quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Notas sobre a concepção da linguagem literária enquanto mimética

Últimas especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

A pergunta pelo que é literatura levanta problemas sérios dada a constituição histórica de conceber o literário como mimético, não ontológico. Que se conceba a literatura por suas características mais gerais, faz com que se a pense como um derivado ontológico, uma vez que se retém comumente a precedência de o que é presente, tomando-o como representado no literário. Aquilo que é, o ser-presente (a forma-matriz da substância, da realidade, das oposições entre matéria e forma, essência e existência, objetividade e subjetividade, etc.) distingue-se da aparência, da imagem, do fenômeno, etc., ou seja, de qualquer coisa que, apresentando-o como ser-presente, duplica-o, representa-o, e pode, portanto, substituí-lo e depresentá-lo. Portanto, há o 1 e o 2, o simples e o duplo. O duplo vem depois do simples; ele o multiplica como acompanhamento. Se lemos a literatura como Heidegger leu Trakl, torna-se necessário conceber um elemento da e na linguagem que não está precedido por nada. Entretanto, se linguagem (literária) tem por natureza a mimese, tratar-se-ia de um espelho originário, que representa algo nunca antes presente ou apresentado. Na interpretação heideggeriana algo fenomenológica do pensamento grego antigo, mimese significa, antes de imitação, a presentação da coisa em si, da natureza, da physis que se produz, engendra-se, e aparece (a si) como realmente é, na presença de sua imagem, sua face, seu aspecto visível. Mimese assim concebida concorda com a noção de verdade como desvelamento, alétheia, o mero aparecer de o que está presente em seu aparecimento.

A noção secundária, de mimese como imitação ou representação de algo, depende de que esse algo seja aparente no primeiro sentido de mimese, depende do aparecimento da aparência; não fosse assim, seria difícil (ou impossível) imitá-lo. A maneira como Heidegger trata a poesia face-a-face a linguagem cotidiana seria, de maneira simplificada, similar à relação entre mimese no primeiro e no segundo sentidos. Haveria, assim, a linguagem que pode ser resumida ou traduzida e até reduzida a formas lógicas, mas também haveria a linguagem (poética) que convoca à presença aquilo que nomeia, força que faz o aparente desvelar-se. Como Heidegger diz em Das Ding [A coisa]: nós só podemos representar, não importa de que maneira, apenas o que veio anteriormente à luz por sua própria vontade e mostrou-se-nos na luz que trouxe consigo. Assim, a linguagem não pode ser apreendida ou conceituada como objeto (como a noção representacional da linguagem apregoa) precisamente porque os objetos vêm à luz e permanecem na abertura da presença através da linguagem. Concebida conforme o sentido fenomenológico (ou grego) de verdade como alétheia (desvelamento, em oposição à verdade como adequação na representação), a linguagem não significaria tanto quanto mostraria. Essa nomeação não distribui títulos, não aplica termos, mas chama para a palavra. A nomeação chama.

Chamar aproxima o que chama. No entanto, essa aproximação não busca o que é chamado apenas para colocá-lo o mais próximo possível do que está presente, para encontrar um lugar para isso ali. O chamado de fato chama. Assim, traz a presença do que antes não era chamado para uma proximidade. O que tradicionalmente se consideraria o estatuto fictício da linguagem tornou-se a noção peculiar de Heidegger de “chamar” para a “proximidade”. Além disso, “essência” como tradução de Wesen deve ser entendida em sentido verbal ou de particípio, cuidadosamente distinto de qualquer sugestão de substancialidade. Nesse ponto, de fato, precisamos de precauções na descrição da poesia como estrutura de manifestação para não cairmos em certos clichês do pensamento empirista prevalente nos meios anglófonos. Por exemplo, poder-se-ia tomar Heidegger como rejeitando o “representacionalismo” e favorecendo o “encarnacionismo”, que um poema não deve significar, mas ser (um clichê do pensamento romântico), enfatizando o “concreto” e o “vivo” acima do “abstrato” e “representativo” — mas isso é uma incompreensão comum do pensamento heideggeriano e repete o que Derrida designou uma das (re)apropriações metafísicas mais típicas e tentadoras da escrita.

Isso seria um erro devido à insistência de Heidegger na diferença ôntico-ontológica (não sua (suposta) união). Podemos evitar esse erro e compreender melhor a concepção de linguagem heideggeriana a partir da famosa frase “A linguagem é a casa [ou morada] do Ser”. Não se trata de um movimento de esclarecer o desconhecido (“Ser”) pelo conhecido (“casa”), como as concepções tradicionais de metáfora preconizariam, mas de uma inversão dos tropos, porque é o Ser que dá à realidade dos entes presença, permitindo que a casa (ou a morada, a habitação, etc.) seja sequer pensada. O Ser diz mais da casa, permitindo que a casa seja dita, do que a casa diz do Ser. Apenas no Ser qualquer entidade pode, como a casa, tornar-se presente como é. É precisamente na linguagem que esse esclarecimento da essência (Wesen) da casa (ou da morada, da habitação, etc.) ocorre. Assim, a linguagem seria um modo de apropriação das entidades ou de tornarem-se a si. Entre o Ser e os entes (a “casa”, por exemplo), o lugar da linguagem é a diferença ôntico-ontológica, local crucial do pensamento de Heidegger, porque nenhuma leitura de Heidegger sobre o literário (e, consequentemente, acredito, nenhuma leitura responsável de Derrida) pode escapar da diferença ôntico-ontológica.

O pensamento heideggeriano propõe a diferença ôntico-ontológico porque o ser das entidades, por meio do qual são de fato, foi historicamente considerado apenas conforme o modelo de outra entidade (geralmente tida como suprema) — substância, causa primeira, summum ens. Por isso diz-se que a diferença entre ser e ente foi esquecida. A estrutura dessa diferença ôntico-ontológica é peculiar: a distinção entre uma rosa e (seu) ser é notadamente um problema distinto daquele da diferença entre uma rosa e outra ou quaisquer outras duas entidades. A estrutura dessa diferença emerge das seguintes considerações. 1) Somente como (no) ser que o reino das entidades pode estar presente ou ser de fato. 2) O Ser, pensado rigorosamente em termos de sua diferença em relação a qualquer entidade, não é uma entidade em si, mas nada e nunca pode se tornar presente ou ser do mesmo modo que uma entidade. Isso deve-se à ambiguidade ou duplicidade da presença do presente, sua aparência — aquilo que aparece como também seu aparecimento — na dobra do particípio presente. O Ser, como aparecimento (distinto da entidade que assim se torna aparente), necessariamente desaparece no própria desvelamento daquilo que torna presente.

O Ser desaparece, nunca se tornando presente, por meio da própria estrutura de presença-à-mão que realiza. Essa, então, é a estrutura da noção ilusoriamente simples de mimese como o dar-se à abertura daquilo que aparece. Então, mimese é o movimento da physis, movimento que, de alguma forma, permanece natural (no sentido não derivado dessa palavra), por meio do qual a physis, não tendo exterior, sem outro, deve ser duplicada para aparecer (a si), para produzir (a si), para desvelar (a si), para emergir da cripta em que se prefere, para brilhar em sua alétheia. Ser como desvelamento é precisamente aquilo que não aparece naquilo que se desvela (entidades). Assim, a presença ou desvelamento tem, paradoxalmente, uma estrutura de retirada ou retração ou apagamento. No que é desvelado, o desvelar mesmo se apaga. A linguagem, considerada como modo pelo qual o Ser é transferido para as entidades, participa, portanto, de uma estrutura de desvelamento ou aparecimento que nunca pode se tornar um objeto. É precisamente no desvelar da objetividade que o aparecimento apaga-se no que se torna aparente.

Como um meio de presença, a linguagem nunca pode se tornar um simples objeto de representação. A linguagem poética é a que mais incorpora essa função primordial, função da qual a noção de linguagem como representação deriva-se (e caracteriza um declínio). Em particular, a poesia produz uma diferença ôntico-ontológica, pois é por meio da linguagem que as coisas desvelam-se em seu ser. Nesse ponto, entretanto, o termo “desvelar” complica-se consideravelmente. A estrutura da diferença ôntico-ontológica pode ser descrita como uma “dobra” — uma dobra assimétrica. Uma entidade torna-se aparente em um aparecimento (Ser) que se retira em uma estrutura de apagamento como dobradura (ou redobro, para brincar com os termos). A linguagem é, propriamente, uma dobra dessa estrutura, porque, em seu próprio efeito de trazer à presença, retém-se e pode não aparecer como objeto. Como diz Heidegger, há evidências de que a natureza essencial da linguagem recusa-se terminantemente a expressar-se em palavras — na linguagem com a qual fazemos declarações sobre a linguagem.

Se a linguagem em toda parte retém sua natureza, então esse reter é da própria natureza da linguagem. Obedecendo à estrutura da diferença ôntico-ontológica, a linguagem não está presente (não é uma entidade), mas torna presente (o famoso es gibt). A linguagem apropria(-se) ou aproxima através de uma estrutura de retirada inaparente. A estrutura ontológica de um mundo encena-se na linguagem do poeta: nas aparências familiares, o poeta chama o estranho como aquilo a que o invisível confere-se para permanecer o que é: desconhecido. Em resumo, pode-se concluir que o Ser, como o aparecimento que deve permanecer invisível naquilo que torna aparente, desvela-se na linguagem poética conforme a interpretação do primeiro sentido de mimese como aparecimento. Essa seria uma conclusão superficial, entretanto, por duas razões. Primeiro, o próprio Ser (o aparecimento) nunca poderia se tornar objeto de qualquer linguagem, precisamente porque está estruturalmente em retirada. Não se pode dizer, então, que a poesia revela qualquer sentido do Ser. Segundo, a própria linguagem é o meio desse des|velar.

Essa última estrutura, portanto, não pode ser objeto da linguagem, mas a própria poesia tanto opera quanto é uma estrutura de des|velamento. A linguagem é, para Heidegger, um meio de presença (em retirada) e não pode ser objetivada. Essa estrutura seria uma mise en abyme, a linguagem poética trabalhando em uma dobra de des|velar (aparecer/ocultar) a si, sobre si, uma dobradura em que nem a linguagem (nem o Ser) é, mas uma profundeza cujo abismo resplandece conforme se oculta. Essa concepção complica as coisas para a antiga compreensão de que a linguagem (poética) repete o que é, pois demanda um espelhamento que já não tem precedente. A imagem não ocorre mais como uma duplicação (imitação), mas torna-se algo original, originário. Assim, a figura literária torna-se um acobertar que respeita essa estrutura peculiar de aparecer/ocultar no (e do) primeiro sentido de mimese. Dada essa concepção, ler (um poema, mas também em geral) já não trata sobre alguma coisa, à maneira do pensamento representacional, arguindo em favor de A, negando B, etc. Ao contrário, rumar à linguagem exige transformar esse trajeto mesmo. Portanto, não há um “conceito de” ou “visão sobre” a linguagem (literária) no pensamento heideggeriano.

O poema, habitado e transformado, vai tornando-se a si ao deslocar o reino da conceitualidade (representação) em geral. Se negamos a noção subordinante da mimese como imitação, evitando conceber a linguagem literária como derivada e secundária, então toda a metafísica entra em jogo, pois todas as noções herdadas dependem da subordinação da linguagem literária, até mesmo das noções de Ser. A querela de Derrida com o estruturalismo, como em “Força e significação” (ensaio presente em A escritura e a diferença), dá-se por ele caracterizar a linguagem literária por seus efeitos ontológicos. O literário seria peculiar por sua relação com aquilo que excede todo ente — o nada essencial sobre o qual tudo pode aparecer e se produzir na linguagem. Considerar que essa ausência-de-toda-entidade jamais se tornará objeto (de representação) expõe a peculiar estrutura de aparecimento como recuo do literário. O crítico, já que (o) nada não é (um) objeto, deve se preocupar com o modo como esse nada em si determina a si por seu desaparecimento. Na análise do Mímico, de Mallarmé, Derrida expõe a questão do literário de modo exemplar (para compreendermos seu pensamento). Mallarmé descreve uma pantomima em que o pierrô reencena o assassinato de sua mulher por cócegas nos pés até fazê-la morrer de rir.

Derrida destaca como a relação temporal é extremamente complexa nesse caso, pois “O pierrô assassino de sua esposa” foi um livreto produzido após a encenação, ao mesmo tempo em que não houve assassinato antes da encenação, sendo uma pantomima, mas o presente cênico constitui uma imbricação de presente e passado através dessa encenação e rememoração, bem como o próprio pierrô e seus gestos refazem o assassinato a cócegas na exata medida em que aludem ao ocorrido e imitam-nos. Com esse resumo fica claro como mimese como representação desloca-se na estrutura dessa pantomima (que nada precede), que a torna, portanto, uma forma de escrita originária. Simultaneamente, entretanto, a pantomima permanece uma estrutura alusiva e imitativa. Ainda que nada a preceda, essa escritura gestual não pode simplesmente ser nomeada originária sem maiores complicações. Mimese no sentido primeiro dissimula mimese no sentido segundo e vice-versa. Mallarmé chega a falar da pantomima que constitui uma alusão perpétua sem jamais quebrar o gelo ou o espelho. Derrida muito sagazmente conclui tratar-se de uma imitação (mímica, afinal) imitando nada, um duplo sem primeiro, sem precedente ou antecedente. Não há referência simples.

A mimese não apenas mimetiza, mas também é o mimetizado. Isso rompe a prioridade dada por Heidegger ao primeiro sentido de mimese (o aparecer da aparência). O deslocamento derrideano da estrutura do aparecimento (sentido primeiro de mimese) como movimento de (auto)apagamento (para não dizer (auto)extinção) pode ser compreendido em relação ao palco teatral. O modelo teatral traz à tona a questão do meio — o medium ou a mídia — através do qual a apresentação (a pantomima do mímico, o assassinato a cócegas pelo pierrô, ou até o aparecer mesmo) aparece/apresenta(-se). Se o palco é um cubo, tudo depende dessa face do cubo/parede do palco faltante, aberta. A abertura começa o espetáculo ignorada como abertura, como o elemento diáfano garantindo a transparência de transmissão do que se apresenta. Enquanto permanecemos atentos, até fascinados, vidrados (excelente termo, vista a relação com o vidro como meio diáfano, mas também como duplicador nos espelhos) em o que se apresenta, quedamo-nos incapazes de ver a presença mesma, já que a apresentação (presença) não se apresenta, não mais que a visibilidade do visível, a audibilidade do audível, o meio que desaparece no ato mesmo de permitir (algo) aparecer. Como se pode captar, o modelo teatral aborda a dobra da diferença ôntico-ontológica, focando a presença que não se apresenta, que desaparece para fazer aparecer.

No Mímico de Mallarmé, o palco torna-se um cenário estranho, pois é o próprio Pierrô. Todavia, a encenação, longe de tornar-se a quarta parede (como se diz em inglês) invisível de uma cena de representação, tornou-se aqui o único ocupante do palco. O que poderia parecer simplesmente presença (mimese sentido primeiro) “representa” a si. Além disso, o que é representado e referido não é anterior à mímica de Pierrô, ao ato de referência. Da mesma forma, não há representação, não há correspondência entre algum tema pré-existente e sua significação. A significação, sem ancoragem, envolve tudo o que parece acontecer, mesmo quando o produz. Tudo isso implica que a visibilidade do visível ou a presença do presente é apenas um efeito da estrutura da dobra (da diferença). Quando nada se encena senão a própria cena, a ilusão de profundidade do palco (do cenário) precisa se desfazer.

A quarta parede do palco teatral é apenas uma superfície (mesmo que ausente): efeito de realidade da estrutura de referência (como escreveu Derrida: a presença do presente forma apenas uma superfície). A imediatidade da apresentação do Pierrô torna-se efeito de uma estrutura de diferença. Não há presente temporal que ancoraria os movimentos de referência. Ele encena, como escreve Mallarmé e Derrida repete, sob a falsa aparência de um presente, as decisões que culminariam no crime supostamente perpetrado no momento mesmo da encenação. A ação do assassinato tem uma temporalidade absurdamente complexa: antecipação do que já terá ocorrido. A aparente imediatez da encenação é, na verdade, um não lugar. Essa imediatez da encenação permanece inelutavelmente impregnada de referimento, da estrutura referencial. Nada está à mão ou acontece na diferença entre os vários tempos dos movimentos de referência da encenação.

Assim, a aparente profundidade do palco (do cenário) como tradicionalmente se compreende a cena de representação dá (seu) lugar a uma estrutura de interrelação (referência mútua) sem centro. Esse entre deve ser concebido e compreendido sem centro relativo a qualquer sentido de ser ou estrutura de fenomenalidade. A reunião das várias estases de tempo rumo à presença do presente heideggeriana deve dar lugar ao movimento de temporalização irredutível e mesmo a pós-efeitos (como no inglês: after-effects, efeitos tardios, atrasados, lançados do futuro rumo ao passado) imprevistos. Com o Mímico de Mallarmé, deve-se arguir que nada tem lugar ou é representado — o trabalho de Derrida questiona a “imagem genuína” (que Heidegger reserva à linguagem poética e à mimese em sentido primeiro) como mero efeito de jogo de espelhos. Se a estrutura da linguagem como dobra peculiar do Ser sobre si em retirada é um mise en abyme, então, agora, sabemos que esse abismo não tem fundo. Com o Mímico, a cena de representação como profundidade do cenário dá lugar aos movimentos de superfície através do texto. Enquanto Heidegger preocupava-se com a etimologia (e a estrutura de re|velar denuncia muito disso), Derrida enfatiza os deslizes dos significantes: em um texto em que nada se apresenta, mesmo na forma de autoapagamento, trata-se menos de texto como disposição (das imagens) das coisas e mais de texto como estruturar e botar para funcionar uma máquina. A grande provocação que Derrida coloca com o Mímico de Mallarmé constitui questionar o privilégio dado ao Ser ao longo da tradição metafísica ocidental (englobando, por isso mesmo, o próprio Heidegger, que se queria fora dessa tradição e superando-a).

A dissimulação necessária, originária e irredutível do significado do ser, sua ocultação no próprio desabrochar da presença… Tudo isso indica claramente que, fundamentalmente, nada escapa ao movimento do significante e que, em última instância, a diferença entre o significado e o significante é nada. Contudo, essa falta de diferença entre o significado e o significante não é a simples presença de algo em si. De modo mais peculiar, não se trata da presença de algo (sentido primeiro de mimese) ou de sua representação (sentido segundo de mimese), mas de algo que está entre e não está em nenhum dos dois, ao mesmo tempo em que envolve ambos: o que se suspende, portanto, não é a diferença, mas os diferentes, os diferendos, a exterioridade decidível de termos diferentes. Resulta disso que o literário não se pode subordinar a qualquer metafísica ou filosofia da literatura (a querela de Derrida com a crítica temática já é bem conhecida e expõe essa questão). Se a literatura está mesmo ao lado do ser, se nada está meramente presente em sua estrutura de jogo (ou brincadeira) mimética, dificilmente se poderia determinar a presença de qualquer tema ou assunto em si: não há essência da literatura, nenhum ser-literário ou ser-literatura da literatura. Dizer que um texto literário seria sobre alguma coisa seria retornar à concepção segunda de mimese (imitação, representação), o que, a esta altura, já compreendemos não dever fazer. Uma crítica temática subordinaria o texto literário outra vez à ontologia, reduzindo-a à jurisdição daquilo que é.

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Últimas especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

Últimas especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

A criação não fornece uma resposta ao lamento; em vez disso, alimenta o ímpeto para lamentar. O lamentador não estava presente com seu desejo no momento da criação. Isso se ilustra de maneira pungente na resposta de Yahweh às lamentações de Jó. A resposta de Yahweh não é uma declaração sobre o estado das coisas, mas uma pergunta: “Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra? Faze-mo saber, se tens entendimento” (Jó 38:4). Essa pergunta implica que Jó não tem entendimento e não pode responder a Yahweh; também sugere que Jó não tinha lugar na fundação da Terra e que suas lamentações não tinham fundamento antes dessa criação, assim como seu desejo de voltar a um estado anterior à criação.

Além disso, a pergunta de Yahweh sugere uma noção mais profunda: com a criação, Yahweh criou um desejo que ultrapassa toda a criação porque busca retornar a um tempo anterior à criação. O desejo de Jó de não existir e de não desejar é mais poderoso do que o ato de Deus de fundar um mundo. Esse simples ato de desejar se liberta de sua condição de criatura, voltando-se contra todos os atos de fundação e todas as fundações em direção ao infundado. Isso permite que se torne um evento que existe no mundo de sequências de eventos bem fundamentadas e causais, mas que permanece sem fundamento e sem um Deus teologicamente concebido que funda.

As lamentações de Jó e o desejo ali contido apontam para um paradoxo essencial: o desejo de retornar a um estado de inexistência, um desejo de desfazer o ato fundamental da própria criação. Esse desejo está em oposição à fundação do mundo e a todos os atos subsequentes de criação. Representa uma forma de desestruturação, um desejo que transcende o próprio ato de criação, voltando-se contra esse.

A força absoluta desse desejo, esse desejo de retornar ao nada, destaca uma tensão fundamental entre a criação e o desejo de não ser. Isso sugere que, em todo ato de criação, há um desejo inerente de desfazê-lo, um desejo que antecede e ultrapassa a própria criação. Esse desejo é mais poderoso do que o ato de criação porque busca negar não apenas o mundo, mas o próprio ato de fundação que o trouxe à existência.

Assim, o lamento de Jó e o desejo final contido ali desafiam o ato fundamental da criação, sugerindo que o desejo de não ser, o desejo de retornar a um estado anterior à criação, é uma força mais profunda e fundamental. Isso ressalta a noção de que o lamento é motivado por um desejo que excede a criação, um desejo que busca retornar a um estado de in-fundação, um estado de in-existência que antecede todos os atos de criação e fundação.

A pergunta de Yahweh a Jó faz mais do que apenas sugerir que Jó não tem motivos para sua reclamação, também significa que a lamentação de Jó funciona independentemente do ato de criação de Yahweh. A lamentação de Jó dirige-se a Yahweh antes de sua criação, apelando para um deus antes de Deus se tornar um, essencialmente voltando-se para ninguém e para nada, buscando uma resposta de nada e de ninguém. A ausência de Jó no momento da criação implica não apenas que ele é uma criatura, mas que seu desejo de não ter sido criado poupa-o das decepções inerentes à criação, tornando desnecessária qualquer resposta divina.

A pergunta retórica de Yahweh, “Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra?” (Jó 38:4), reconhece que o lamento de Jó transcende os limites da criação; admite que o desejo de Jó de nunca ter existido, embora originado na criação e dependente dessa, é simultaneamente um evento que rejeita a própria premissa da criação, não precisando de nenhum fundamento ou apoio nessa. Esse desejo é fundamentalmente uma ocorrência do nada e uma vida conduzida por esse desejo existe antes de seu próprio início, no limite máximo do tempo, do espaço e da linguagem do mundo. É uma vida livre de ônus por si mesma, sem a compulsão de existir.

Os lamentos de Jó, portanto, não são apenas gritos pessoais de angústia, mas são os lamentos do próprio mundo. Por meio deles, o mundo volta a um estado anterior à sua criação, tornando-se um acontecimento irrefutável e inolvidável que existe livre dos princípios fundamentais da criação, consequentemente, livre de si mesmo. Essa percepção nega a necessidade de lamentação. Quando Jó entende essa implicação da pergunta de Yahweh, reconhecendo a natureza de seu próprio desejo, ele não encontra mais motivos para lamentação.

Essa interpretação sugere que a lamentação e o desejo de não existir são forças poderosas que desafiam o ato da própria criação. O desejo de Jó, embora paradoxal e irrealizável, representa uma rejeição fundamental da fundação do mundo, revelando um desejo profundo de retornar a um estado de nada. Esse desejo, existente à margem da criação, mina a própria essência do ser e oferece uma perspectiva que transcende as limitações do mundo criado. Ao compreender isso, Jó transcende seu sofrimento, indo além da necessidade de se lamentar, reconhecendo as profundas implicações de seu desejo e seu lugar na ordem cósmica.

O entendimento de Jó sobre a resposta de Yahweh revela que essa não pertence à esfera do conhecimento ou da cognição. Reconhecendo isso, Jó responde: “por isso falei do que não entendia; coisas que para mim eram demasiado maravilhosas e que eu não conhecia” (Jó 42:3). Essa troca de lamentação e resposta não se trata de compartilhar conhecimento, mas sim de renúncia mútua. Yahweh absolve Jó da responsabilidade pela criação, por sua vez, Jó absolve Yahweh da responsabilidade por suas tristezas. Eles reconhecem que seu diálogo não trata de transmitir informações, mas de libertar um ao outro de seus fardos interconectados.

O lamento representa o distanciamento entre o acontecimento do mundo e o próprio mundo. A única resposta significativa para o lamento é aquela que reconhece e efetua esse distanciamento, uma resposta que se distancia de todos os fundamentos. Essa é a resposta de um criador que reflete sobre o tempo anterior à criação, dirigindo-se a um lamento que opera fora das leis da criação. O lamento e sua resposta não convergem em um mundo comum; em vez disso, existem no pensamento de que não há mundo, comunicam-se não por se alinharem um ao outro, mas por contradizerem sua linguagem e todas as linguagens. Se a conversa daqueles transcende a manutenção das convenções, volta a um estado anterior ao início da linguagem.

Essa renúncia mútua entre Jó e Yahweh simboliza um profundo distanciamento existencial e linguístico. O lamento de Jó e a resposta de Yahweh operam em um reino além da linguagem e da compreensão convencionais, movendo-se em direção a um estado pré-linguístico e in-criado. Refletem uma verdade mais profunda que está fora dos limites da criação e do conhecimento, enfatizando as limitações; por fim, a transcendência da compreensão e da expressão humanas. Esse distanciamento ressalta a natureza fundamental do lamento como uma resposta às deficiências e limitações inerentes ao mundo criado, buscando uma resposta que reconheça e participe dessa transcendência.

terça-feira, 25 de junho de 2024

Quintas especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

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A resposta à reclamação só pode deixar claro o que escapa à própria reclamação; não é uma resposta enquanto se apresentar como objeto de outras reclamações. Isso implica que só é uma resposta se não apresentar uma opinião, um julgamento ou uma explicação em que os motivos da reclamação, suas consequências ou suas implicações sejam tematizados, mas somente quando essa resposta tiver o caráter de um evento. Esse evento, se deve ser uma resposta, não pode ter o caráter de uma ação que segue a intenção de agir sobre a reclamação de forma consciente, controlada e com objetivos definidos — defender ou mitigar —, pois toda intenção pode ser superada, rejeitada e lamentada; portanto, não é o tipo de resposta que a reclamação demanda. Só pode ser uma resposta se atingir o alvo sem julgamento ou intenção e se atingir a reclamação enquanto ela não pode ser esperada, antecipada e defendida.

Como o horizonte da queixa é sempre um mundo e esse mundo é definido pelas apresentações e recusas de um nada que o constitui, a resposta deve ser não apenas um evento irrefutável, mas o evento não apenas de outro mundo, mas também de outro que não mundo. Logo, não pode ser o evento de um mundo superior, mundo interior ou mais profundo — em qualquer sentido — que tenha uma resposta para oferecer ao lamento. Todo mundo interno e todo outro mundo exterior ou externo só pode se apresentar como tema de uma reclamação e deve ser rejeitado como incapaz de responder.

Quando Scholem escreve em seu tratado sobre o lamento: “não há resposta para o lamento; isto é, há apenas uma: ficar em silêncio”, ele capta e obscurece simultaneamente o problema da falta de resposta; pois, o lamento é sempre também um lamento sobre o silêncio que encontra, portanto, o silêncio não pode ser uma resposta ao lamento. Mas quando Scholem continua: “somente um ser pode responder ao lamento: o próprio Deus”, ele ignora o fato de que Deus também pode ser lamentado e que esse único ser também lamenta e, em seu lamento, divide-se em dois. Nenhuma instância e nenhuma atitude, muito menos a de um poder supremo, pode oferecer uma resposta que não possa ser demonstrada como insuficiente e que não possa ser rejeitada como não resposta.

O lamento só pode encontrar uma resposta irrefutável em um evento que, como evento da linguagem e do mundo linguístico de seu surgimento, seria, ao mesmo tempo, o surgimento do já-não ou do ainda-não deste mundo. A resposta só pode ser um começo ou pré-início do mundo; deve vir do lugar para o qual o lamento retorna, pois expõe as deficiências do mundo, seus fracassos e seu não-ser. Mas como o lamento escapa ao fato de que, como a abertura desse nada, é, ele próprio, um evento, portanto, um começo e um pré-início, a única resposta adequada a ele deixaria claro que é precisamente esse evento que escapa a si mesmo, sendo assim, não pode ser negado ou lamentado. Somente aquilo no lamento que nega o lamento pode ter acesso a ele pela resposta: que está, em todos os sentidos, à frente dessa resposta e de si mesmo.

O traço fundamental expresso no lamento: desejo de retornar a um estado anterior a si, um desejo que engloba o desejo de desfazer a própria existência. Essa ideia ilustra-se de forma pungente no famoso refrão de Édipo em Colono: “não nascer supera o pensamento e a fala. / O segundo melhor é ter visto a luz / e então voltar rapidamente de onde viemos”. Da mesma forma, os lamentos de Jó começam com ele amaldiçoando o dia em que nasceu e a noite em que fora concebido: “Pereça o dia em que nasci, e a noite em que se disse: Foi concebido um homem! […] Ah! que solitária seja aquela noite, e nela não entre voz de júbilo!” (Jó 3:3,7). Aqui, a exigência de Jó é, paradoxalmente, a revogação da própria exigência que ele faz. Ao desejar que ele não existisse, ele simultaneamente deseja que ele não tenha esse desejo.

O lamento de Jó trabalha em direção à revogação da própria criação, não em direção a uma criação diferente ou mais feliz, mas em direção a nenhuma criação. Esse desejo supremo — não ter desejos — é um desejo sem sentido, mas inegável. Esforça-se para recusar o desejo, portanto, é mais poderoso do que qualquer mera recusa, que é em si uma forma de desejo e o evento de desejar. Esse desejo de negar todos os desejos e a existência, um desejo que se volta para antes mesmo de sua própria existência manifesta, impulsiona o lamento. Como o evento irredutível do desejo, incorpora a essência do lamento. Esse desejo supremo, o desejo de não existir, é o único desejo que não pode ser objeto de lamento.

Em contraste, o desejo de ter um desejo, que é igualmente paradoxal, é um desejo por sua própria existência e aprimoramento. No entanto, esse desejo entra em um ciclo infinito de lamentações. O desejo de não ser, no entanto, é diferente do que almeja: representa um sim ao nada para o qual se abre e, como a ocorrência desse sim, está além do alcance da reclamação. Esse desejo, por não ter um mundo, permanece aberto a uma resposta que esclarece sua natureza como um desejo e como um acontecimento. Como tal, está no início de um mundo, mesmo precedendo esse início.

Em essência, o lamento revela um desejo profundo e contraditório: o desejo de retornar a um estado anterior à criação, um desejo que, em última análise, busca sua própria revogação. Esse desejo único, impulsionado pelo acontecimento irredutível de desejar, destaca-se de todos os outros desejos e reclamações. É um desejo de não-ser, um sim ao nada e, dessa maneira, escapa ao reino do lamento. Somente reconhecendo esse desejo como um evento, como o início de um mundo, podemos entender sua verdadeira natureza e o espaço único que ocupa na experiência humana.

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Quartas especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

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Se for necessário dizer que a reclamação é o evento do nada que ela descobre, rejeita e preserva ao rejeitar, então também deve ser dito que — como esse evento — ela é um não-nada. A reclamação não é, portanto, um não para o nada como negação lógica que nega um nada pressuposto, portanto, que fica presa na autocontradição. E não é um não para o nada como uma limitação lógica que confina o nada pressuposto, negando-lhe predicados determinados e julgando-o, por exemplo, inpensável, inprodutivo ou incompleto. Essa negação de um predicado determinado do nada sempre determina o sujeito lógico em um único ponto — impensabilidade, improdutividade ou incompletude — mas deixa-o indeterminado em sua relação com a infinidade de outros predicados. Embora esse juízo limitador dependa de sua continuação infinita — portanto, descrito como “juízo infinito” — não há determinação positiva no ponto sempre único que descreve por meio de sua negação como um não-nada, mas sim a determinação da determinabilidade. Assim, esse não-nada provou ser algo que pode ser determinado, portanto, ser um ser que, por meio de outras determinações — mesmo que infinitas — pode, em princípio, chegar à sua determinação lógica.

Hermann Cohen, a quem devemos agradecer pela redescoberta, seguindo Kant e contra Hegel, do juízo infinito, colocou-o — como o “juízo da origem” — no início de sua Lógica do conhecimento puro [Logik der reinen Erkenntnis] porque é a origem da determinabilidade puramente lógica dos objetos em geral. O importante tratado de Gershom Scholem “Sobre o lamento e a lamentação” [Über Klage und Klagelied] é orientado para essa lógica do não-nada; o esboço de Estrela da redenção [Stern der Erlösung] de Rosenzweig segue-a; e partes significativas das concepções linguístico-filosóficas e histórico-filosóficas de Benjamin, transformadas de lógica em história da origem, desenvolveram-se a partir dela. Sem aprofundar o assunto aqui, pode-se dizer, em particular, que a lógica da origem, como Cohen apresenta-a e como Rosenzweig desenvolve-a no início de Estrela, faz do nada um pressuposto, posiciona esse pressuposto como negável e usa esse pressuposto negável como um meio de produzir um não-nada, portanto, algo. Esse nada não é meramente lógico, mas, como pressuposto lógico para o conhecimento, não é de forma alguma nada, mas sim o instrumento para a produção de algo. Portanto, Cohen fala explicitamente de um recurso “metodológico” à creatio ab nihilo, Rosenzweig de um “pressuposto” indispensável para o conhecimento do ser infinito divino, Benjamin, em seu “Fragmento Teológico-Político”, de um “método […] chamado niilismo”. Em seu estudo, Scholem chega à conclusão de que o lamento é “a linguagem da aniquilação” e, em seu limite máximo, provoca a revelação de Deus.

O nada não é apenas nada quando é utilizado como meio de construir ou alcançar algo, mas já se tornou a defesa contra si mesmo ocultada em seu conceito oposto. No entanto, precisamente essa defesa não é mais pensada na lógica da origem especificamente como defesa do que a instrumentalização e a metodologização, a desafetação, do nada. No entanto, nessa construção lógica, a natureza da abertura e da afirmação do nada como evento fica completamente ausente. Além disso, uma vez que na lógica o nada só pode assumir um estatuto ambíguo, na medida em que, por um lado, é um nada e, por outro, é nomeado (portanto, não é nada), o discurso do progresso infinito na determinação desse nada também permanece ambíguo e, além disso, mina imperceptivelmente o pensamento da infinitude de Deus e de sua revelação. Essa infinitude também, em vez de ser a saturação de um vazio, deve ser pensada como atravessada precisamente por esse vazio. Pensado a partir do solo vazado da limitação lógica de um nada lógico, o Ser só pode ser um ser postulado, concreto e incompleto, progredindo em graus diferenciais em direção a propósitos pré-estabelecidos; só pode indicar o “objeto” da reclamação, não o início da reclamação e nem seu evento.

Por mais linguística que seja, a reclamação não é “lógica”. Não se expressa em enunciados e não pode ser traduzida em enunciados “positivos” ou “negativos”, “verdadeiros” ou “falsos”, precisos ou imprecisos, sem deixar de ser reclamação. Sempre acerta o alvo, pois só revela o que lamenta e revela os defeitos de sua demonstração, bem como os defeitos do que mostra. Sempre acerta seu alvo, pois sempre encontra um não e encontra-o como insuficientemente rejeitado por ela e como sempre insuficientemente revelado por ela. É sempre, ao mesmo tempo, “verdadeira” e “falsa”, porque o único critério para ambas é a lamentabilidade da qual ela não pode se eximir. Se condena, não condena o que é, mas sim o que nela não é: não condena com base em algo positivo, mas com relação ao que falta em todo positivo e em sua posição.

Entretanto, por ilimitado que seja o âmbito da reclamação, permanece restrito ao que pode tematizar — ainda que inadequadamente — e não inclui o evento de sua tematização. Como nenhum evento pode ser transformado em objeto de apresentação sem deixar de ser evento, o curso de cada evento deve permanecer inapresentável e irrefutável. Para colocar isso em termos de formalização lógica, a reclamação é incapaz de negar a inegabilidade de suas negações. Ao lado de toda a postulação, a reclamação — como a revelação de um nada do mundo e de si mesma — é a afirmação de sua própria inegabilidade, portanto, também da inegabilidade de seu evento. Acima de tudo, portanto, é a queixa de que é — de fato, irrefutavelmente — um evento. Mesmo que rejeite tudo e a si, o fato de rejeitar e ocorrer nessa rejeição permanece irrefutável para si. Mas também permanece indemonstrável. Consequentemente, aquilo que, nela, é o evento da revelação de seu — e de todo — nada também permanece indemonstrável para a reclamação. Embora a queixa também possa se lamentar, ao fazê-lo, revela-se e descarta-se apenas como tema, enquanto o evento da lamentação, sua apresentação e rejeição, deve lhe escapar. O que escapa à reclamação estruturalmente é seu próprio evento, todavia, o absolutamente inolvidável.

Para precisar os traços fundamentais do movimento da reclamação: sua transcendência para o que não é no sentido de um determinado objeto ou conteúdo de representação não pode ser um processo existente, nem pode ser totalmente ele mesmo e, como tal, presente a si mesmo. Como se move em direção a um não, seu próprio curso deve ser determinado por esse não; deve ser determinado em todos os sentidos. Mas o que caracteriza todo movimento só se torna claro no movimento extremo da reclamação, pois todo movimento, na medida em que é movimento, deve se mover em direção ao que não é, deve ser a transição para o seu não-ser e, como tal transição, não pode ser absolutamente presente a si. Precisamente porque a reclamação atravessa aquilo que não é, portanto, deve ser o evento de um não evento e deve ser o evento da não-presença desse evento. Como transcender para o nada, só pode ser uma transcendência para o não-transcendente, deve ser uma transcendência sem transcendência e, como a transição para o que não é, uma transcendência sem imanência. O movimento linguístico e, no limite, o movimento da reclamação, entendido precisamente, é a(d)-transcendente. Somente como o evento que não está tematicamente presente a si mesmo é que a reclamação é finita. Só pode ser afastada de sua finitude, de sua não autopresença, de sua inacessibilidade a si e de sua falta de autofundação. Em contraste, só pode se voltar para a repetição infinita de sua autotematização, na qual nunca deixa de faltar a si. O movimento de reclamação — o movimento de abertura do que não é de forma alguma objetivo e presente, o movimento de abertura da linguagem — esse movimento de reclamação esbarra em uma fronteira insuperável em si, em que, não apresentável e inegável, escorrega para longe de si como evento.

domingo, 9 de junho de 2024

Terceiras especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

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Toda reclamação pode ser entendida como um pedido, ou mesmo uma oração, por ajuda, pelo menos por uma resposta. No entanto, a relação com a ajuda, como todas as relações de reclamação, é paradoxal. Na medida em que afeta toda a esfera do que pode ser tratado, pensado e interpretado, a reclamação esvazia o mundo, cria uma tabula rasa, portanto, nunca pode ser feita com o que — como toda tabula — pertence ao mundo e a todos os mundos possíveis. Como só poderia ser o objeto de uma reclamação, uma resposta à reclamação não pode ser esperada de um mundo futuro. Portanto, se a reclamação é o pedido de uma resposta, é somente uma resposta que rejeita todas as respostas, uma resposta que revoga a si. A reclamação significa a ausência de fim da reclamação; a ausência de fim significa a dissolução de todos os limites que poderiam impedir a reclamação e a ausência de fim da reclamação significa que, em cada um de seus movimentos, coloca-se diante do nada. O gesto de reclamação é, portanto, descrito de forma inadequada se for caracterizado como a rejeição de tudo o que o encontra como objeto ou contra-discurso, como resposta ou resistência. Também se dirige contra si mesmo e, como a reclamação contra a reclamação, é sempre também uma resistência a si mesmo e à sua rejeição de si mesmo e do mundo. Queixa-se da rejeição em que se envolve; avança com ela e se fortalece como resistência contra ela. Em todas as suas modalidades, é um auto-apotropaismo.

Portanto, a reclamação é caracterizada por um gesto duplo: apresenta um “não” e o rejeita. A reclamação é a primeira forma linguística - a forma do distanciamento de toda forma - que permite o surgimento do que é chamado “não” e “nada”. Antes dela não havia nada, e sem ela não haveria nada. A reclamação sobre o que não é, o que não é adequado, não é completo e não é real faz surgir esse “não” e esse “nada” em primeiro lugar. Ela não tem - essa é sempre sua mensagem mais tardia - nada de bom para transmitir, nada de novo para relatar, nada de útil para dizer. É o mensageiro do fracasso, a linguagem daquilo que não diz nada ou não é suficiente. Não nega, tematizando teoricamente, um estado de coisas que já está lá antes de si - um nada não é “objetivamente” dado, nem é um estado de coisas. É o que primeiro dá origem e torna manifesto o seu nada, lamentando-o. A lamentação, e não antes de tudo a negação lógica na qual ela é ao mesmo tempo formalizada e restringida, é o movimento - o movimento da linguagem, mas também da emoção - que abre o caminho para o nada. Portanto, é um dos movimentos que abre o primeiro de todos os problemas filosóficos, o problema da ontologia fundamental como tal. Não se trata da creatio ex nihilo, mas da creatio nihili. Também continua sendo um problema na reclamação no sentido estrito da palavra, pois a reclamação expõe o nada do mundo sobre o qual se fala meramente por falar contra ele. Quem reclama mostra um nada para o mundo ou o nada do mundo e, ao mesmo tempo, rejeita-o com sua reclamação. Esse duplo gesto de mostrar e rejeitar faz da reclamação uma complexidade irresolúvel de creatio e decreatio nihili. Somente com ela abre-se o caminho ambíguo para a criação do que se diz “ser”.

A reclamação não destrói o que já existe antes dela ou o que pode ser previsto em seu futuro. Em vez disso, ela vazia no sentido de que, em primeiro lugar, expõe algo ausente, faltante e carente, e também no sentido de que o rejeita como ausência, e no terceiro sentido de que o preserva em sua rejeição. Em todos os três sentidos, não se trata de uma mera observação, nem de uma negação, mas sim do evento da revelação de uma falta ou lapso, de um dano ou simplesmente de algo que não existe. Como essa revelação, é a afirmação - de fato, a primeira afirmação - do que não está faltando “em si mesmo”, mas sim do que está faltando. Seu não é a afirmação de um não. Somente nessa afirmação, não importa quão oculta ou muda permaneça, torna-se um objeto potencial da intenção de eliminar esse não, essa recusa de algo, e aniquilá- lo. No entanto, mostrá- lo não precede a rejeição do não, pois ele só se revela como rejeitado ou a ser rejeitado: revelado pelo fato de poder ser rejeitado. Dado que a própria reclamação é, portanto, também revelada como falta, assim que anuncia sua presença, ainda que implicitamente, ela se estende à sua própria ocorrência, mais uma vez na dupla volta de um não para seu não. É, portanto, a constante negação de uma negação, sua primeira afirmação junto com a rejeição do que é afirmado nela: um sim a um não que se revela nesse sim como algo ao qual se deve dizer não.

Isso revela, no entanto, que a reclamação é mais poderosa do que todo o nada que ela expõe, que ela é o escopo do nada e de sua rejeição, e que ela também continua sendo esse escopo se ela se mostrar deficiente e, como tal, rejeitar a si mesma. Portanto, o poder da reclamação não consiste em ter o poder de compreender o nada que ela revelou e delimitá-lo conceitual ou afetivamente. Em vez disso, a reclamação está à mercê do nada como aquilo pelo qual ela mesma se constitui. A reclamação sobre a impotência da reclamação pertence à estrutura da reclamação, assim como pertence à série de causas da reclamação. “Quem, se eu gritasse, me ouviria então”: é assim que toda reclamação se queixa de sua falta de escopo, sua falta de destinatário, a ausência de uma resposta que lhe corresponda, a ausência de uma linguagem na qual possa se expressar. Mais poderosa que o nada que revela, a reclamação não é, portanto, capaz de ter um poder próprio, mas apenas de mostrar sua impotência. É meramente o poder de permitir a impotência, de se render a esta e da abertura para o nada que ela proporciona em si mesma. Por mais destrutivas que as reclamações possam ser, elas são, antes de mais nada, a consciência e a permissão para o que se vivencia como um vazio indestrutível, como a ausência de qualquer possibilidade de produzir efeito e a perda total da capacidade. Nesse sentido, toda reclamação está antes do nada e fora dele desde dentro. Ela é em si mesma a transcendência para o que não é e nunca foi. E, como essa travessia, é o evento desse mesmo não-ser e não-ter-sido, in-capacidade e não-mais-ser.

sábado, 8 de junho de 2024

Mais especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

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A teoria dos atos de fala tenta descrever o alcance e a estrutura da reclamação em termos de atos, mais precisamente, de atos locutórios. Sem adentrar mais na tensão e mesmo na incompatibilidade entre os conceitos de ato e de expressão, define a reclamação como ato de expressão. J. L. Austin atribui-na ao grupo de declarações de reações emocionais que ele chama comportamentais [behabitives]. Uma vez que os atos, do ponto de vista dessa teoria, só são considerados atos em uma convenção já dada e só podem ocorrer na condição de seguirem essa convenção, a expressão à qual devem dar um afeto está sempre definida como a expressão de um interior que foi pré-formado por convenções, um sentimento que pode ser acordado e uma linguagem de afeto socializada em princípio. Um ato que não atenda a essas condições não pode ser “bem-sucedido” ou “feliz” nos termos de Austin; como tal, é incognoscível, irreconhecível e irrespondível. As reclamações sobre atos de fala “infelizes” e “malsucedidos” podem, naturalmente, ser “felizes” e “bem-sucedidas”, mas apenas se, por sua vez, estiverem conforme as convenções da reclamação. São apenas queixas “felizes” — socialmente aceitáveis e bem-sucedidas — se e quando não são queixas, mas acordos, se não rompem com um padrão de comportamento estabelecido, mas o confirmam. A teoria do ato de fala, em suma, bane de seu sistema tanto a queixa quanto qualquer outro afeto ou expressão de afeto para garantir a ação, e bane a ação de seu sistema para garantir a sistemática da ação, a síntese das ações e a harmonia pré-estabilizada entre essas. Se, para a teoria dos atos de fala, a ação funciona consoante as convenções, então formalmente não é nada mais que a confirmação dessas convenções, portanto, paradoxalmente, tanto uma ação que satisfaz sua forma universal quanto uma não ação que se abstém de toda influência ativa sobre sua forma. O termo “ato de fala”, portanto, como utilizado pela teoria dos atos de fala, é um antônimo: não descreve nem um ato, nem um ato de fala, mas apenas uma mecânica de comportamento de acordo com um programa pressuposto de funções.

Uma vez que os atos de conformidade só podem ser “felizes” porque não são atos, sua definição também delimita os atos “infelizes” excluídos pela teoria dos atos de fala, atos que, no mínimo, têm a chance de alterar as condições de conformidade sob as quais podem se tornar eficazes e, assim, de fato, assumir o caráter de um ato. Esses atos só podem ocorrer independentemente das normas dos atos de fala, antecipadamente e sem levar em conta seu cumprimento. Portanto, só podem ser não convencionais, não se baseiam em nenhum consenso e não correspondem a rituais nem rotinas. Mas isso significa que “atos de reclamação” não devem ser apenas reclamações sem consideração por serem ouvidas ou terem efeito, reclamações sem intenção ou destinatário. Devem, em todos os sentidos, ser atos de fala “infelizes”: a saber, primeiro, atos de fala que dão origem ao infortúnio; segundo, que perdem sua intenção; terceiro, que não se conformam a nenhuma regra de compreensão. São muito estridentes, muito subjugados, muito brutais, muito desesperados, não linguísticos o suficiente ou excessivamente ativos. Uma vez que não compartilham uma regra com as expectativas associadas a tais expressões, portanto, não é seguro que serão reconhecidos como reclamações, devem essencialmente parecer anômicos, associais ou antissociais. Portanto, não deve nem ser tomado como certo que possam ser incluídos no campo da linguagem — seja um idioma específico ou uma língua humana como tal. Somente se as reclamações forem expressas absolutamente sem condição e sem um horizonte predeterminado, portanto, ou se evitarem ser expressas, são reclamações. São reclamações apenas se minarem os parâmetros de sua determinação, portanto, todas as linguagens pelas quais poderiam ser identificadas como o que são. Que pedras gritem não é uma metáfora poética. Que emoções extremas sejam expressas na linguagem de um animal não é uma descoberta fisiológica. Que toda a natureza se levantaria em lamento se lhe fosse dada linguagem, como escreve Walter Benjamin, não é a hipérbole metafísica de um melancólico, mas a definição objetiva da ausência de horizonte do que é chamado linguagem e atividade linguística sem normas convencionalistas de reconhecimento. Como toda fala, a reclamação também deve ser capaz de falhar em todas as suas dimensões — como verbalizar, tematizar, endereçar, comunicar e efetuar — para poder ser reclamação, “ato” linguístico, linguagem. É somente com base nessa possibilidade extrema — a possibilidade necessária, portanto sempre já operativa de sua impossibilidade — que a linguagem e sua queixa extrema podem ser pensadas.

A restrição da reclamação na teoria dos atos de fala a um ato “expressivo”, portanto, não apenas comete um erro metodológico, mas não faz justiça ao fenômeno da reclamação, uma vez que não reconhece sua retirada para o afenomenal como um traço constitutivo desse fenômeno. Fazemos bem, então, em abandonar essa restrição e nos voltarmos, na análise da reclamação, àquilo que rompe as fronteiras das convenções linguísticas, as fronteiras de sua comunalidade, de seu lugar na linguagem humana e talvez de sua constituição linguística como tal. Para entender a reclamação como um ato de quebra de regras e até mesmo de quebra de sua natureza como ato, para entendê-la como anti-ato e como antissocial, como anti-pacto e como paixão, temos que levar a sério a expressão “reclamação silenciosa” e relacionar a série interminável de denúncias sobre toda e qualquer coisa a uma denúncia sempre sem voz, implícita e inexprimível. Na reclamação que não se expressa, insinua-se uma reclamação sobre a própria linguagem, uma acusação do falar, uma revolta silenciosa contra o falar.

Se a pessoa reclamando pudesse descrever precisamente o que está sentindo, ela não estaria reclamando, mas sim descrevendo, compreendendo e colocando sob seu controle o objeto de sua reclamação, por mais arruinado e ruinoso que seja. A reclamação, no entanto, não é um discurso teórico e predicativo da definição de objetos e relações, mas a reclamação sobre a falha de todo o controle sobre a matéria e sobre a linguagem que pode compreendê-la. Não é uma mera relação, mas sim uma relação com o fracasso precisamente dessas relações que tenta estabelecer, uma relação com a ausência de homeostase entre dentro e fora, com a falta de correspondência entre o que pode ser sentido e o que pode ser dito, com a continuidade que nunca se materializa entre as fases do sentimento, entre sentimento e insensibilidade, entre enunciado e significado. Em cada caso, lamenta-se o que está negado. Mas o que é negado à pessoa que reclama é qualquer tipo de relação que possa oferecer coerência e constância, conformidade e consistência. Sua queixa é uma relação com o sem relação. As reclamações são, portanto, repetidamente julgadas com o termo ambíguo “excessivo”. Não conhecem limites, nem paradas, nem fronteiras, porque constantemente se referem ao que não está lá. Mas uma vez que a queixa é incessante e ilimitada, também não pode ser restrita a um interior; uma vez que não é dada uma “linguagem privada” de interioridade que poderia ser levada para fora ao ser transformada em som, mediante expressões faciais ou gestos, não há interior que pudesse ser “expresso”. Não é porque não consegue encontrar um meio adequado para seu enunciado que a reclamação jaz desprovida de expressão; está desprovida de expressão porque não tem e não é nada sobre o qual um interior estável possa ser constituído e distinguido de um exterior. É sem expressão porque corre através do movimento do puro ser-fora-de-si — o movimento, não da separação de uma linguagem interna de uma externa, não de um mundo de um segundo, mas o movimento da separação do mundo do mundo, da linguagem da linguagem, portanto do próprio movimento de cada movimento. O que ocorre na reclamação, na queixa silenciosa ou não expressa, o que ocorre na dor, é uma fissura através do mundo da linguagem como um todo — portanto, sua abertura para o que o mundo da linguagem não é e para o fato de que “não é”.

A reclamação jaz no extremo inexpressivo, desarticulado e silencioso, porque é o movimento de volta antes de um mundo da linguagem, antes de um mundo comum, consistente, físico e mental para uma relação com o que não tem força, em que nada mais pode ser entendido exceto o fato de que “está lá”, sem que seja como algo e sem que “isso” apresente-se como algo diferente da retirada de toda possibilidade de uma declaração de existência. Na sua forma mais extrema, portanto, por completo, a reclamação é a linguagem da recusa da linguagem. É por isso que pode ser descrita como o evento da separação e partida de si como linguagem e como reclamação. Uma vez que a fissura que se abre com ela constitui o evento fundamental do que é chamado linguagem, fica claro a partir dela que a linguagem não é apenas uma estrutura aberta composta de nomeações e enunciados, atos indicativos e suas modificações, acordos e contestações, mas sim, em primeiro lugar — portanto, se ainda imperceptivelmente, em todos os sentidos — uma experiência de ser-sem-linguagem e ser-sem-mundo, com afasia e afânise. A queixa, portanto, a linguagem na totalidade, é mutação: movimento com seu silenciamento. Como é esse silenciamento em que se divide e se comunica com o outro, é uma com-mutação antes e em toda comunicação.

A comunidade daqueles que falam é sempre também a comunidade daqueles que não falam uns com os outros: que são capazes de não falar, não precisam falar, que não dizem nada, ficam quietos ou permanecem em silêncio. Assim como sua linguagem não é sem pausas ou áreas silenciosas, também a conversa compartilhada e conversar um com o outro repetidamente se interrompem e abrem espaço para o que não é — pelo menos não manifestamente — linguagem. Isso não significa que o silêncio e a mudez sejam fenômenos sociais que são iguais, ou mesmo meramente comparáveis, à fala e aos segmentos dessa delimitados por pausas. Isso está tão longe do caso que mesmo expansões mínimas nessas pausas ou aumentos no intervalo entre os enunciados de diferentes falantes podem sugerir a possibilidade de ausências completas, de incapacidade de falar e da perda do mundo. Mesmo as representações mais coerentes na linguagem — talvez precisamente essas — podem murar algo não dito, sobre o que não se pode dizer se tratar de um silêncio significativo ou uma mudez sem sentido. As pausas constitutivas para toda comunicação ocupam o limiar entre a fala que comunica — pois podem ser interpretadas como ironia, como manifestação de dúvida ou como reclamação — e uma ausência de comunicação na qual não se silencia com e para os outros, uma vez que não há relação com os outros nela, mas apenas uma relação com o outro como outro, com um não outro e sua mudez, uma relação com o que é incapaz de relação. A reclamação ocupa esse limiar quando se trata de uma reclamação sobre não ser ouvida, não conseguir chegar a um destinatário, não falar uma língua comum com os outros, portanto, não ser capaz de silêncio ou comunicação.

Uma observação de Hegel sobre a conexão entre o lamento e o canto sugere que, em sua ênfase e expressividade, a música supera a linguagem, portanto, deixa para trás toda determinação que possa confiná-la ao reino da finitude. A música seria a infinitização insistente da experiência da finitude. Se assim for, no entanto, o lamento não tem simplesmente uma dimensão social, como se estivesse embutido em uma rede social que pode ser gerenciada e regulada, uma rede que regula, um mero fio em um nexo social seguro. Se o lamento é uma possibilidade irredutível — no sentido de um traço estrutural indissolúvel — de toda linguagem, então mesmo na linguagem da comunicação, algo que não pode ser comum, algo não dialógico e sem linguagem está em ação que dissolve as conexões sociais, desfaz seu tecido, destrói seus fios. O lamento está isolado no minúsculo ponto do desaparecimento, no qual não pode mais ser contado como lamento e não pode ser posto ao lado de um segundo ou terceiro. É infra-singular e super-geral, incompreensível como categoria, uma linguagem não de determinação, mas da ausência de determinação, objetivo, intenção e, no limite, também de voz. Que possa ser escutado em conversas e, repetidas vezes, na música coral pode sugerir que as comunidades lamentem, em primeiro lugar, sua própria desintegração e que se restaurem nesse lamento. Mas também pode indicar que em seu lamento — como nos diálogos de Jó e nos coros trágicos — uma linguagem antes de toda comunidade, antes de todo idioma social ou mesmo político e antes de toda generalidade conceitual se abre e, como a abertura de outra linguagem, opõe-se a toda linguagem conhecida.

Isso também afeta a forma. A dor não pode simplesmente receber forma, porque cada forma pode, por sua vez, provocar dor e ser quebrada por ela. O que seria da forma se não pudesse ser dilacerada pela dor? O que seria a dor se não distorcesse todas as formas? O movimento da dor, que sempre exige formas e sempre as destrói novamente, mina toda forma, rito e padrão de relação que deve evitar a dor e traz seu colapso. É mais uma vez instrutivo lembrar de Hegel neste contexto, uma vez que ele afirma que sua filosofia é uma filosofia do cristianismo e, mais precisamente, do espírito verdadeiramente cristão do cristianismo, que ele pensa como uma religião da dor e sua subsunção: da dor da finitude que, sentida como tal e articulada na forma adequada, também já deveria ser modificada, relativizada e aliviada. A tradição cristã que culmina nos comentários de Hegel é uma tradição de tornar social, de universalizar e espiritualizar, mas também, portanto, de negar a dor. Entendida como a dor do negativo, é sempre também o trabalho do negativo. Como esse trabalho, é produtiva. E como dor produtiva, é apenas essa dor que faz seu trabalho destrutivo como o trabalho de transformação em figuras sempre novas de espírito e, finalmente, na figura única e máxima do espírito absoluto que se contém, portanto, na forma de todas as formas. Essa última, a ideia absoluta, como a própria dor, teria que ser, ao mesmo tempo, seu alívio; teria que ser a dor sublimada, preservada, dissociada e aliviada por si mesma. No entanto, a dor subsumida nesse sentido, a dor compreendida e tornada espírito — Hegel está certo — não é mais dor. Pode ter sido aliviada como dor, mas há uma dor não aliviada precisamente no fato de que ela não faz seu trabalho de destruição como tal dor, como o possível objeto de um conceito, como uma dor que é produtiva e que produz figuras, mas sim como aquela dor que funciona fora de todos os conceitos, portanto, deste lado de toda figuração e espiritualização. É a dor que é sempre incompreensível, absolutamente sem espírito e sentido, dor que não pode tomar forma. Mas não é apenas sem sentido e não sujeita a teleologia; é também aquela dor que ataca os sentidos, paralisa-os e rouba sua capacidade de orientar. Alguém “fora de seus sentidos” está “oprimido” pela dor ou tão “atordoado” por ela que toda a esfera da sensibilidade está concentrada nessa dor, absorvida e reunida nela. A dor é pura sensibilidade, portanto, já não é mais uma sensibilidade que poderia ser contida, que poderia ser levada a um propósito ou forma pretendida.

Se houvesse uma forma “adequada” à dor, só poderia ser aquela que surge da própria dor. A dor teria que continuar a trabalhar nela e deformá-la em cada instância que diferisse dela. Mesmo expressões de pathos, como categorizadas pela psicologia racionalista e pela fisionomia, portanto, não exibem formas tanto quanto exibem sua distorção, elipses e hipérboles de forma, deformações e o colapso da formação. A dor não tem medida, não tem padrão e não tem limites — não tem dimensão — que possam permitir que seja entendida em uma figura integral, seja “subsumida” e tornada suportável por ser neutralizada. Portanto, é mais do que duvidoso que pinturas como a Crucificação de Grünewald ou O corpo do Cristo morto no túmulo de Holbein possam ser consideradas pinturas cristãs no sentido da definição de cristianismo de Hegel. Nesses lamentos pictóricos, extrai-se o amorfo dos limites das convenções formais, a desarmonia gritante do encarnadino rompe a forma, o excesso ou a retirada dos gestos composicionais, a rigidez dramática mesmo do que é instável — rompem a defesa contra a dor, que só poderia estar assegurada através da figuração e tornam a imagem explosiva, em um caso, e desgastada, no outro. Nas desfigurações da imagem, a representação da decomposição, juntamente do representado, deteriora-se. A não-pintura é pintada, o mudo fala. Daí o hiperrealismo traumático dessas imagens lamentadoras. Se há, no entanto, uma “subsunção” — uma preservação e neutralização — da dor, isso se dá apenas na ausência de lamento com a qual se está detrás e além de cada medida determinada de lamentação. Pois se a dor e a queixa excedem todas as medidas, então também excedem “a si mesmas” e o fazem de tal forma que a ausência de lamentação fala em cada lamentação, a apatia em cada pathos, a incapacidade de suportar a dor em cada dor. O meio de sua comunicação não é uma mediação; mas aquilo que não pode ser mediado, o imensurável, que aflige a linguagem e, com ela, toda medida.

domingo, 2 de junho de 2024

Sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

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Reclamamos de tudo, de infortúnios pessoais e comunitários, do estado geral do mundo e do curso da história, do resultado das eleições e do clima, de indisposições, doenças, guerras, reclamamos da malícia e da maldade, reclamamos até do fato de que os outros e nós mesmos reclamamos. Reclamamos de tudo que há sob o Sol, como diria o bíblico Eclesiastes. Dificilmente se encontra uma forma de discurso mais comum e inteligível que a reclamação. No entanto, reclamações, revelações abertas de nós mesmos, enfrentam constantemente a ameaça de serem descartadas, seja na forma de uma reclamação sobre a reclamação, seja por meio do ridículo, da ironia, da indiferença deliberada ou do silêncio constrangedor — devemos nos perguntar se a ironia, o sarcasmo, até mesmo o humor e, muitas vezes, o silêncio podem ser formas de reclamar.

A reclamação é, inquestionavelmente (embora também lamentavelmente), uma das formas pelas quais nos relacionamos. Entretanto, essa é uma de nossas formas mais estranhas de relacionamento, pois, em certas esferas, as convenções justificam-na e até impõem-na, em outras, tornam-na tabu, mas a reclamação está estruturada de tal forma que uma resposta nem sempre é desejada e, na maioria das vezes, parece impossível.

Talvez a irritação decorrente da reclamação possa ser melhor vista no fato de que temos inúmeras versões e registros de reclamação, mas raramente falamos sobre reclamar. Talvez essa hesitação diante desse fenômeno cotidiano, porém extremo, possa ser explicada, pelo menos em parte, pelo fato de que todo discurso analítico sobre a reclamação causa facilmente a impressão de ser uma continuação (disfarçada) da reclamação.

Isso se dá porque não há absolutamente nada cuja perfeição não possa ser posta em dúvida, nada cuja dubiedade não possa ser objeto de reclamação. Mas, se não há nada que não possa também ser objeto de uma reclamação, isso significa que nada pode oferecer uma base sólida para um sistema comunicativo, um fundamento firme para a compreensão mútua, um vínculo universal entre os falantes, exceto a própria reclamação. Se a reclamação é sempre e em toda parte possível e se pode se referir a qualquer coisa, então tudo pode ser arruinado pela reclamação de alguma maneira vaga e pouco definível.

A reclamação é aquela linguagem que não permite que qualquer significado, importância, valor, interesse, crença ou qualquer uma de suas consequências esteja fundamentada sobre si mesma. Em toda parte, aponta para deficiências e lacunas em enunciados, relacionamentos e atitudes, para danos, erros, agravos e transgressões, e ataca-os por serem causas de inadequação, infortúnio ou sofrimento. Todavia, não atua apenas como reclamante, mas também como testemunha da acusação, falando perante um tribunal que não pode estar a salvo de sua reclamação e testemunho. Lamenta-se e atesta-se por meio da reclamação sempre aquilo que não funciona, não está à disposição, não está lá: o objeto da reclamação, portanto, sempre é uma perda ou falta, uma ausência, um distanciamento ou um declínio. O objeto da reclamação é uma ruína e, com a reclamação que a apresenta, a ruína entra na linguagem e consequentemente em todo o mundo da experiência e do pensamento, em todas as relações sociais ou societárias, no falar e no viver juntos. A linguagem da reclamação é a linguagem de uma destruição que, em princípio, é ilimitada. Portanto, pode-se considerar falar sobre a reclamação como o surgimento da pulsão de morte na linguagem. Para a reclamação, tudo é vazio, indiferente, acabado.

Portanto, na reclamação, estamos expostos a um fenômeno que é tão universal quanto estranho, quer queiramos ou simplesmente percebamos — ou não percebamos — claramente: ao fenômeno de uma linguagem que só pode lamentar a si mesma e sua perda, a si como sua perda. “Estou sem palavras” ou “estou emudecido”: essas frases lamentadoras implicam que não expressam nada além da impotência da linguagem; portanto, implicam que não dizem nada e que a única linguagem à qual podem (em)prestar queixa é a de uma fórmula que se consolida em uma expressão contraditória. A linguagem da reclamação não corresponde mais a um estado de coisas ruim ou a uma incongruência do que à capacidade de compreensão daquele a quem se dirige. É sempre também a queixa de que não há um destinatário adequado. A reclamação é, por isso, mais ou menos claramente também a reclamação de que não pode ser ouvida e que se torna uma reclamação, em primeiro lugar, ao ser ouvida. Junto com sua natureza de reclamação, a reclamação contesta, simultaneamente, sua linguisticidade.

Quem reclama, reclama por não poder ter certeza do que está fazendo e se está fazendo alguma coisa. A reclamação, portanto, é uma forma extrema, limítrofe, de linguagem pela qual todos devem, de alguma forma, sentir-se ouvidos, mesmo que (ou precisamente porque) conteste que possa ser atendida.

Se todos sentem-se ouvidos pela reclamação a ninguém, então deve haver em todos a possibilidade de ser exatamente esse ninguém, aquele que pode ser afetado pela destruição da linguagem na reclamação e apagado como destinatário. Toda reclamação diz: “você não está me ouvindo. Você, a quem esta reclamação dirige-se, não está aí. Você não é você”. No entanto, justamente por sermos citados na reclamação como aqueles que estão ausentes, voltamos nossa atenção para a reclamação. Voltamos nossa atenção para a possibilidade de nós mesmos não estarmos presentes, a possibilidade de sermos negados, esquecidos ou destruídos.

Assim, o escopo e o peso da reclamação não podem ser limitados de forma alguma. A reclamação delineia uma infinidade de perdas e ausências. Contesta sua capacidade de encontrar uma resposta que não seja (por sua vez) outra reclamação, implícita ou explicitamente, por meio de sua estrutura ou de seu conteúdo semântico. Não nega apenas a possibilidade de uma resposta, mas contesta a palavra como tal. É o paradigma de uma linguagem contra a linguagem, de um voltar-se para si que é, nesse gesto, um afastar-se de si e que (na conexão mais que meramente paradoxal entre conexão e dissolução de todas as conexões) revela a estrutura constitutivamente desconstitutiva do que chamamos sua linguisticidade (seu estatuto linguageiro, sua natureza de linguagem).

Como a reclamação tem a estranha capacidade de contestar toda conexão linguística, bem como a conexão consigo mesma, portanto sua própria consistência e continuidade, a reclamação também apaga o tempo. Não apenas é monótona; não apenas, por meio de sua monotonia, provoca o eterno retorno do sempre igual da reclamação, o que exclui qualquer mudança no tempo. Por meio de seu monocronismo, destrói o tempo, uma vez que esse tempo é um tempo de mudança, do “ainda não”, um tempo de realização do futuro que ainda não foi pensado. Visto que se relaciona com toda a extensão do tempo e com as possibilidades abertas por esse, a cada gesto em que se revela, conduz às fronteiras do tempo e salta de seu monocronismo para o anacronismo. Mas comporta-se de forma anacrônica não apenas em um determinado tempo mensurável, mas em relação a todos os tempos, não apenas em relação ao tempo passado — que pode ser lamentado como passado — mas em relação ao tempo vindouro — que, como ainda está à frente, está faltando, portanto também pode ser lamentado — também em relação ao tempo presente, que pode ser esvaziado pela reclamação, portanto, só pode ser vazio. Por mais que a reclamação esteja empenhada na passagem perpétua do mundo, portanto, por mais que transforme cada mundo em um mundo “meramente” temporal e de tal forma que seja o próprio tempo do mundo linguístico, a reclamação também está, como esse evento de temporalização, já no limite máximo e fora de todo o tempo.

O que quer que seja ou esteja presente, esteja tornando-se, transformando-se ou esteja ausente acaba exposto pela reclamação a um não-tempo que não está presente nem é esperado, nem vazio, nem realizado, nem passado, nem eterno, que não é tempo e, como não é tempo, também não pode ser descrito temporalmente. A reclamação examina o tempo do mundo linguístico apagando cada ser, cada é. Insiste que esse tempo desse mundo não pode ser predicado e que, independentemente de todos os enunciados possíveis sobre o tempo, esse é inefável no sentido mais veemente da palavra. É a primeira a professar essa inefabilidade e atesta-a enfatizando sua própria falta de um objeto ou destinatário, sua falta de fundamento e sua futilidade, e de todas as formas mina, deforma e destrói as convenções formais, semânticas e pragmáticas de sua articulação. Nada que possa ser dito, nada sobre o que um é possa ser dito, restaria não danificado pela reclamação. Como nega que possa haver um fim para a reclamação e insiste em considerar toda resposta limitadora lamentável, acusável e deplorável, para si não há futuro — o que significa, antes de tudo, nenhum futuro da linguagem — que não tenha de ser rejeitado por si. Não há retorno e não há infinidade de reclamações que não precisariam ser rejeitadas. Em cada um de seus momentos, portanto, a reclamação está saindo da linguagem, da comunidade, do mundo e do tempo. Atravessa o movimento de atrofia, anacronismo, a-sociabilidade, portanto, é o testemunho mais sincero do que é a limine extramundano e inumano em cada linguagem. Entretanto, só pode ser isso porque, por si só, contesta a linguagem e o discurso em suas formas e elementos constitutivos e contesta a substancialidade, a persistência, portanto a capacidade de resposta de todos aqueles a quem se dirige. É a linguagem da diferença e da própria diferença da linguagem e na linguagem.

Reclamações não se limitam a apresentar acusações claramente fundamentadas com um objetivo definido. Acusações, como regra geral, estão relacionadas a circunstâncias que são discutíveis e passíveis de questionamento, que podem se tornar temas de uma conversa, debate ou processo jurídico. Pode-se registrar uma reclamação no tribunal por danos, conforme definido pelo sistema jurídico, mas esses danos são considerados reparáveis, pelo menos até certo ponto. Nesse caso, a reclamação é finita; as partes em disputa podem “resolver as coisas” se concordarem com as convenções sociais e com as instituições que as garantem. No entanto, isso raramente acontece e, mesmo depois que um conflito foi resolvido, seja uma disputa legal ou uma mera “diferença de opinião”, as partes envolvidas não param de reclamar, muitas vezes jamais. Reclamações cujo escopo e intensidade são difíceis de determinar legalmente, pois, além do que é apresentado abertamente, também incluem reclamações não reconhecidas, repudiadas, ocultas e inconscientes e sua longa reverberação, transcendem toda acusação finita confinada a um objeto determinado e a uma situação circunscrita. As fronteiras da reclamação — sempre um caso particular ou fracasso — só existem para serem ultrapassadas, no caso particular, a fim de reclamar sobre o fracasso de tudo e estender a reclamação infinitamente: falamos com desdém sobre a tagarelice.

Nenhum estatuto ou limite sobre reclamações pode detê-las, pois, em princípio, abrangem tudo e sempre se queixam, em relação a tudo, de que não é tudo, não está inteiro, não está completo, não existe. Por isso, não apenas se deparam com um não, mas o procuram; não apenas o descobrem, mas abrem-no e buscam aquilo que, como nada, excede toda falta particular e limitada. Assim, nem mesmo o infinito pode satisfazer a estrutura da reclamação; seria apenas a rejeição das fronteiras que, no curso dessa rejeição, sempre poderiam ser traçadas — e apagadas — novamente. Mas a reclamação não continua meramente em sua rejeição de todas as particularidades e delimitações; também rejeita sua continuação, sua continuidade, seu progressus ad infinitum precisamente porque não proporciona saturação, portanto, como reclamação absoluta, também continua a continuação da reclamação e a descontinua. Uma vez que deve ser infinita, bem como não-infinita, só pode ser esse não e somente na maneira ontologicamente incompreensível do não-ser. A reclamação não é um tema potencial da ontologia.

Trazer para a linguagem aquilo que, sem estar presente, ainda assim enfaticamente “está lá” — esse é o desejo que move a reclamação. Não tenta falar sobre o nada, como a filosofia tem feito desde Parmênides, meramente para excluí-lo da esfera do que pode ser pensado e dito; tenta trazer o nada para a linguagem, seja o nada particular da pessoa que fala ou o nada que mal se distingue disso, que deve acompanhar toda fala, desde que esteja falando do que está ausente. Não dizer nada, mas sim dizer o nada: esse é o desejo a que a reclamação visa. Se fosse bem-sucedida, então o nada se tornaria linguagem — linguagem sem significado e sem objeto ou destinatário, mas linguagem e, como tal, presente, se também não for ininterrupta. Todavia, essa linguagem também seria, simultaneamente, nada e, assim, ausente, embora não sem resquícios. O trabalho da reclamação consistiria, dessa maneira, em expor em uma sequência discreta a impossível simultaneidade da linguagem e do nada e em tentar, a cada vez de novo, trazer o absolutamente ausente à presença. Consequentemente, a reclamação seria o caminho para o início da linguagem que, mesmo antes dessa linguagem, leva de volta a um tempo sem linguagem. Ao contrário de toda impressão de anormalidade lógica e psíquica que desperta há muito, especialmente na lógica e na psicologia formais, a reclamação seria a linguagem mais sincera do início da linguagem que se pode imaginar: de seu início e acontecimento. Seu maior perigo estaria em se entregar a reclamações sobre reclamações, denunciando-se como fútil, assim julgando erroneamente sua natureza como acontecimento.