Na casa, organismo adormecido cujos pulmões há muito cessaram de inflar, a poeira cobria móveis, janelas, até as prateleiras que seguravam relógios esquecidos. O ar cheirava agridoce de madeira velha e metal oxidado, odor impregnando roupas, pele, dias de quem ali habitava.
Nikolai passava as horas no canto da sala, onde a luz, fraca, mal alcançava as engrenagens desmontadas sobre a mesa. Um candeeiro de base rachada iluminava apenas o suficiente para ver suas mãos envelhecidas, agora trêmulas, enquanto ajustava com precisão pinças minúsculas em mecanismos que abandonaram o funcionar. Trabalhava por hábito, não por esperança.
Os relógios, cada um com seu devido defeito, espalhavam-se pela casa feito restos de velhas brigas. Um com a mola quebrada, outro sem ponteiros, outros tantos sem mostradores, engrenagens expostas qual vísceras no campo de batalha. Alguns retinham o mesmo segundo por décadas, outros tique-taqueavam sem rumo, lutando para manter a própria existência. Nikolai tratava-os em sua obstinação silenciosa, mas sabia não haver salvação para a maioria.
A casa era fria mesmo quando o sol espreitava pela janela. A madeira do piso rangia e a única companhia era o estalido ocasional de um relógio que despertava para morrer outra vez. No entanto, Nikolai não se importava; escolhera esse silêncio e o silêncio aceitara-o.
Não recebia visitas. As pessoas da vila esqueceram-no ou ignoravam-no. Fora o relojoeiro mais habilidoso da região. Seu nome carregara fama, clientes vindos de longe buscando sua meticulosidade. Agora se acabavam os relógios mecânicos, ninguém mais queria tempo tangível.
Até ela aparecer.
Fim de tarde, céu tingido de cinza, como sujo. Luz filtrada pela poeira acumulada no vidro da janela espalhava sombras pelo chão. Nikolai escutou passos na neve endurecida, o ranger seco de alguém hesitando antes de alcançar a porta. Ele largou a pinça sobre a mesa. Esperou.
Batida firme sem pressa. Não respondeu. Fazia tanto tempo que alguém batera naquela porta, quase não sabia o que fazer. Ergueu-se. Movimento lento: a idade esculpira-lhe os ossos com o peso do tempo.
Diante da porta aberta, uma mulher em um casaco escuro, capuz cobrindo parte de seu rosto, segurava um objeto grande, embrulhado em tecido pesado, contra o peito. O vento soprando atrás dela trazia flocos de neve e um frio que parecia sair de outro mundo.
— É Nikolai? — Havia cautela em sua voz.
Ele assentiu, ajustando o casaco nos ombros. Ela olhou além dele: para o interior da casa, como soubesse o que encontraria ali.
— Preciso que conserte um relógio.
Ele balançou a cabeça.
— Não faço mais isso.
A mulher permaneceu, mirando-o. Por um instante, Nikolai sentiu estar ele, não ela, na defensiva.
— Sei o que dizem — ela continuou. — Mas ninguém mais pode consertar. Você precisa tentar. — Sua voz entre súplica e determinação.
Ela adentrou a casa antes dele responder. O frio seguiu-a, e dissipou-se rapidamente quando ele fechou a porta.
Nikolai observou-a aproximar-se da mesa. Ela colocou o objeto embrulhado sobre a madeira, desdobrando o tecido com cuidado: um relógio grande, de carrilhão, com caixa de madeira entalhada e mostrador rachado. De vidro quebrado, as engrenagens pareciam emaranhadas, distorcidas pelos anos.
Ele emudeceu. Estancou sem tocar o relógio. Ela fitou-o de novo.
— Não vai se abrir sozinho. — Disse com humor, sem sorrir.
Nikolai aproximou-se hesitante: o relógio, como um animal de metal frio prestes a despertar, respondeu sob seus dedos, e um arrepio subiu-lhe pelas costas.
— Está quebrado faz tanto tempo… — Ele finalmente comentou.
— Eu sei — respondeu a mulher. — Isso não importa. Você precisa fazê-lo funcionar.
Ambos calaram-se longamente, Nikolai hipnotizado pelo relógio, ela contemplando essa cena. O vento uivava fora; dentro, apenas suas respirações misturadas ao murmúrio discreto de um único relógio na prateleira, marcando um tempo incerto.
Nikolai assentiu, mais para si que para a estranha. Ele não sabia exatamente o que o levara a aceitar. Talvez o tom na voz dela? Ou o próprio relógio, que parecia esperá-lo.
Retornou a sua estação de trabalho e aproximou o relógio. Ao iniciar a desmontagem, foi tomado por estranha familiaridade, pressentia aquele mecanismo, conhecido de algum lugar que não se recordava.
A mulher ficou atrás dele feito uma sombra enquanto ele trabalhava.
O relógio exercia presença imponente sobre a mesa de operações. A madeira quase noturna vestia-se com entalhes finos, arabescos feitos à mão, entrelaçados em formas quase orgânicas. Apesar de algumas partes desgastadas, o trabalho do entalhador carregava uma precisão que Nikolai reconheceu de perto: estava diante de uma peça de uma época em que se venerava o tempo.
O mostrador, embora rachado, mantinha os números romanos dispostos em um círculo perfeito, suas linhas precisas, quase apagadas, evocavam traços na neve prestes a desaparecer. O vidro partido formava uma rede de fissuras que remetia a um mapa. Nikolai passou os dedos pelas bordas da rachadura: não cortavam.
— Não é comum. — Murmurou ele.
A mulher não respondeu. Ele sentiu seus olhos sobre si; não se virou. Abriu a porta frontal do relógio: as dobradiças protestaram o movimento, expondo o interior empoeirado e denso. Engrenagens, cordas, molas e contrapesos que desafiaram décadas de abandono, agora presos pelas armadilhas do tempo.
Começou a sondar as peças com uma pinça: algumas estavam rígidas qual pedras, outras quase se moviam sozinhas, sensíveis ao menor toque. A corrente do badalo, ainda presa ao seu peso de bronze, oscilava ligeiramente, embora não a tocasse. Sentiu o relógio acordando.
— Quem fez isso? — Olhos fixos no mecanismo.
Ela demorou a responder. Quando finalmente o fez, sua voz veio de longe, muito longe, transportada pela neve acumulando-se fora dali.
— Não sei. Foi um presente.
— De quem?
Ela não respondeu, e Nikolai não insistiu. Ele sabia o suficiente sobre o silêncio das pessoas para entender.
Continuou a trabalhar, dedos entre engrenagens. Aos poucos, sentiu o ar ao redor do relógio mudar: uma densidade sutil, como se a sala contraísse-se ao redor dele e da peça. Quando ajustou uma das molas maiores, um som percorreu todo o relógio: sino distante. Nikolai recuou por reflexo; a peça imobilizou-se. Mirou a mulher, esperando alguma reação. Ela não se moveu.
— É o badalo. — Ele quebrou o silêncio. — Ainda está preso à engrenagem principal. Isso não deveria acontecer sem movimento.
Ela inclinou a cabeça esperando mais. Nikolai inclinou-se sobre o relógio. Sentiu o ar mais frio, embora apenas a mesma luz fraca entrasse pela janela.
Inspecionando, percebeu uma pequena inscrição entalhada na base interna do relógio, com letras tão finas que mal se distinguiam da textura natural da madeira. Aproximou o candeeiro para ler melhor.
“Tempo é tudo o que nos resta.”
Nikolai ainda entendia o idioma antigo. Mirou a frase esperando que ganhasse vida própria. Sentiu a mulher aproximar-se pela respiração quase inaudível.
— Já viu isso antes? — Ele perguntou.
— Não.
Não acreditou nela. Calou-se e voltou ao trabalho: cada engrenagem movida puxava-o mais fundo no que não sabia nomear. Um ritmo irregular feito coração tentando ser reanimado. Quando finalmente soltou o badalo, esse emitiu um tremor baixo, abafado, profundo, que ressoou pela casa.
O som trouxe algo: Nikolai sentiu uma pressão nos ouvidos, aproximação de um vento distante. Por um instante, teve a impressão de a luz da sala mudar. Não era mais cinzenta e pálida; quente, dourada, como se a neve lá fora desaparecesse.
Ele fechou os olhos com força e sacudiu a cabeça, afastando a sensação. Ao olhar para o relógio, sentiu-se observado: algo naquele mecanismo prestava atenção.
— É só um relógio. — Tentou se convencer.
A mulher recuou um passo.
— Não, não é.
Nikolai fitou-a: cogitou perguntar o que queria dizer; não conseguiu. Voltou ao trabalho.
No silêncio, o badalo oscilou surda e lentamente, enquanto Nikolai pressentia algo ou alguém prestes a acordar.
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