domingo, 3 de setembro de 2023

Sobre William S. Burroughs

Estou aqui para lhe mostrar algumas das coisas que você chama de realidade.
William S. Burroughs

Em um texto de 19731, Burroughs desenvolveu este mito: as palavras seriam um tipo de organismo viral; esse organismo parasitaria seu hospedeiro portador (o macaco anterior ao signo) e causaria uma mutação biológica caracterizada por uma “modificação das estruturas da garganta interna”; o efeito: estrangulamento, “frenesi sexual”, alta mortalidade e transmissão genética, por meio das fêmeas sobreviventes, da “nova estrutura da garganta”.

Essa fábula relembra a violência que prende o ser falante à socialidade da troca verbal, mas deixa na glote, como o rastro de um remorso “biológico”, o nó da angústia que está na origem do impulso de escrever (para trabalhar nesse nó e nessa fábula). Em ambas as extremidades da história da fala, há um estrangulamento traumático. Por um lado, o drama do corte inaugural que funda a socialidade tagarela da espécie; por outro, o controle dos “sujeitos” pelos discursos normalizados, o emaranhamento dos corpos na rede da gramática, a submissão aos nomes que constituem a alucinação conhecida como “realidade”.

O mito burroughsiano do “vírus da linguagem” é um tipo de logogonia patética. Retrata a doença que transforma o pequeno homem em um animal falante, arrancado do nada da coisa silenciosa emparedada pela necessidade (fome), mas jogado ao mesmo tempo no inferno da “antropofagia comunitária”.

Burroughs construiu sua ficção sobre esse pano de fundo. O objetivo: “destruir os principais instrumentos de controle, a palavra falada e a imagem”. O inimigo que a obra literária ataca são os vários controles exercidos pela comunidade sobre os modos de expressão (ainda mais do que sobre o conteúdo expresso2): controle policial (encanadores e seus microfones), controle estatal (a lei escrita, a regulamentação da linguagem pela dobra estereotipada da mídia, o conhecimento rastreado dos computadores) ou controle psiquiátrico (o diagnóstico de “loucura”).

Daí o cenário dos romances de Burroughs: subterrâneo, submundo, drogas, sexo, loucura. Os “garotos selvagens” são figuras de resistência ao controle. Seu gesto: uma descida épica aos “infernos” que o pseudo-Éden da linguagem socializada encobre. Mas não é apenas esse imaginário diabólico que faz sentido. É o próprio diabolismo (a divisão, a pulverização do vínculo discursivo) que o ato de escrever pratica como uma retirada da fixação dos seres em uma legalidade linguística aceitável pela comunidade (id est: nem delirante nem ilegível).

Em Port of saints3, a CIA pergunta:

— Esses garotos selvagens são politizados?

— Não exatamente…

— E qual é a relação deles com os guerrilheiros?

— Eles são todos foras-da-lei como quaisquer outros.

Mas, sobretudo: Os garotos selvagens não têm umbigo nem nome. Eles apagaram o conceito de identidade. Se é um refúgio para os santos, abre-se para o paraíso das linguagens dia-bólicas, onde ninguém está sujeito ao discurso dominado, onde ninguém adere ao vínculo sim-bólico, onde ninguém se inscreve na lista socializada de nomes, mas onde a individualidade repulsiva dos corpos e do inconsciente vem depositar seu refugo poético, seus espaços imaginários, suas manipulações agressivas do hábito da linguagem.

Os textos de Burroughs estão entretecidos por uma resistência à nomeação. O sintoma formal disso, por meio de uma inversão dialética peculiar à ficção, é a multiplicação de letras maiúsculas na frase: essas letras maiúsculas são o sinal de uma ruptura nas sequências do romance; expõem a letra no fluxo narrativo; isolam potencialmente cada nome como um nome próprio, o herói e o arauto da ruptura, da resistência, da guerra de guerrilha. O texto, entoado por esses nomes de um não maciço à “camisa de força das fórmulas verbais dogmáticas”, surge como uma espécie de multiplicador concreto das questões que trabalham na tradição modernista, na medida em que responde à demanda rimbaudiana: “encontrar uma linguagem”.

Encontrar uma linguagem consiste, antes de tudo, em rejeitar as linguagens mortas e as representações do mundo que são constituídas por essas: “O que você chama de realidade”, diz Burroughs, “é uma rede de fórmulas de restrição… linhas associativas de palavras e imagens que representam uma trilha pré-gravada de palavras e imagens”. Escrever é “cortar as velhas linhas” que mantêm unida essa rede manipulada em que a realidade, a experiência e o sujeito falam entre si em uma língua morta e se anulam em uma irrealidade esquizoide. Daí o interesse de Burroughs pela mídia moderna e seu enorme poder de disseminar o estereótipo socializante. Daí também a forma particular de seus romances: um quebra-cabeça de sequências narrativas não lineares, soluçadas pela repetição, sem ponto de vista unificador. Daí, finalmente, as técnicas de escrita: cut-up e fold-in consistem em cortar as “linhas associativas”, dobrar a “rede de fórmulas” de maneira diferente, recusando ativamente o ditado da trilha “pré-gravada”. A escrita reinicia o “mundo”, reintegra o “sujeito”, porque rejeita a versão da “realidade” e do “eu” que já está sempre lá, e que a linguagem culta fixa, cria camadas e une. Em outras palavras, é somente por meio desse tipo de ficção (que é ordenada por um gesto negativo) que podemos ir além da ficção que queremos que seja tomada como realidade.

Em termos mais teóricos: “cortar as velhas linhas” significa trabalhar e distender as ligações simbólicas na medida em que garantem a homogeneidade do vínculo social ao custo de excluir a complexidade heterogênea da realidade. O famoso cut-up não é uma simples receita técnica. Envolve uma postura precisa por parte do escritor em relação à articulação entre o real e o simbólico. Burroughs não trabalha diretamente em um “real” (mais ou menos iluminado por projeções “imaginárias”) que teria de ser passado pela linguagem como um cadáver da experiência do sujeito. Ele trabalha primeiro na rede simbólica como uma realidade primária: cut-up, fold-in e outros procedimentos de construção novelística produzem a narrativa (e o possível “efeito de real”) a partir de um trabalho de desconstrução regulado em uma matéria-prima (páginas de jornais e textos diversos) que é sempre já um material significante, um bloco de significados constituído em um texto. O paradoxo de tal viés é que a chance do real está justamente aí, nessa manipulação técnica de mensagens, nesses desvios formais neutros (em que o autor, literalmente, nunca fala): nada mais preocupante do que essa linguagem absolutamente estrangeira (fria, distante, impassível) e as violentas contradições que transmite, entre sua sofisticação formal e o naturalismo trivial de uma ou outra de suas “cenas”.

A máquina dessa escrita cortada e remontada borra as marcas do reconhecimento literário. Não há uma progressão narrativa homogênea: o texto se repete, repetindo suas “rotinas”; autocomenta-se, expõe seu método, mostra sua construção. Burroughs exibe os estágios sucessivos, as repetições, os desvios; dessa forma, ele valoriza um “gesto” do qual o produto (o “livro”) é apenas o resíduo. Essa pluralidade e materialidade proíbem qualquer ponto de vista totalizante, qualquer declaração monovalente4. Não existe uma técnica exclusiva: cut-up e fold-in são apenas dois de uma série de processos, e Almoço nu (que não é o menos radical dos romances de Burroughs) foi escrito antes de serem inventados5.

Segundo Burroughs, “o mecanismo não tem voz própria”: várias vozes, diálogos falsos, perguntas gritadas6 sem nenhum personagem. O espaço novelístico está repleto da pluralidade sem origem de vozes do inconsciente (fantasias assassinas, pornografia) e do mundo (o fanatismo social e verbal do caldeirão americano). Não há um projeto fixo para o local de onde emanam as vozes da ficção, mas uma vasta interferência de diversas transmissões. A cadeia narrativa implode sob o impacto do que pode ser chamado de poliglossia do real. Toda transmissão é embaralhada, toda representação estável é devastada: “Eu ordeno resistência total contra essa conspiração que está liquidando os povos do mundo com besteiras substitutas”.

O corte do cut, sem dúvida, implica um gesto de agressão sádico-anal7. Isso já foi dito, mas na maioria das vezes é apenas para destacar o tema burroughsiano do lixo, do desperdício e da merda. As forças inconscientes ativadas dessa forma parecem-me atuar mais no investimento subjetivo que impulsiona a própria prática de cut-up. Se escrever significa dividir ad infinitum “as linhas de palavras [que] mantêm você no tempo”, cortar envolve uma velocidade destinada a limitar a massa discursivo-narrativa ou o engolfamento expressivo no fio da escrita. Cortar a linguagem que já está amarrada e remendá-la rapidamente, por meio de uma máquina (sem “costura manual” estilística), significa ir o mais rápido possível, até a borda mais afiada, cruzando a “trilha pré-gravada”, liberando atalhos que levam a anquilose mortal das “linhas antigas” ao contrário. O texto resultante é sincopado, rápido, heterogêneo e sempre cantado8. A deflagração de Burroughs busca quebrar a fechadura simbólica e expor, desnudada e desvalorizada, a carcaça vazia do cenário alucinatório que monta, para o uso do “público”, o discurso dominante (o da mídia). E mostra que com os mesmos elementos (o léxico) pode-se fazer outra coisa, indefinidamente: ficções, definidas pelo autor como “intoxicações efêmeras, mas únicas”.

Devemos levar a sério o mito burroughsiano do macaco “nas garras de um frenesi sexual incontrolável enquanto o vírus estrangula-o”. A violência feita ao impulso sem forma está no coração da cadeia verbal. E o que resiste à simbiose entre o sujeito e a linguagem (e a socialidade que essa linguagem controla) é o material sexual bruto, que só aparece na linguagem para perturbá-la. A onipresença de temas sexuais nos textos da tradição modernista está enraizada nesse fato. Não se trata de uma mania pelo assunto, de desvios perversos ou emoções atrevidas. Não é o autor, mas a linguagem, que é obcecada (sitiada) pelo sexo, porque o sexo é o emblema, sempre a ser desnudado, do que esconde em uma energia indescritível. Nesse sentido, a hipersexualização das histórias de Burroughs tem um papel clínico. Os garotos selvagens vivem uma porção de escrita, não uma porção de vida. De fodas sórdidas a coitos angelicais, na selva de cidades e fantasias, sob a Via Láctea do Esperma, rasgando a cartografia do corpo homossexual (escroto, reto) com excessos pornográficos, Johnny Cyanure, Audrey Carson, Tio Mate, etc. travam uma guerra contra as Forças-da-Morte e a Polícia-do-Pensamento, com o objetivo mítico da imunidade “sagrada”, a “Vacina Antimorte”. Múltiplas encarnações do ser de linguagem que se rebela contra seu destino “humano”, os wild boys, sujeitos submetidos como todos à norma discursiva, também são reféns da obsessão sexual quando essa retorna, na ficção literária, como um retorno do corpo reprimido da linguagem verbal.

A porção que a língua cospe são as artimanhas sexuais, a obsessão com sua descarga crua, a irrupção de uma falta de nome que faz o sexo9. Joyce deu esta definição para o escritor: farejador de carniça, coveiro prematuro, buscador do ninho do mal no seio de uma boa palavra10. O “mal” chega à linguagem como pornografia, um corpo anônimo, exposto e prostituído que rompe a simbiose afetuosa e as distrações ornamentais do idílio estético cujo fim Rimbaud proclamou. No mito heroico de Burroughs, é esse “corpo” que resiste à estrutura da garganta forjada pela familiaridade da linguagem do vírus: permanece, como se diz, . Essa violência não tem nada a ver com a doxa do “prazer” de escrever. A escrita não alcança o prazer sexual pleno. Trata-se de outra coisa completamente diferente: talvez uma travessia dos nós obsessivos, um alívio do peso do corpo, uma saída para uma “nova vida”, para fora do beco sem saída do horizonte sexual, um lançamento do lastro demasiadamente “humano” incorporado pelo bode expiatório da crueza de uma linguagem obscenamente ejetada em ritmos.

É nesse sentido que tal texto é estritamente inominável. Resiste a qualquer tentativa de reorientar o assunto da escrita para um eu identificável (e o leitor, como resultado, também se perde nesse espaço descentralizado): “A palavra Eu”, diz Burroughs, “confunde você; pelo amor de Deus, eu poderia ficar sentado ali para sempre se tivesse um eu com o qual me sentar”. A escrita de Burroughs não está no conteúdo que transmite, nas imagens que mostra, nas histórias que conta. Está no gesto que corta o assobio humanamente identificável do Ser: “Não me sinto humano”, diz Burroughs novamente, “não gosto de seres humanos”. Qualquer tentativa de fixar sua escrita com base no que ele diz corre o risco de reimpor uma unidade expressiva cuja função é pulverizar. Desse ponto de vista, as drogas desempenham o mesmo papel técnico que os cut-ups: uma dilatação incansável da unidade narrativa em flashes desconexos que são repetidos sonambuladamente: “Eu uso a droga como uma iluminação de base”.

A divisão rítmica da palavra escrita em fragmentos picotados, as explosões cênicas da pornografia e da droga como um “meio de ver além desse corpo animal” engancham na linguagem uma corporeidade viva (doente) que nenhuma imagem, nenhuma descrição, pode nomear. É um “corpo” insustentável, que nunca vem em excesso ou em adição (como representação, incluindo a representação obscena), mas em menos, como vacuidade geradora, na plenitude selada das “velhas linhas”. O que vemos emergir nas ficções de Burroughs, a silhueta monstruosa de um aquém ou além dos signos, é, muito mais que qualquer encenação erótica ou trivial, o corpo como buraco. Os buracos no corpo, o ânus e a boca, que são ocupados pelo sexo por meio dos sexos, são apenas metáforas para esse buraco imparável no corpo por meio da linguagem. O corte é o gesto combinado (deliberado e musicalmente composto) do buraco no corpo. Sua violência corta a ordem simbólica do “romance”, suas conexões, suas linhas, suas redes homogêneas e, ao mesmo tempo, qualquer fetichização do sexo. Não há nenhuma religião do sexo em Burroughs, nenhuma especulação alucinatória sobre o que Céline chamou de “banditismo universal”, mas sim algo exaustivo e furiosamente cômico: talvez o que Artaud chamou, de forma deliberadamente vulgar (em oposição à perversidade chique), de barbaque11, “barbaque sujo”, por meio do qual nos expressamos.


  1. “Playback from Eden to Watergate”, Harper’s Magazine, nov. 1973.

  2. Um sintoma (entre outros, mas o que mais interessa a Burroughs) é o julgamento frequentemente feito pelos “controladores” sobre o cinema pornográfico: imagens que são feias demais. Em outras palavras, o que é perturbador não é o excesso sexual em si, mas o curto-circuito dos códigos estéticos que faz com que esse cinema duplique de forma selvagem alguns dos efeitos do cinema underground mais sofisticado. A aliança entre o “popular” e o “experimental”, que perturba o efeito estético: a força dos escritos de Burroughs geralmente reside em um efeito desse tipo.

  3. 4th printing, “extensively rewritten and revised by the author”. Berkeley: Blue Wind Press, 1980.

  4. Se há um texto que se recusa a ser “responsável” pela afiliação ideológica, esse texto é o de Burroughs. É por isso que há tanta preocupação, aqui e ali, sobre “de que lado” está!

  5. Além disso, por Brion Gysin, e não pelo próprio Burroughs.

  6. Isso é particularmente notável em The Soft Machine.

  7. Uma tal decomposição é bem característica da paranoia. Esta decompõe assim como a histeria condensa. Ou melhor, a paranoia dissocia novamente as condensações e identificações realizadas na fantasia inconsciente. Sigmund Freud. “Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia (dementia paranoides) relatado em autobiografia (‘o caso Schreber’, 1911)”. In: Sigmund Freud. Obras completas v. 10: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“o caso Schreber”), artigos sobre técnica e outros textos (1911–1913). Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. E-book.

  8. Ver Ivan Fonagy, Les bases pulsionnelles de la phonation" [As bases pulsionais da fonação].

  9. Qualquer pessoa que já tenha praticado de forma um tanto sistemática (desprendida, técnica) uma operação de distorção fonética (com base em anagramas, antístrofes, trocadilhos) de qualquer linha de discurso ortonormativo (textos políticos, publicitários, médicos…) sabe que o que sempre emerge do fundo duplo da linguagem é a crueza de declarações sexuais brutas (sem valor estético, sem investimento subjetivo), o burlesco desse obsceno “mau-gosto” que também se desdobra em trocadilhos e “rimas” populares.

  10. Finnegans Wake.

  11. Há ainda, em francês, o termo ‘barbaque’, que é a palavra popular, tosca e direta, para falar da carne animal de má qualidade. Artaud não se vale nem de ‘chair’ nem de ‘viande’. Escreve: É pela barbaque / só por ela / que se exprime / o / aquilo que não se sabe. Silviano Santiago, “Ciladas da linguagem”, Folha de S. Paulo, São Paulo, domingo, 1º set. 1996, coluna “+Mais!”.

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