sábado, 12 de julho de 2025

Uma tentativa de topologia lacaniana formalizada de maneira precisa

Uma tentativa de topologia lacaniana formalizada de maneira precisa

Uma tentativa de topologia lacaniana formalizada de maneira precisa

Igor da Silva Livramento

2025-07-11

1 Introdução

Este ensaio visa a tatear a exposição que Jacques Lacan faz do sujeito desejante como um toro (objeto matemático) e da vinculação tripla dos registros psíquicos denominados Real, Simbólico e Imaginário, mas não feita em pares (dois a dois).

Apesar do estado parcial deste texto, pretende-se alcançar o formalismo rigoroso das noções apresentadas pelo psicanalista francês: ele afirma que seu emprego de topologia (ele trabalhou posteriormente com teoria dos nós) não é meramente analógico ou alegórico (metafórico em suas palavras), senão algo intencional e necessário de sua parte, pois a matemática conseguiria representar adequadamente a estrutura (teórica, psíquica) do que está em jogo. Pontualmente, ele afirma essa ideia no texto “L’Étourdit”, publicado originalmente em 1973.

2 Apresentação do formalismo

Lacan refere-se ao toro já em 1953, mas, nos anos 1970, com sua ênfase no emprego de formalismo lógico-matemático para melhor apresentar e representar seu ensino, retomará as propriedades desse e de outros objetos matemáticos.

Já no Seminário 7, dos anos 1959–60, o psicanalista expusera o estatuto êxtimo (exterior + íntimo) da subjetividade, desativando a separação entre interioridade e exterioridade relativa à subjetividade.

No Seminário 13, de 1965–66, ele assevera que o toro representa adequadamente (de maneira estruturalmente dogmatizável) a relação entre a função da demanda e a do desejo (falando propriamente no nível da descoberta freudiana, é dizer, quanto ao neurótico e ao inconsciente). Então explica, ao longo de mais de um encontro desse seminário, como são necessárias duas coordenadas para situar qualquer ponto no toro, as quais denomina D e d (que explica dizendo que duas demandas são necessárias para formar um desejo ou vice-versa). Isso será traduzido na formalização adequada do toro como o produto cartesiano de dois círculos na subseção a seguir.

2.1 Formalização do toro

Formalmente, o toro bidimensional — denotado T^2 — pode ser definido como o produto cartesiano (topológico) de dois círculos (unitários), denotado: T^2 \cong S^1 \times S^1, em que S^1 = \{ z \in \mathbb{C} : |z| = 1 \}, ou seja: define-se cada círculo como o conjunto dos números complexos de módulo unitário, dotado da topologia subespacial de \mathbb{C}. Isso significa que qualquer ponto no toro1 pode ser descrito por um par ordenado de coordenadas circulares — (\theta; \phi) medidas angulares — relativas ao primeiro e ao segundo círculo, como latitude e longitude na superfície do globo terrestre.

Alternativamente, o toro também pode ser construído como o quociente do espaço euclidiano bidimensional contínuo pelo espaço euclidiano bidimensional discreto. Geralmente se tem noção do espaço euclidiano bidimensional contínuo através do estudo escolar do plano cartesiano composto por duas retas reais perpendiculares na origem, empregadas para se identificar qualquer ponto no plano com um par ordenado de números reais (x; y) \mid x,y \in \mathbb{R}.

Quocientar o espaço euclidiano bidimensional contínuo — representado por \mathbb{R}^2 — pelo espaço euclidiano bidimensional discreto — representado por \mathbb{Z}^2 — significa identificar todas as coordenadas de valor inteiro no plano cartesiano, dobrando efetivamente o plano cartesiano sobre si próprio. Denota-se esse quociente com: T^2 = \mathbb{R}^2 / \mathbb{Z}^2

Como explicado, \mathbb{R}^2 representa o plano cartesiano contínuo, em que qualquer ponto pode ser encontrado por um par ordenado de coordenadas reais. Já \mathbb{Z}^2 significa o plano cartesiano tomado de maneira discreta2: sobre os números inteiros, ou seja, os únicos pontos descritíveis são aqueles cujas coordenadas formam-se por pares ordenados de números inteiros, por exemplo: (0; 2), (5; -3), (-17; 29) e assim por diante.

O processo de quocientação — \mathbb{R}^2 / \mathbb{Z}^2 — considera equivalentes todos os pontos cujas coordenadas diferem por números inteiros. Trata-se do caso em que a diferença de coordenadas (x_1 - x_2; y_1 - y_2) resulta em coordenadas inteiras. Por exemplo: (1,5; 3,2) - (0,5; 0,2) = (1,5 - 0,5; 3,2 - 0,2) = (1; 3) faz com que os pontos (1,5; 3,2) e (0,5; 0,2) “colapsem” um sobre o outro (e todos que diferem por uma unidade desses também colapsam).

Pode-se alcançar uma compreensão intuitiva do toro com papel e cola: tome-se um retângulo (de papel) cujos vértices (os pontos extremos das quatro laterais) distem uma quantidade inteira uns dos outros, então se deve colar esses vértices sem cruzar o retângulo em diagonal, ou seja, colam-se vértices paralelos. Independentemente da ordem de colagem escolhida, a primeira colagem produzirá um cilindro e a segunda, uma rosquinha (por coincidir as duas extremidades do cilindro).

2.2 Propriedades do toro

A definição do toro como quocientação topológica (T^2 = \mathbb{R}^2 / \mathbb{Z}^2) preserva uma série de propriedades fundamentais que o tornam uma estrutura adequada para representar o sujeito do desejo. Trata-se de um objeto matemático combinando propriedades topológicas, diferenciais e algébricas: essa combinação permite que modele simultaneamente continuidade, transformação, repetição e estrutura global.

  • Ser uma variedade diferenciável significa que o toro assemelha-se localmente ao plano euclidiano bidimensional, ou seja, pode-se estabelecer coordenadas que se comportam como as coordenadas cartesianas habituais em qualquer ponto do toro, por isso, pode-se-lhe aplicar cálculo diferencial: definir derivadas, fluxos, curvas suaves, etc. Isso permite modelar a continuidade e a variação interna dos estados do sujeito, por exemplo. O desejo expõe-se como variável contínua: move-se, curva-se, deforma-se; pode-se descrever formalmente essa maleabilidade com campos vetoriais sobre o toro ou com deformações suaves da superfície.

  • Ser uma variedade compacta significa que o toro é limitado e fechado: não se estende ao infinito e não possui bordas. Da perspectiva psicanalítica, essa propriedade interessa, pois o desejo, mesmo com sua dinâmica interminável, permanece sempre circunscrito ao campo do sujeito. O toro não “escapa” de si próprio: qualquer sequência de transformações, identificações, ou torções retorna, de alguma maneira, ao próprio espaço subjetivo. A compacidade também garante que propriedades globais (como lacunas e enlaçamentos) não possam ser eliminadas por simples recortes ou restrições locais.

  • Ser orientável implica a possibilidade de definir um “lado” global da superfície de maneira consistente. Isso contrasta, por exemplo, com a garrafa de Klein ou a faixa de Möbius, que não são orientáveis. Mantém-se a orientação ao dar-se voltas no toro: pode-se percorrer um caminho fechado e retornar com o mesmo referencial local. Pode-se interpretar essa estabilidade da orientação como a possibilidade de manter uma consistência identitária ao longo da mudança: o sujeito pode se transformar, sofrer torções e deslocamentos, mas mantém um sentido estruturado de si.

  • Finalmente, pode-se dotar o toro de uma estrutura de grupo abeliano quando se define uma operação de adição em suas coordenadas angulares. Como T^2 \cong S^1 \times S^1, cada ponto pode ser representado por dois ângulos e a operação de grupo reduz-se à adição de ângulos \mod 2\pi.3 O caráter comutativo da estrutura (ou seja, a + b = b + a) indica que a ordem das operações internas (movimentos do desejo, encadeamentos simbólicos, fantasias imaginárias) não afeta o resultado do ponto subjetivo (ao menos em perspectiva estrutural). Articula-se isso com a ideia de que o desejo opera segundo cadeias simbólicas que se podem rearranjar sem romper a estrutura que as sustenta.

Essas propriedades convergem para justificar a escolha do toro como modelo formal do sujeito, especialmente do sujeito desejante, pois:

  • o toro admite duas coordenadas independentes para cada ponto (D e d no vocabulário lacaniano), expondo estruturalmente a articulação entre demanda e desejo;
  • também permite transformações suaves e torções internas (como os Dehn twists, discutidos na seção 3), as quais modelam mutações subjetivas, identificações, deslocamentos e recalques;
  • suas propriedades globais permanecem irredutíveis ao nível local, capturando a estrutura daquilo que escapa ao sintoma, à fala ou à cena (especialmente o desejo, que, como o toro, define-se globalmente por sua continuidade e por seu ponto central inatingível);
  • apresenta um vazio central não localizável por nenhuma coordenada, análogo ao furo no simbólico ou ao ponto de impossibilidade do gozo, aquilo que resiste à inscrição psíquica: o Real.

Esses aspectos demonstram que o toro excede a mera ilustração topológica do sujeito, servindo como estrutura teórica produtiva, capaz de destacar propriedades novas a partir do próprio formalismo. Permite modelar o sujeito como algo localmente consistente e globalmente paradoxal, como o sujeito da psicanálise: divisível, mutável e desejante, mas ainda assim estruturado.

2.3 Toro pontuado e estrutura da falta

Se o toro T^2 representa a estrutura do sujeito do desejo, pode-se interrogá-lo sob a hipótese de que o desejo constitui-se em torno de uma falta, expressa pelo objeto a, objeto causa do desejo. Essa falta não é um buraco no sentido comum, senão uma ausência estrutural, cujo efeito ocorre na própria topologia do sujeito. Em termos formais, modelaremos essa ausência como remoção de um ponto do toro, obtendo o chamado toro pontuado: T^2 \setminus {p}. Mínima operação topológica — apenas um ponto —, entretanto, promove consequências profundas: a superfície resultante não possui mais homologia de grau dois (perde o ciclo superficial que a fechava como totalidade). A homologia do toro pontuado transforma-se: H_2(T^2) \cong \mathbb{Z} \quad \longrightarrow \quad H_2(T^2 \setminus \{p\}) = 0. O ciclo de superfície desaparece; em seu lugar, resta a estrutura de borda interna representada por dois laços geradores em homologia e em \pi_1 (o grupo fundamental).

Topologicamente, o toro pontuado é homotopicamente equivalente ao buquê de dois círculos [em inglês: wedge sum]: T^2 \setminus \{p\} \simeq S^1 \vee S^1. Isso significa que o espaço resultante comporta dois laços livres, cujas combinações formam “palavras” (combinações de símbolos) no grupo livre com dois geradores: \pi_1(T^2 \setminus {p}) \cong \mathbb{F}_2.

A subjetividade, aqui, deixa de fechar-se globalmente: qualquer trajetória que contorne o ponto removido não pode mais se reduzir a um ciclo trivial. Essa impossibilidade de redução constitui a própria estrutura da falta.

O furo introduz a propriedade chamada monodromia: certos caminhos deixam de se fechar ou fecham-se torcidos, carregando memória topológica do que foi removido. Isso modela formalmente a não equivalência de certos significantes antes e após a experiência da falta: o mesmo significante, ao circular o furo, volta transformado. O desejo, assim, não apenas circula o sujeito, como também circula em torno de um ponto impossível e essa impossibilidade estrutura sua persistência. A topologia formaliza aqui aquilo que, na clínica, aparece como inconsistência constitutiva, retorno do recalcado, ou ponto de gozo opaco.

Retirar um ponto do toro mostra que o sujeito do desejo não é todo, que há um ponto fora do sentido, fora da inscrição simbólica, que o constitui e o desestrutura ao mesmo tempo.

2.3.1 Breve comentário

O toro completo (sem pontos removidos) incorpora um furo (não no sentido de um ponto ausente, mas como a impossibilidade estrutural de reduzir todos os ciclos a um único ponto: a necessidade de duas coordenadas angulares para situar um ponto qualquer em sua estrutura/superfície). Nesse sentido, a topologia do toro formaliza a divisão do sujeito. Ainda nesse sentido, o furo lacaniano é estrutural e não localizado. Retirar um ponto do toro — como fizemos acima (arriscadamente) — expõe o latente: a impossibilidade de fechamento total, exposta como perda de homologia de grau dois, ou como a liberação dos laços em grupo livre.

Buquê de dois círculos como grupo livre formado pela liberação dos dois ciclos/laços do toro

Da perspectiva topológica, retirar um único ponto do toro produz uma transformação profunda: o espaço resultante, embora visualmente muito parecido com o toro original, não mais sustenta os mesmos ciclos globais. Especificamente, o toro furado T^2 \setminus \{p\} é homotopicamente equivalente a um buquê de dois círculos, ou seja, dois laços livres colados num ponto (uma figura em forma similar ao desenho do número 8 ou \infty). O toro furado (T^2 \setminus \{p\}) emerge como união pontual de dois círculos (S^1 \vee S^1), resultando da quocientação da união disjunta (também chamada união discriminada) com equivalência (identificação) entre os pontos de base dos dois círculos (mais geralmente: dos dois espaços). O ponto retirado do toro — digamos (\theta_0; \phi_0 ) nas coordenadas angulares ou simplesmente (a_0, b_0) — até então um ponto distinto, identificado distintamente pelos ciclos, passa a funcionar como ponto base comum para os dois ciclos do toro. Denotamos a união pontual como: S^1 \vee S^1 = (S^1 \coprod S^1) / \sim, em que \sim denota a equivalência de fechamento da relação \{(a_0; b_0)\} entre os pontos base, sua equivalência e consequente identificação, colando os círculos, como na imagem acima.

Toro com ciclos meridional e longitudinal identificados e um ponto base entre os ciclos

Isso ocorre porque o ciclo bidimensional da superfície do toro — aquele que percorre toda sua extensão — requer continuidade global para existir. Ao se remover um ponto, já não se pode percorrer essa superfície sem interrupção. Restam dois caminhos independentes: um que contorna o buraco central (longitudinal), outro que o atravessa transversalmente (meridional). Ambos ainda existem, porém, não podem mais se recombinar como antes, são agora dois laços livres, não amarrados por uma superfície comum. Em termos de homologia:

  • no toro completo, temos H_2(T^2) \cong \mathbb{Z}, refletindo o ciclo de superfície;
  • após a retirada do ponto, H_2(T^2 \setminus \{p\}) = 0: rompeu-se o ciclo bidimensional (tomar as duas coordenadas em uma ordem não equivale a tomá-las em outra ordem, pois já não comutam mais);
  • em seu lugar, a homologia de grau 1 permanece H_1 \cong \mathbb{Z} \oplus \mathbb{Z}, agora proveniente de um espaço fraturado.

O grupo fundamental muda ainda mais radicalmente: deixa de ser abeliano/comutativo (\mathbb{Z} \times \mathbb{Z}) para tornar-se o grupo livre em dois geradores (\mathbb{F}_2). Isso significa que as trajetórias ao redor dos dois laços não são mais equivalentes nem redutíveis entre si: mantêm memória da ordem e do caminho, como o significante retorna torcido ao contornar a falta.

Esse fenômeno afigura-se central para a perspectiva psicanalítica. A perfuração do toro modela a emergência de um ponto irrepresentável: o \text{objeto } a como buraco realmente ocorrente. O que antes parecia uma totalidade (um toro fechado) revela (com a retirada mínima de um ponto) que sua coesão simbólica dependia de uma costura implícita (jamais garantida). Resta a dispersão dos caminhos simbólicos, que agora já não podem mais se recompor num ciclo totalizante (como o sujeito que, tocado pela falta, já não pode mais recobrar sua inteireza imaginária).

Assim, a equivalência homotópica com o buquê de dois círculos excede a mera curiosidade técnica, pois formaliza a ideia de que o desejo, após a perfuração da estrutura, articula-se como circulação em torno do impossível e de que o sujeito permanece como corte de consistência e marca de gozo.

2.4 Transição para os feixes

A retirada de um ponto do toro revela a fragilidade de sua homologia global e a instabilidade das costuras simbólicas que essa homologia global sustentava. Se no toro completo havia a possibilidade de seções globais contínuas — ainda que não triviais — agora essas seções se torcem ao redor da ausência e já não podem mais ser coladas sem contradição.

Modela-se esse fenômeno pela noção de feixe com monodromia não trivial. Um feixe4 associa, a cada ponto do toro, uma “fibra” de possibilidades (por exemplo, valores simbólicos locais ou modos de significação). A cada caminho sobre o toro, o feixe define como transportar essas possibilidades ao longo da trajetória. No toro pontuado há caminhos que, ao dar uma volta completa em torno do ponto retirado, retornam torcidos: a informação transportada não volta ao mesmo lugar simbólico.

Chama-se monodromia essa torção, o que pode ser identificado como efeito de gozo que o simbólico não consegue reabsorver, como resto irredutível de uma significação que passou pela falta, etc.: é a marca deixada pela ausência como memória estrutural da impossibilidade de costura total.

Aqui reencontramos os três registros lacanianos — Real, Simbólico e Imaginário (\mathcal{R \; S \; I}) — em sua tensão topológica. Cada registro pode ser modelado como um feixe distinto sobre o toro:

  • \mathcal{R} como o efeito da monodromia, aquilo que não se fecha, que retorna torcido ou impossível.
  • \mathcal{S} como o feixe que busca costura global de significações;
  • \mathcal{I} como o feixe que localiza representações e imagens de unidade.

No toro completo, mesmo sem ponto removido, os três feixes podem ser colados globalmente, mas apenas sob certas condições de compatibilidade (ciframos essa compatibilidade na fórmula): \mathcal{R} + \mathcal{S} + \mathcal{I} = \mathbb{1}, em que a unidade \mathbb{1} representa a consistência da estrutura psíquica. A topologia dos feixes sobre o toro permite interpretar essa fórmula como a existência de uma seção global comum ou uma colagem coerente entre os três registros.

No entanto, ao retirar um ponto — ao introduzir explicitamente a falta —, essa unidade entra em crise. Os feixes podem ainda existir, mas sua colagem conjunta obstrui-se pela monodromia.5 A tentativa de colar os três registros num só campo resulta em torções irredutíveis: a seção que fecha para \mathcal{S} já não fecha para o \mathcal{R} e \mathcal{I} duplica-se, inverte-se, descola-se.

Verificar a validade da fórmula \mathcal{R} + \mathcal{S} + \mathcal{I} = \mathbb{1} sobre o toro pontuado significa, portanto, examinar se ainda é possível encontrar uma compatibilidade entre três feixes que se torcem de maneira distinta ao redor da falta. Emerge a hipótese (tanto topológica quanto clínica) de que essa compatibilidade já não se dá mais: só pode surgir por um ato de nomeação, de suplência, de costura inventada após o ocorrido (a perfuração/eliminação do ponto). A monodromia impede a equivalência natural dos registros. A unidade, se vier, será efetuada — não deduzida — da estrutura.

Assim, a teoria dos feixes sobre o toro pontuado traduz e formaliza o drama estrutural do sujeito: toda significação carrega torção e todo gozo marca a impossibilidade de uma colagem simbólica total. Então resta habitar a torção, operar em seu seio, fazer dessa torção a própria matéria do trabalho analítico.

3 Comentários e desenvolvimento

Para melhor compreender o emprego do formalismo da subjetividade toroidal, faz-se necessário interagi-lo com outras definições. Em lugar de trazer outra definição lacaniana, traremos uma possibilidade própria, a qual corre o risco de não ser aceita, é verdade, mas que tentaremos justificar assim mesmo. Trata-se da possibilidade de apresentar os três registros (psíquicos) — Real, Simbólico e Imaginário — como três feixes sobre o toro.

3.1 Os três registros como feixes sobre o toro

Se representamos o sujeito do desejo pelo toro T^2, então os registros com os quais e contra os quais se constitui (Real, Simbólico e Imaginário) podem ser compreendidos como estruturas que “vivem sobre” esse espaço toroidal. Em matemática, quando queremos descrever como certas informações distribuem-se localmente sobre um espaço (como o toro) e como essas informações articulam-se globalmente, empregamos a noção de feixe.

Um feixe (sheaf em inglês) associa um conjunto ou outro tipo de dado (informacional) a cada região aberta de um espaço topológico de tal maneira que:

  • podemos restringir essas informações a sub-regiões;
  • se temos informações compatíveis em pedaços que cobrem uma região, conseguimos “colá-las” em uma informação global (como fazer um mapa com peças de quebra-cabeças).

Essa ideia mostra-se potente para modelar as relações do sujeito do desejo com os três registros. Podemos pensar, por exemplo, que cada pequena região do toro representa uma situação psíquica (ou social) concreta, na qual certos traços do Real, do Simbólico ou do Imaginário manifestam-se (localmente). O feixe permite-nos descrever como essas manifestações variam ao longo da superfície do toro e, mais importante, se conseguem se articular em uma totalidade coerente.

Propomos, então, os seguintes três feixes principais:

  • o feixe do Imaginário, denotado \mathcal{I}, associa imagens do eu, identificações parciais, especulares e afetos localizados, etc.;
  • o feixe do Simbólico, denotado \mathcal{S}, associa a cada região do toro as estruturas simbólicas locais (significantes, nome(s)-do-pai, regras da gramática inconsciente, etc.);
  • o feixe do Real, denotado \mathcal{R}, é mais sutil: associa a cada região aquilo que resiste à inscrição: rupturas, buracos, traumas, o que escapa à simbolização (em termos técnicos, pode-se tratá-lo como um feixe sem seções globais).

Essa representação permite-nos capturar uma propriedade essencial da teoria psicanalítica lacaniana: os três registros não se ligam dois a dois, senão todos juntos: chama-se isso nó borromeano, o que se traduz na linguagem dos feixes como uma condição de colagem que só se satisfaz quando os três estão presentes. Se qualquer um dos feixes for retirado, essa composição colapsa. Denotaremos isso expondo como nenhuma combinação parcial dos feixes será suficiente para alcançar a totalidade (somente a composição dos três juntos produz a estrutura completa do sujeito):

\begin{array}{rcl} \mathcal{R} \otimes \mathcal{S} & \nrightarrow & \mathbf{1} \\ \mathcal{S} \otimes \mathcal{I} & \nrightarrow & \mathbf{1} \\ \mathcal{I} \otimes \mathcal{R} & \nrightarrow & \mathbf{1} \\ \varphi: \mathcal{R} \otimes \mathcal{S} \otimes \mathcal{I} & \longrightarrow & \mathbf{1} \end{array}

Aqui, \mathbf{1} é o feixe trivial (constante) e a aplicação \varphi expressa que a articulação conjunta dos três registros produz o sujeito do desejo enquanto unidade.

Essa morfologia implica que o sujeito constitui-se como efeito de colagem: não há subjetividade (desejante) anterior ao entrelaçamento dos registros. O sujeito só aparece quando: \mathcal{S} oferece uma malha significante local, \mathcal{I} acopla identificações e \mathcal{R} intervém como aquilo que não se deixa articular. Essa tríplice interdependência implica que o sujeito é: emergente, pois não pré-existe ao entrelaçamento, quebrável, pois falha na falta de qualquer registro, perdendo consistência (como em desintegração) e relacional, ou seja, não há sujeito sem o sistema que o sustenta.

Como dito, essa colagem pode ser interpretada como uma projeção dos três feixes para o feixe trivial. Contudo, também pode ser entendida como a redução do múltiplo ao Uno: o sujeito como efeito de totalização. Dizer que o sujeito efetua-se por \mathbb{1} (o feixe trivial) não simplifica nada: indica que o sujeito do desejo é o lugar lógico no qual todas as projeções convergem, mas sem carregar consigo o conteúdo dos três registros. Dessa maneira, o sujeito aparece como nó vazio, ponto de colagem e local de articulação de tudo, mas no qual nada se fixa. Pode-se interpretar como o equivalente formal da “função de furo” que se associa ao sujeito do significante.

(Visualmente, podemos imaginar os três feixes entrelaçados como anéis borromeanos com o sujeito no encontro dos três.)

3.1.1 Explicação técnica da monodromia

Em termos técnicos, a monodromia de um feixe \mathcal{F} sobre um espaço topológico X é uma ação do grupo fundamental \pi_1(X, x_0) sobre a fibra do feixe em um ponto base x_0 \in X.

Seja \mathcal{F} um feixe localmente constante (ou seja, um feixe cuja restrição a pequenos abertos é trivial), com fibra típica A (um grupo, espaço vetorial, conjunto, etc.). Para cada laço baseado em x_0, o levantamento do laço no espaço total do feixe induz um automorfismo da fibra6: essa associação define um homomorfismo de monodromia:

\rho : \pi_1(X, x_0) \to \mathrm{Aut}(A)

Chama-se essa aplicação (\rho) representação de monodromia do feixe, pois codifica como as “seções locais” do feixe torcem-se ao longo dos caminhos do espaço base. Se a imagem de \rho é trivial, então o feixe admite uma seção global constante; caso contrário, as seções globais estão obstruídas pela torção.

No caso do toro completo T^2, temos \pi_1(T^2) = \mathbb{Z} \times \mathbb{Z}, sendo possível construir feixes cujas monodromias associam, por exemplo, um automorfismo M \in \mathrm{GL}(n, \mathbb{R}) para cada gerador do grupo fundamental (um para o laço meridional, outro para o longitudinal). Se esses dois automorfismos não comutam, a monodromia do feixe não é trivial e a colagem global está obstruída.

Quando o toro é furado, ou seja, T^2 \setminus \{p\}, o grupo fundamental torna-se o grupo livre em dois geradores: \mathbb{F}_2. Como \mathbb{F}_2 é muito maior e mais flexível que \mathbb{Z} \times \mathbb{Z}, há muito mais espaço para torções não triviais. A monodromia pode, nesse caso, codificar uma falta irreparável de seção global, uma memória permanente da circulação: todo laço ao redor da ausência pode ser interpretado como um traço diferencial deixado na fibra, formalizando topologicamente o que se descreve como efeito do gozo ou da castração no campo do significante.

3.2 Outra propriedades

Empregamos a noção de feixe devido a sua capacidade de capturar formalmente uma das possibilidades interpretativas da fórmula lacaniana “o inconsciente está estruturado como (uma) linguagem”, a saber: cada região local do toro pode ter uma “gramática psíquica” distinta, seja uma combinatória significante, uma economia de gozo, uma lógica familiar, etc. Essas gramáticas locais podem (ou não) ser compatíveis entre si; a subjetividade requer que se possa costurar essas gramáticas locais em algo global (p. ex.: um discurso, um sintoma, uma repetição). A não globalizabilidade de certos feixes (como \mathcal{R}) significa que nem toda compatibilidade local pode ser promovida a um todo (o que modela formalmente a inconsistência do gozo ou a impossibilidade de simbolizar tudo).

Seja T^2 = S^1 \times S^1 o toro que representa o suporte topológico do sujeito do desejo, como definido na subseção anterior, consideramos três feixes: \mathcal{R}, \mathcal{S}, \mathcal{I} : \textbf{Open}(T^2)^{\mathrm{op}} \to \mathcal{C}, em que \mathcal{C} é uma categoria adequada de estruturas simbólicas (como conjuntos, álgebras, espaços topológicos ou categorias, etc.) e \textbf{Open}(T^2) é a categoria dos abertos do toro com inclusões como morfismos. A interdependência borromeana dos três feixes pode ser descrita como uma condição de colagem não-trivial. Formalmente: para qualquer cobertura aberta \{U_i\}_{i \in I} de T^2, a existência de uma seção global s \in \Gamma(T^2, \mathcal{R} \otimes \mathcal{S} \otimes \mathcal{I}) tal que: s|_{U_i} = s_i, com s_i \in \Gamma(U_i, \mathcal{R} \otimes \mathcal{S} \otimes \mathcal{I}), e, para todo par i,j, temos s_i|_{U_i \cap U_j} = s_j|_{U_i \cap U_j}, mas nenhuma das projeções \mathcal{R} \otimes \mathcal{S}, \mathcal{S} \otimes \mathcal{I}, \mathcal{I} \otimes \mathcal{R} possui seção global compatível com os s_i, define uma estrutura borromeana. Escrevemos isso como: \begin{cases} \Gamma(T^2, \mathcal{R} \otimes \mathcal{S} \otimes \mathcal{I}) \neq \varnothing, \\ \Gamma(T^2, \mathcal{R} \otimes \mathcal{S}) = \varnothing, \\ \Gamma(T^2, \mathcal{S} \otimes \mathcal{I}) = \varnothing, \\ \Gamma(T^2, \mathcal{I} \otimes \mathcal{R}) = \varnothing. \end{cases} Essa relação reflete a exigência de que os registros não funcionem isoladamente; só há subjetivação desejante (surgimento de unidade desejante do e no sujeito) com os três registros atuando simultaneamente.

Formalizamos a condição do Real como aquilo que resiste à simbolização pela ausência de seção global: \Gamma(T^2, \mathcal{R}) = \varnothing, mas \Gamma(U, \mathcal{R}) \neq \varnothing para certos abertos U \subset T^2, ou seja: o Real apresenta-se localmente, mas nunca globalmente (o que se alinha com a definição do Real como o que jamais se inscreve). Podemos até definir um predicado: \mathrm{LocalReal}(U) \coloneqq \Gamma(U, \mathcal{R}) \neq \varnothing \\ \mathrm{GlobalReal}(T^2) \coloneqq \Gamma(T^2, \mathcal{R}) = \varnothing

Consideramos o feixe \mathcal{S} como dotado de estrutura adicional: cada \mathcal{S}(U) possui a estrutura de uma álgebra booleana (no caso da neurose, ou, mais amplamente, uma álgebra de Heyting, quando esse caso não estiver bem determinado): \forall U \subset T^2, \; \mathcal{S}(U) \in \mathbf{Heyt}, com morfismos de restrição r_{UV} : \mathcal{S}(U) \to \mathcal{S}(V) preservando operações lógicas (como \land, \lor, \to, \bot, \top). Isso modela o fato de que o Simbólico fornece estrutura lógica ao sujeito (leis, significações que visam à estabilidade, etc.).

Para o feixe \mathcal{I}, propomos que seja dotado de um endomorfismo reflexivo natural: \rho: \mathcal{I} \Rightarrow \mathcal{I}, tal que para todo aberto U \subseteq T^2, o mapa \rho_U : \mathcal{I}(U) \to \mathcal{I}(U) satisfaça: \rho_U \circ \rho_U = \rho_U (idempotência reflexiva) e \mathrm{Fix}(\rho_U) representa os pontos de identificação especular (p. ex.: o ego ideal). Esse endomorfismo simula o eixo do estádio do espelho, formalizando a constituição imaginária do eu.

Partimos da representação clássica do toro T^2 como o quociente \mathbb{R}^2 / \mathbb{Z}^2 ou como o produto S^1 \times S^1, com S^1 = \mathbb{R} / \mathbb{Z} (o círculo unitário pensado como o quociente da reta pelos inteiros, o que justifica sua periodicidade: x \sim x + n, com n \in \mathbb{Z}). Formalizemos dois tipos de aplicações sobre esse espaço.

A suspensão pode ser compreendida como um mapa contínuo que estende um espaço de menor dimensão em direção a uma dimensão superior. Em nosso caso, interessa entender a suspensão de um caminho circular em direção a um cilindro, após isso, a identificação das bordas desse cilindro (como um toro).

Formalmente, a suspensão topológica de um espaço X, denotada \Sigma X, é o espaço: \Sigma X = (X \times [0,1]) / (X \times \{0\} \cup X \times \{1\}), em que os extremos X \times \{0\} e X \times \{1\} colapsam. Em nosso caso, contudo, operamos informalmente com a ideia inversa: temos o cilindro C = S^1 \times [0,1] e colamos suas bordas para obter T^2.

Agora, consideremos o toro T^2 = S^1 \times S^1. Fixamos uma curva simples fechada \gamma \subset T^2, que representa uma das direções circulares (p. ex., a direção do primeiro fator S^1). Um Dehn twist [torção de Dehn] ao longo de \gamma é um automorfismo do toro f: T^2 \to T^2 tal que: fora de uma vizinhança tubular de \gamma, f é a identidade e dentro dessa vizinhança (que é homeomorfa a um cilindro), f realiza uma torção: gira transversalmente em torno de \gamma, proporcional à posição ao longo da largura do cilindro. Podemos escrever esse automorfismo como: f(\theta; \phi) = (\theta; \phi + \theta) \mod 1, em que (\theta; \phi) \in S^1 \times S^1 e a torção afeta a segunda coordenada, adicionando-lhe o valor da primeira. Chama-se esse automorfismo “Dehn twist positivo” ao longo da curva meridional \theta \mapsto (\theta; \phi_0).

Mais genericamente, dado um caminho fechado \gamma que representa um gerador do grupo fundamental \pi_1(T^2), o Dehn twist T_\gamma é um elemento do grupo de automorfismos isotópicos do toro, denotado: T_\gamma \in \mathrm{Mod}(T^2) = \pi_0(\mathrm{Homeo}^+(T^2)), em que \mathrm{Homeo}^+(T^2) é o grupo dos homeomorfismos orientáveis de T^2.7

Se o toro representa o sujeito do desejo como espaço bidimensional dotado das coordenadas (D, d) e topologia compacta (sem interior e sem exterior absoluto), então os Dehn twists representam as transformações internas desse sujeito. Cada torção pode ser interpretada como uma reconfiguração estrutural interna do sujeito, provocada por eventos significativos: traumas, encontros com o desejo do outro, rupturas simbólicas, identificações imaginárias marcantes, etc. Essas torções são: locais, pois atuam em torno de uma região específica do toro; mas também globais, pois, uma vez executadas, suas consequências afetam a totalidade da superfície (alteram a homotopia de caminhos, que pode ser interpretada como a concatenação de trajetórias subjetivas); e reversíveis mas não triviais: embora possam ser desfeitas (são isotópicas), deixam traços formais persistentes (mudanças na representação do desejo através das demandas, etc.).

O conjunto de todos os Dehn twists gera o grupo de mapeamentos do toro \mathrm{Mod}(T^2), isomorfo a \mathrm{SL}(2,\mathbb{Z}), ou seja, o grupo de matrizes inteiras de tamanho 2 \times 2 com determinante \pm 1, que atuam por automorfismos sobre H_1(T^2, \mathbb{Z}) \cong \mathbb{Z}^2. Essa estrutura diz-nos que cada Dehn twist, ao atuar sobre as curvas fundamentais do toro (geradores de \pi_1), transforma os ciclos homológicos de maneira bem definida, ou seja: T_a = \begin{pmatrix} 1 & 1 \\ 0 & 1 \end{pmatrix}, \quad T_b = \begin{pmatrix} 1 & 0 \\ 1 & 1 \end{pmatrix}, representam Dehn twists nas direções a e b, respectivamente (as duas direções circulares do toro).

A formalização do Dehn twist como automorfismo interno do toro permite-nos modelar formalmente a transformação desse sujeito no tempo: como o desejo torce-se, desloca-se, reorganiza-se.

Essas torções excedem a mera perturbação, pois expõem a articulação de Real, Simbólico e Imaginário. O sujeito do desejo não obedece a um formalismo estático, senão a uma topologia ativa, torcível, reconfigurável e com a possibilidade de reelaboração estrutural. No plano matemático: os feixes \mathcal{R}, \mathcal{S}, \mathcal{I} transformam-se sob a ação de Dehn twists; as seções locais podem deixar de se colar globalmente após uma torção; a própria articulação \varphi: \mathcal{R} \otimes \mathcal{S} \otimes \mathcal{I} \to \mathbf{1} pode ser deslocada. Interpretando esse formalismo para o plano clínico e teórico indica que o Dehn twist modela a experiência de torção do espaço psíquico, cujo efeito é estrutural (modifica o modo como o sujeito representa-se e organiza-se) e tem por traço topológico permanecer (reter sua eficácia) mesmo quando as coordenadas locais (p. ex.: os significantes) parecem retornar ao mesmo lugar.

4 Conclusão por ora

Este ensaio tentou levar a sério a afirmação de Lacan de que a topologia não é apenas uma analogia conveniente para sua teoria psicanalítica, senão um modo adequado de apresentar certas estruturas do psiquismo. Seguindo essa aposta, fizemos o que Lacan anunciou: fornecemos uma formalização rigorosa do toro como modelo do sujeito do desejo, articulando-o com ferramentas de topologia algébrica, homologia, grupos fundamentais, feixes e monodromia. Uma consequência notável dessa formalização jaz na possibilidade de distinguir, de maneira precisa, duas formas de falta:

  • uma falta estrutural e não localizada, já inscrita no toro completo (a impossibilidade de uma coordenação unívoca, a divisão subjetiva, o furo estrutural);
  • e uma falta pontual e localizada, introduzida topologicamente pela retirada de um ponto na superfície toroidal (formalizando os efeitos produzidos pelo objeto causa do desejo, o \text{objeto } a).

Essa distinção permite articular a hipótese de dois regimes distintos do Real:

  • um Real tópico e dinâmico, surgido como efeito da monodromia, resistência à colagem de seções simbólicas e imaginárias;
  • e outro Real estrutural, prévio a qualquer inscrição, inerente à própria forma toro, que impede sua redução a uma superfície simplesmente conexa.

A operação matemática da retirada de um ponto revelou-se extremamente produtiva, pois aboliu a homologia de grau 2, impossibilitando o fechamento global, liberando a estrutura de palavras no grupo livre (\pi_1 \cong \mathbb{F}_2), o que permite descrever clinicamente os efeitos da castração simbólica como torções irredutíveis nas trajetórias do sujeito e expor como o desejo circula, mas não mais retorna ao mesmo lugar (os Dehn twists que percorrem o toro retornam diferentes e essa diferença é, simultaneamente, o gozo e o furo do sentido).

Formalizar os registros RSI como feixes sobre o toro permite compreender a constituição do sujeito como colagem entre regiões localmente consistentes, mas globalmente obstruídas. A fórmula \mathcal{R} + \mathcal{S} + \mathcal{I} = \mathbb{1} — válida apenas em regimes topológicos nos quais a monodromia é trivial — torna-se uma hipótese no toro pontuado (ou “perfurado”): sua validade depende da existência de uma costura inventiva, singular e não natural.

Nessa situação, a matemática contemporânea contribuiu, além de analogias, delimitações precisas de:

  • quais estruturas permitem costura,
  • onde a costura está obstruída
  • e como essa obstrução pode ser interpretada como efeito formal do desejo, do gozo e da falta.

A formalização empregada neste ensaio, ainda que incompleta, sugere que a topologia representa a estrutura subjetiva de maneira quase explicativa: oferece critérios internos para distinguir entre o possível e o impossível da simbolização. A função do furo (como condição de constituição do sujeito) e a monodromia (como registro da impossibilidade do Um) transpõe-se de revelações clínicas para propriedades topológicas precisas.

O trabalho analítico, então, pode ser visto como aquilo que tenta construir, localmente, uma colagem provisória dos três feixes — uma seção torcida, porém compatível — sabendo que já se perdeu a unidade absoluta e sem resto globalmente.


  1. Lembrando que esse toro é uma superfície bidimensional, ou seja, algo achatado, plano, sem preenchimento, desprovido de interioridade volumétrica.↩︎

  2. Em matemática, discreto opõe-se a contínuo; em um exemplo: se os números reais são contínuos, porque não há saltos, os números inteiros são discretos, pois há um salto entre dois números.↩︎

  3. Lê-se: “módulo 2 pi”; “módulo” é o mesmo modo de calcular que utilizamos com o relógio de ponteiros: determinamos uma equivalência, como 0 \sim 12, e calculamos sempre respeitando essa equivalência.↩︎

  4. Feixes com conexão plana

    Um feixe com conexão plana sobre um espaço topológico X é, intuitivamente, um feixe no qual é possível “transportar” a informação ao longo de caminhos de maneira consistente e sem curvatura interna. Tecnicamente, trata-se de um feixe localmente constante cujo comportamento global determina-se unicamente pela monodromia (ou seja, pela maneira como as fibras transformam-se ao longo dos laços de X).

    Em linguagem precisa, um fibrado vetorial plano com conexão plana é um par (E, \nabla), no qual E \to X é um fibrado vetorial e \nabla é uma conexão (um operador que permite comparar fibras sobre pontos diferentes), tal que a curvatura \Omega_\nabla da conexão seja nula. No caso dos feixes localmente constantes, a curvatura já é trivial e a conexão plana reduz-se a uma representação do grupo fundamental: \rho : \pi_1(X, x_0) \to \mathrm{Aut}(A), que determina completamente o comportamento global do feixe. Em outras palavras, em um feixe com conexão plana, toda informação sobre a maneira de as seções variarem ao longo do espaço base está codificada nos laços e na monodromia que impõem.

    Esse conceito mostra-se crucial quanto à estrutura simbólica do sujeito: se o registro Simbólico for modelado por um feixe com conexão plana sobre o toro, sua globalidade será determinada pelas torções impostas pelas trajetórias que contornam o buraco, ou seja, pelo desejo. Quando a monodromia não é trivial, não há retorno puro: o campo Simbólico está necessariamente torcido pela topologia do desejo.↩︎

  5. Exemplo de monodromia com matrizes em \mathrm{GL}_2(\mathbb{R})

    Considere um fibrado vetorial plano sobre o toro T^2 com fibra \mathbb{R}^2, no qual se representa a monodromia por um homomorfismo: \rho : \pi_1(T^2) \cong \mathbb{Z} \times \mathbb{Z} \to \mathrm{GL}_2(\mathbb{R}), associando a cada gerador do grupo fundamental uma matriz invertível real 2 \times 2. Sejam a, b os geradores correspondentes aos ciclos meridional e longitudinal. Um exemplo de tal representação seria: \rho(a) = \begin{pmatrix} 1 & 1 \\ 0 & 1 \end{pmatrix}, \quad \rho(b) = \begin{pmatrix} 1 & 0 \\ 1 & 1 \end{pmatrix}. Essas matrizes não comutam: \rho(a)\rho(b) \neq \rho(b)\rho(a), o que mostra que, embora \pi_1(T^2) seja abeliano (comutativo), a representação pode ser não abeliana (não comutativa). Essa não comutatividade reflete torções internas do feixe, que se manifestam na impossibilidade de uma trivialização global.

    Se essas matrizes tivessem determinante 1 e entradas inteiras, pertenceriam a \mathrm{SL}(2, \mathbb{Z}) e corresponderiam a homeomorfismos orientáveis do toro. Entretanto, em \mathrm{GL}_2(\mathbb{R}), a monodromia expressa uma torção mais geral: uma deformação vetorial associada ao trajeto do sujeito sobre a topologia do desejo.

    Esse tipo de estrutura formaliza a ideia de que o significante, ao circular, retorna transformado: o vetor simbólico sofre uma transformação linear ao completar seu giro (não há retorno sem resto e esse resto é o traço do gozo).↩︎

  6. Automorfismo de fibra e homomorfismo de monodromia

    Seja \mathcal{F} um feixe localmente constante sobre um espaço topológico conexo X, com fibra típica A (por exemplo, um grupo abeliano, um espaço vetorial, um conjunto finito, etc.); esse feixe pode ser descrito, de forma equivalente, por um fibrado plano com conexão discreta, no qual a fibra A “viaja” ao longo de caminhos em X.

    Para um ponto base x_0 \in X, cada laço fechado baseado em x_0 (isto é, um elemento de \pi_1(X, x_0)) pode ser “levantado” ao fibrado, produzindo um automorfismo da fibra \mathcal{F}_{x_0}. Essa associação define um homomorfismo de monodromia: \rho : \pi_1(X, x_0) \to \mathrm{Aut}(A), em que \mathrm{Aut}(A) é o grupo dos automorfismos da fibra. A imagem de \rho descreve como os elementos da fibra transformam-se ao serem transportados ao longo dos laços do espaço base: é a memória topológica da circulação.

    Se a imagem de \rho for trivial, então as fibras “retornam idênticas” após qualquer percurso fechado: o feixe admite seções globais constantes. Mas se \rho não for trivial — como no caso do toro furado, no qual \pi_1 \cong \mathbb{F}_2 — então não há maneira de colar localmente as seções de modo globalmente coerente: a monodromia é o traço objetivo da torção simbólica que a falta in(tro)duz.

    Essa estrutura corresponde a uma falha na totalização dos registros RSI (se esses são tomados como feixes sobre o toro): cada laço ao redor da falta torce a inscrição simbólica de forma irreversível, como se a linguagem não conseguisse mais retornar sem diferença ao ponto do qual partiu (tal como ocorre clinicamente com o significante que retorna ao sujeito transformado pelo desejo).↩︎

  7. Homeomorfismos orientáveis do toro T^2

    O grupo dos homeomorfismos orientáveis do toro T^2, considerados a menos de homotopia (ou seja, até isotopia), é conhecido como o grupo modular do toro denotado por: \mathrm{Mod}(T^2) = \pi_0(\mathrm{Homeo}^+(T^2)) \cong \mathrm{SL}(2, \mathbb{Z}). Aqui, \mathrm{Homeo}^+(T^2) é o grupo dos homeomorfismos preservadores de orientação e \pi_0 denota os componentes conexos (ou seja, classes de homotopia).

    O isomorfismo com o grupo \mathrm{SL}(2, \mathbb{Z}) vem do fato de que qualquer homeomorfismo preservador de orientação induz um automorfismo do grupo fundamental \pi_1(T^2) \cong \mathbb{Z}^2, preservando a estrutura de grupo livre abeliano. Tal automorfismo corresponde a uma matriz 2 \times 2 de determinante 1 com coeficientes inteiros, ou seja, um elemento de \mathrm{SL}(2, \mathbb{Z}).

    Em termos geométricos, cada elemento de \mathrm{SL}(2, \mathbb{Z}) descreve uma maneira de torcer ou modular o toro sem rasgar nem colar, apenas deformando os dois ciclos fundamentais (meridional e longitudinal), de modo que o resultado ainda seja um toro orientável. A Dehn twist, por exemplo, é um homeomorfismo que corresponde a uma matriz de \mathrm{SL}(2, \mathbb{Z}) e pode ser entendida como um elemento gerador desse grupo modular, pois torce um ciclo ao longo do outro e, ao fazê-lo, não muda a topologia do toro, mas altera a estrutura de trajetos possíveis sobre o toro.↩︎

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