domingo, 5 de maio de 2024

Anotações pessoais sobre escapismo a partir de uma discussão com um conhecido

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Acusou-se um conhecido meu de “chatice” por ele recusar elogiar arte de escape. Como se podem pensar os possíveis valores do escapismo?

Situar o ocorrido: acusação: “quem critica escapismo enfia política em tudo”.

Essa acusação sofre de um mal óbvio: não se pode escapar aos modos de convívio das interações humanas. Mesmo os isolados em cavernas e florestas vivem como humanos: trazem consigo a bagagem cultural (convencional) dessa maldição. Portanto, a acusação, tal qual formulada, diz pouco ou nada sobre a questão. O que se pode extrair da situação então? Reciclemos: o espírito da acusação expõe insatisfação com algo outro que não o acusado e sua atitude.

Estamos todos fartos da política institucional sob a qual vivemos — de acordo. Também estamos todos aprendendo a identificar as conexões que todas as coisas têm entre si e que nos revelam o mundo em sua complexidade real. Escapar da realidade circundante através de um artefato estético como um produto de entretenimento ou uma obra de arte traz repouso e sonho. Fantasiar, como se sabe, compõe o rol de práticas cruciais para sustentar a vida psíquica: sem expectativas, perde-se o sabor de alcançar o que quer que seja. Contudo, essa compreensão do escape não institui uma negação da política, mesmo da pequena política presente em todas as esferas do cotidiano, senão expõe como o escapismo encontra seu valor na relação concreta que estabelece com a vida rotineira. Compreender essa conexão importa para não se fugir da realidade maior que se impõe sobre esse cotidiano e essa vivência.

Todavia, quando o escapismo torna-se norma e régua para apreciação de artefatos estéticos, então se perde sua posição (sua eficácia em posicionar-nos distantes da melancolia e do fracasso cotidianos, sem nos desvincular inteiramente da apreensão desse cotidiano e das causas desse sofrimento). Estabelecer essa norma conduz ao problema da desresponsabilização de si.

Expliquemos: escapar sempre que possível implica jamais assumir a própria parcela na composição do sofrimento ubíquo a que todos estamos submetidos. “Como isso é possível?”, ouço em gritos. Simples: desvinculando-se da realidade (em) que se vive.

Anestesiar o próprio entendimento em cada oportunidade recusa compreender o próprio sofrimento (e o alheio também), impedindo apreender a situação maior e seus vínculos com os acontecimentos menores. Trata-se, não de fugir do humano (como os metidos em florestas e cavernas mencionados antes), senão de ser humano sem responsabilidades. Chama-se isso dependência (no pior sentido possível). Quem depende onera os circundantes com responsabilidade de cuidado. Certamente — isso deveria ser tão óbvio que não necessitasse esta afirmação — todos dependemos, mas, no ideal, de maneira não tão profunda que se comprometa a própria vida a cuidar dos outros (ou a vida dos outros a cuidar da nossa). Infantilização no sentido etário: regressão às possibilidades de vida do bebê, da primeira infância: dependência alheia e ausência de responsabilidades. Há mão do capitalismo nisso (quiçá um braço inteiro).

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