline, casou-se, o cirurgião Flaubert morreu e faleceu também a recém-casada Caroline, de febre puerperal; o jovem cunhado de Gustave enlouqueceu, e a sra. Flaubert tomou para si, sem qualquer entusiasmo, a criação dos netos. Gustave vivia como aristocrata, sem trabalhar, aproveitando a vida junto aos amigos — entre os quais Théophile Gautier e Guy de Maupassant — e junto à amante, Elisa Schlesinger (uma mulher mais velha e mãe de família).
Ao voltar de uma viagem ao Oriente, em 1851, na exata metade do caminho da sua vida (Flaubert chegara então aos 29 anos dos 58 que viveria), decidiu tornar-se escritor em tempo integral. Até então, escrevera sem disciplina as obras de juventude Novembro e Memórias de um louco. Abandonou Elisa Schlesinger e estreitou relações com Louise Colet, também uma mulher mais velha, casada e mãe, que permaneceria sua amante nos 25 anos seguintes, até a morte dela. Recluso na propriedade da família em Croisset (ele ficaria conhecido como “o urso do Croisset”), inicia, então, a redação de Madame Bovary. Sobre a obra, ainda em gestação, escreveu a Louise: “O que eu gostaria de fazer é um livro sobre nada, um livro sem ligações exteriores, que se mantivesse pela força interna do seu estilo, um livro em que o sujeito ficasse quase invisível, se é que isso é possível”. Aquele que Sartre chamou de “uma espécie de semideus, que vive como um burguês e escreve como um artesão” trabalhou por cinco anos na história de Emma Bovary, “mulher sublime”, segundo Charles Baudelaire, que, romântica e romanesca, vê-se presa a um casamento interiorano e insosso.
O processo criativo do escritor era paciencioso, envolvendo inúmeras versões e a infatigável busca pela mot juste (a palavra exata), que diria exatamente o que o todo da obra requeria, nem mais, nem menos, chegando-se a um conjunto orgânico. O romance foi publicado com o subtítulo Costumes do interior (Moeurs de province) em quatro folhetins no periódico La revue de Paris, no ano de 1856, e em um livro em dois volumes pelo selo de Michel Lévy, em 1857. A temática do adultério e o tratamento realista e psicologicamente profundo das fraquezas humanas granjearam, imediatamente, tanta admiração quanta reprovação: Victor Hugo, Baudelaire, Barbey d’Aurevilly, entre outros escritores, compreenderam que o romance francês do século ⅩⅨ tinha em Flaubert o seu mestre: se a poesia lírica era a voz individualíssima do artista, o romance revelava a sociedade coletiva objetiva e impessoalmente, e o autor de Madame Bovary era o seu virtuose. Já as classes conservadoras escandalizaram-se com a obra: em 1857, Flaubert sofreria um processo no Tribunal de Paris por ofensa à moral pública e à moral religiosa, capitaneado por Marie-Antoine-Jules Sénard (a quem o escritor faz irônica referência na dedicatória). Dentre os trechos citados no processo, um dos mais ofensivos seria o longo passeio em um fiacre com cortinas fechadas dado por Emma e seu amante — do qual a heroína (ou anti-heroína?) sai com o vestido amarrotado. Flaubert foi declarado inocente, e Madame Bovary, “monumento de palavras”, segundo Mario Vargas Llosa, saiu do tribunal engrandecido.
Flaubert, que era um niilista, criticou a todos na sua obra-prima: interioranos e parisienses, homens e mulheres, apaixonados e céticos. Como indicou o crítico Émile Faguet: “Havia em Flaubert um romântico que achava a realidade rasa demais, um realista que achava o romantismo vazio, um artista que achava os burgueses grotescos, e um burguês que achava os artistas pretensiosos, tudo isso envolto por um misantropo que achava todos ridículos”. O próprio escritor dava-se conta das suas contradições, das quais resultou uma obra de observação social irônica, de imaginação decorativa e estilo equilibradíssimo: “Há em mim, literalmente falando, dois homens diferentes: um que é apaixonado pela retórica, pelo lirismo, pelos altos voos de águia, por todas as sonoridades da frase e por ideias altas; um outro, que vasculha e escava o real tanto quanto pode, que adora mostrar o detalhe de modo tão poderoso quanto o grande fato, e que gostaria de fazer com que sentissem quase que materialmente as coisas que ele reproduz”.
Desde então, Emma Bovary é um dos personagens mais debatidos da literatura universal: ora é vista como uma sofredora irremediável que não consegue romper com os laços que a prendem, ora como uma anti-heroína da estirpe de Dom Quixote (como ele, afundou-se nos livros e perdeu o pé da realidade), ora como uma resistente heroína, que insiste em sonhar a despeito do mundo que a cerca. Emma é vista também como a matriz da linhagem de personagens como Ana Karenina, de Tolstói, Luísa, de O Primo Basílio, de Eça de Queiroz, ou Nora, de Casa de bonecas, de Henrik Ibsen.
Em 1863, Flaubert lançou o romance histórico Salambô, com grande sucesso de público e crítica. Em 1869, foi publicado outro romance seu, desta vez autobiográfico, A educação sentimental. A tentação de Santo Antônio foi publicado em 1874, e a reunião de novelas Três contos (contendo Uma alma simples, A lenda de São Julien Hospitaleiro e Herodíade) veio a público em 1877, também com grande sucesso. Bouvard e Pécuchet, narrativa satírica em que o autor trabalhava quando morreu, foi editada postumamente sob os cuidados de uma sobrinha em 1881, e Dicionário de preconceitos, uma antologia de frases feitas, apenas em 1913.
Ficcionista de estilo contrito e burilado, Flaubert guardava para suas epístolas toda expansão e inspiração transbordante; para muitos, a Correspondência é a sua grande obra: reflexiva, apaixonada e frequentemente comparada às cartas de Madame de Sévignè, Voltaire, George Sand ou Van Gogh.
Segundo Proust, Flaubert foi responsável por uma literatura de ruptura porque deu sentido e substância ao romance de análise psicológica, do qual Madame Bovary é a mais alta expressão. (Flaubert, 2011a, seção “Sobre o autor”, L&PM Pocket)

Note-se a contradição quanto ao sucesso das obras em vida do autor. Destaque-se a influência sobre a melhor literatura: Baudelaire, Guy de Maupassant, Zola, Tolstói, Eça de Queiroz, Walter Pater, Ibsen, Proust, Kafka, Sartre, Vargas Llosa, Nabokov, Coetzee e a lista estende-se a perder de vista.

Resumo da obra

Emma Bovary é uma ávida leitora de romances sentimentais; criada em uma fazenda na Normandia e educada em um convento, ela anseia por uma paixão como aquela dos romances que lê. De início, Emma deposita suas esperanças no casamento, mas a vida com seu marido bem-intencionado nas províncias entedia-a e a insatisfaz. Ela busca uma fuga por meio de gastos extravagantes e, eventualmente, chega ao adultério. Enquanto Emma persegue seu devaneio impossível, ela sela seu próprio destino de ruína e desespero. Requintado, comovente, às vezes ferozmente satírico e sempre psicologicamente agudo, Madame Bovary continua sendo um dos maiores e mais sedutores romances já escritos.

A citação

Comentarei um único parágrafo de Madame Bovary, citado adiante. Esse parágrafo mostra-se tão rico que não posso evitar recordá-lo frequentemente, com seus dois longos períodos de ritmos equilibrados, ainda que inarmônicos.

Mas era principalmente nas horas das refeições que ela não aguentava mais, naquela salinha do andar térreo, com a lareira que fumegava, a porta que rangia, as paredes que suavam, as lajotas úmidas; todo o amargor da existência lhe parecia servido em seu prato e, com a fumaça do caldo, subia-lhe do fundo da alma como outras tantas baforadas de esmorecimento. Charles era lento para comer; ela beliscava umas avelãs, ou então, apoiada nos cotovelos, brincava com a ponta da faca, fazendo riscos na toalha encerada. (Flaubert, 2011b, parte Ⅰ, cap. 9, Penguin/Cia. das Letras)

Partamos ao comentário dessa preciosa lasca de linguagem.

Comentário

Flaubert captura minha atenção primeiramente com quanta tensão há numa cena tão estática, produzindo, por isso, sensação de movimento e ação. Pouca coisa ocorre no nível empírico (da diegese): Charles come, Emma brinca com a comida ou a toalha de mesa. Ainda assim, o ar pesado: o que é isso que ela não aguentava mais? Esse sufoco emerge do contraste entre o que se espera de um momento de refeição (satisfação e prazer do alimento, saúde devida à nutrição, comunhão com os comensais) e os sentimentos de Emma nessa mesma situação (frustração, angústia, impaciência, agitação, desespero).

Tudo nos chega pela perspectiva de Emma, quase como se lêssemos uma narração em primeira pessoa travestida de terceira pessoa; a salinha no andar térreo parece agir contra ela: a porta range, as paredes suam, a lareira fumega, tudo caracterizado por verbos, não por adjetivos. Intensifica-se a sensação de agência por partes dos inanimados porque estamos lidando com um romance realista sem qualquer dose de magia ou dimensão sobrenatural, o que nos traz a percepção de quão incomodada Emma está com a situação.

Essa alegoria com o espaço circundante alcança também o que está ausente através do que se apresenta na descrição da cena: Emma sonha com mansões e castelos, mas senta-se naquela salinha para comer, o espaço externo diminuto comparado implicitamente ao seu espaço interno expandido; almeja a torres, das quais verá campos verdejantes, porém encontra-se no térreo, com lajotas úmidas, e despenca da altura de seus sonhos para a baixeza de sua situação real, da natureza abundante, quase feérica, para a crueza da construção civil.

Na parte seguinte da sentença, Flaubert faz a protagonista cair dos conceitos existenciais à matéria bruta em um só golpe: a amargura da existência parecia-lhe servida no prato (2011a, L&PM Pocket), entretanto já ascende novamente ao interior, vinculando exterioridade e interioridade em uma única frase5: e, à fumaça do cozido, subiam do fundo de sua alma outras exalações de insipidez. (2011a, L&PM Pocket, trad. modificada para corresponder à sintaxe do original francês)

Passa-se da intensidade, imensidão e imaterialidade de todo o amargor da existência à concretude, pequenez e mediocridade da fumaça do caldo. O autor paraleliza os odores do prato com as ondas mentais nauseantes, ambas subindo, aquelas ao nariz, essas à atenção presente, ambas alcançando a consciência, como se estivessem unidas naturalmente. Nos mínimos detalhes da vida doméstica esconde-se o horror de uma vida indesejada. Ainda assim, o oposto também vale: o imenso sentimento de que a vida atual não vale a pena revela-se por meio do contato com as nuances cotidianas.

As comparações tácitas constroem a profundidade do parágrafo: alto vs. baixo, amplo vs. espremido, agradável vs. desagradável, interior vs. exterior, fantasia vs. realidade. Quanto a essa última dimensão, sentimo-la devido à cena narrar-se pela perspectiva de Emma: a situação, então o ambiente, seu estado interior e sua refeição, um salto para Charles e de volta para ela, finalizando com sua distração fugindo do presente: brincava com a ponta da faca, fazendo riscos na toalha encerada — até o tipo de toalha sugere uma comparação e a brincadeira com a comida (beliscava umas avelãs) e com a toalha demonstra sua angústia. Não é gratuito que ela brinque com uma faca: arma-se (com sua distração de desenhar na toalha) contra o presente, defende-se da recordação de sua situação exercida pela pobre toalha atacando-a com a ponta da faca, tentando furar e rasgar seu momento atual em nome do que está ausente ali, mas presente em si, dentro, em sua mente distante.

Dessa maneira, chegamos a uma sensação sem que nos seja forçada. Somos guiados em sua direção, levados como nós mesmos tivéssemos nos encaminhado aí — mas não é assim. Flaubert incorpora com maestria o sentido na descrição dos arredores de Emma. Para isso, tanto mostra quanto conta: o fogão fumegava, a porta rangia, as paredes escorriam umidade e toda a amargura da existência lá estava — concretude e abstração. E essa força adentra o texto pelo que não é feito nem dito quanto pelo que é feito e dito: afinal, as palavras são o que são positivamente, mas também por aquilo que não são:

A linguagem é um sistema de termos interdependentes no qual o valor de cada termo resulta unicamente da presença simultânea dos outros […] Tudo o que é dito sobre palavras se aplica a qualquer termo da linguagem, por exemplo, a entidades gramaticais. […] na linguagem existem apenas diferenças. Ainda mais importante: uma diferença geralmente implica termos positivos entre os quais a diferença é estabelecida; mas na linguagem há apenas diferenças sem termos positivos. (Saussure, 2011, pp. 114, 116, 120, ênfase do original, minha tradução)

Nesse sentido, o que está ausente também está, de alguma forma, presente, presente por sua própria ausência, e o que é declarado traz consigo suas comparações não declaradas implicitamente. Os contrastes, portanto, tornam o parágrafo de Flaubert exemplar e um fortíssimo exemplo de ruína da subjetividade constituída (e nutrida à base de romances dos séculos ⅩⅧ e ⅩⅨ) em favor da subjetivação.

O próprio contraste entre a imobilidade dos personagens e a descrição em saltos, além do poder que os objetos inanimados parecem ter mostra a força que entra em cena quando a quietude deve preceder a tempestade. Isso injeta tensão na cena, especialmente ao ocultar as motivações dos personagens, ao mesmo tempo em que as sugere por trás dos panos.

Enquanto tudo isso acontece, nada abandona o nível mundano, terreno: trata-se de quartos, portas, fogões, casas, refeições, casamentos, existência em sua secura cotidiana. Uma vida tão seca quanto brincar com a toalha de mesa em vez de quebrar a louça no chão da cozinha aos gritos durante uma discussão acalorada: silêncio ensurdecedor.

Obras citadas

Pierre Alféri. s.d. “Vers la prose”. Remue. Acessado 16º de setembro de 2023. http://remue.net/cont/alferi1.html.

Aris Fioretos. 2012. “You Water, You Gooseflesh”. Traduzido por Tomas Tranæus. Keynote Address, Spitz an der Donau, Áustria. http://arisfioretos.com/en/you-water-you-gooseflesh-en/.

Gustave Flaubert. 2011a. Madame Bovary. Traduzido por Ilana Heineberg. Porto Alegre: L&PM.

———. 2011b. Madame Bovary: costumes de província. Traduzido por Mário Laranjeira. Penguin/Companhia das Letras.

Sigmund Freud. 2016. Além do princípio de prazer. Traduzido por Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM Editores.

Jacques Lacan. 1998. Escritos. Traduzido por Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar.

———. 2008. O Seminário: Livro Ⅶ: a ética da psicanálise, 1959–1960. Traduzido por Antônio Quinet. Rio de Janeiro: Zahar.

———. 2021. O Seminário: Livro Ⅰ: os escritos técnicos de Freud, 1953–1954. Editado por Jacques-Alain Miller. Traduzido por Betty Milan. Rio de Janeiro: Zahar.

Stéphane Mallarmé. 2009. Divagations: The Author’s 1897 Arrangement: Together with "Autobiography" and "Music and Letters". Traduzido por Barbara Johnson. Cambridge: The Belknap press of Harvard University press.

Christian Prigent. 2017. Para que poetas ainda? Editado e traduzido por Inês Oseki-Dépré e Marcelo Jacques de Moraes. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie.

Dominique Rabaté. 1996. “Enonciation poétique/énonciation lyrique”. Em Figures du sujet lyrique, editado por Dominique Rabaté, 65–79. Paris: P.U.F.

Ferdinand de Saussure. 2011. Course in General Linguistic. Editado por Perry Meisel e Haun Saussy. Columbia University Press.


  1. O sujet francês ou o subject inglês: sujeito, sim, mas também tema, assunto (conteúdo para quem assim preferir).

  2. […] reconhecer que função assume o sujeito na ordem das relações simbólicas que cobre todo o campo das relações humanas (Lacan, 2021, cap. Ⅵ “Análise do discurso e análise do eu”, p. 83, ênfase adicionada).

  3. The pure work implies the disappearance of the poet speaking, who yields the initiative to words, through the clash of their ordered inequalities (Mallarmé, 2009, cap. “Crisis of Verse”, não paginado).

  4. Imaginemos o organismo vivo em sua maior simplificação possível, sob a forma de uma vesícula indiferenciada de substância estimulável; então sua superfície voltada para o mundo exterior é diferenciada pela sua própria posição e serve como órgão receptor de estímulos. (Freud, 2016, parte Ⅳ, 5º parág.)

  5. Como extimidade (Lacan, 2008) ou criação de meios de transpor a distância e preencher a hiância (a golpes de correspondências, de mimologias, de remotivações cratilianas dos signos ou de curtos-circuitos glossolálicos) (Prigent, 2017, 36).

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