Pretendo aqui explicitar algumas considerações que me
parecem necessárias, seja por força interna ou externa. E começo pela seguinte
epígrafe, a qual concebi secando a louça, há pouco: “se eu entendesse o que
você está falando, você não precisaria ter perguntado se estou entendendo; nem
nunca entendo, é como se falassem uma língua estranha ao meu redor, ainda que
as palavras soem como as mesmas que eu digo, são novas, diferentes, nenhuma
delas é nossa, mas minhas ou deles”.
Um dos pontos mais fundamentais da contemporaneidade é
ditar que somos formados socialmente. Ok, tudo bem, eu aceito, talvez eu seja
fruto de uma série de instâncias culturais (e com isso quero dizer históricas e
sociais, porque não há cultura instantânea, tampouco individual), mas a
pergunta permanece: por que eu percebo “livro x” como melhor que “livro y”? Se meus gostos são formatados de fora e sou
por eles atravessado, então que mecanismo eles utilizam para se disfarçar assim
tão bem que não os distingo de mim mesmo? E por que eu me sinto, sim, sempre,
individualidade, não uma amálgama indistinta dessas instâncias que me compõem?
Por que me sinto eu e não elas?
É importante pensar nisso porque se observa duas opções:
1) essas instâncias possuem métodos absurdamente competentes de nos engendrar e
enganar a tal ponto que não nos confundimos com elas, ainda que sejamos só uma amálgama delas; 2) há um furo
nessa explicação e todos esses movimentos “ideologizantes” (que reducionismo
horrível fazem de toda a Arte!) estão ignorando algo que, portanto, não
explicam (exatamente por ignorarem). Quero tentar explorar essas duas
possibilidades.
Na primeira possibilidade há um mecanismo muito esguio
que nos escapa à percepção corriqueira e à análise profunda em todas as
instâncias culturais, uma engenharia arquitetada para sermos únicos apenas na
medida em que somos o atravessamento de toda a série cultural que nos atravessa
e não outra (se fosse outra, seríamos outra pessoa e não quem somos, o que é
conflitante, outra vez, com a experiência individual e com a noção de unicidade de cada sujeito, isto é, que
cada um é único). Deste modo é estranho pensar na importância que alguém tem
para a história, nisso eu gosto muito da ideia, veja-se minha iconoclastia.
Problemático se torna quando percebemos que qualquer um teria sido Hitler e
qualquer um teria sido Beethoven. Então por que não são? Conflitante outra vez.
Na segunda possibilidade acrescenta-se um elemento que é
capaz de explicar a unicidade referida anteriormente, porque elemento que
escapou à vertente anterior, chama-se a ele experiência
(individual). Cada um é único na medida em que só a si mesmo refere a
experiência, a vivência que tem do mundo, de tudo que já vivenciou (e também o
que não vivenciou compõe sua experiência, nunca nos esqueçamos de que o não escrito
é a segunda parte do texto, sempre, a ausência é sempre parte da presença). A
experiência é única a cada um, por isso irmãos gêmeos univitelinos que sejam
criados à mesma maneira dão em pessoas muito diferentes, porque experienciam o mundo de maneiras
diferentes (isso também nos refere a efeitos mínimos no presente que, a longo
prazo, se tornam desvios imensos, uma espécie de “teoria do caos” [com muita
reserva optei pela expressão] aplicada à vida humana, quer caos maior?).
Isso tudo, todavia, é ainda dançar conforme a música, é
muito bem possível negar as hipóteses (ambas sob a sombra das leituras de mundo
ideologizantes já referidas) e afirmar que a experiência de mundo individual é
realmente a única válida (portanto “livro x é melhor que livro y” é verdade
[mas não sempre verdade], não apenas
para mim, mas é assim que é, porque é assim que experiencio a situação referida, é assim que se me configura o
mundo).
Também é possível afirmar que a verdade é fruto da
coletividade, então ambos os livros só serão bons se forem consumidos
maciçamente. Não assumo essa hipótese nunca porque, (in)felizmente, é muito
fácil e forte observar a formação do gosto pessoal a partir das instâncias
sociais (uma delas sendo o próprio consumo maciço de algo, a coletividade). O
que não aceito, porém, é a determinação absoluta desse gosto pessoal como apenas fruto das instâncias que o formam
(se assim o fosse ninguém jamais mudaria de gosto durante toda uma vida numa
época sem grandes revoluções, mas alguém pode ir de religioso a irreligioso em
uma vida, de liberal a socialista, de altamente interessado em X a
desinteressado em X).
Outro ponto que me é curioso são os atravessamentos entre
Estética e Ética, brincando com as palavras é fácil ver que “estética = est ética = é ética”, ou seja, Estética
(apreciação do belo, uma busca pelo
que compõe a beleza em si, bem como o sublime,
além dos efeitos sensorial-emocionais produzidos pela beleza, tanto quanto seu
oposto, a feiura, ou o ridículo) é sempre Ética (a busca pelo melhor modo de viver, pelo certo e errado, a busca pelo bem viver e a plena realização do humano).
Se se observam esses dois pontos como entrecruzados,
formando-se e sendo formadores mutuamente, percebe-se logo que como se vive afeta o que se aprecia, bem como o
que se vive afeta como se
aprecia, e todas as combinações possíveis são fruto desse entrecruzamento. Como
observar esse entrecorte, porém? É bastante simples, honestamente. A Estética
cuida do que se aprecia e como se aprecia; a Ética cuida do que se vive e como se vive; fica fácil perceber que tudo que se vive pode ser
objeto de apreciação (preferencialmente crítica e analítica) e a apreciação
sempre provém de algo vivido, experienciado.
Claro que se pode apreciar o que não
se vivenciou, todavia precisa ser algo passível de vivência ou apreciação (as
limitações espaciotemporais sempre
operam sobre a constituição bio-psico-sócio-espiritual do ser humano). A Arte
parece ser esse lugar de possibilidade de vivência e apreciação. Quando me
emociono com uma música ou discuto algo impelido por um texto lido, ou
vice-versa (é sempre possível apreciar de maneira diferente o vivenciado),
então percebo que pela Arte sempre ser linguagem
(e não apenas língua), as instâncias
formadoras são também linguagem e tudo na vida – quiçá a própria vida? – é tão
linguagem, por isso se consegue sentir
e falar de tudo isso.
Sendo todas essas instâncias linguagem, é muito simples concluir que devemos
voltar à Semiologia/Semiótica, o estudo dos signos (objeto
constitutivo de qualquer linguagem) e perceber: sempre se tratou disso, de
estudar o modo como o humano significa e interpreta o que o rodeia, tanto
quanto como interage com o que o rodeia (e o que é rodeado, isto é, a si mesmo,
seu interno ou interior, que nos remete a anterior,
e daí se pode seguir unindo outros termos à série significante,
indefinidamente, e dilatando a noção, até perceber que se trata de toda a
Vida).
Que fique bastante claro: não é
possível excluir a experiência do
humano, é o que dá sentido à noção de unicidade
vivenciada (mesmo em comunidades que atestam ter uma noção coletiva do sujeito,
existe pronome de primeira pessoa singular [o qual existe em todas as línguas estudadas até hoje], assim,
há unicidade, pelo menos, dentro da língua, portanto, da linguagem). Seria isso
devido à descontinuidade dos signos?
Conseguimos separar facilmente uma fala em frases, frases em palavras, palavras
em sílabas (e, no plano escrito, sílabas em letras, sonoramente é mais difícil,
mas você pode brincar muito [não falo de gestos porque esses são fáceis de
romper em letras]).
Porque nos constituímos sujeitos (só
se pode dizer ‘eu’ dentro da língua) nas diversas linguagens, e essas são
descontínuas por excelência, que não somos totais (contínuos)? A Arte dá a
impressão de totalidade (por isso a completude sensorial-emotiva que provoca e
sua consequente ausência abismal após a experiência, poder-se-ia agregar a essa
a experiência mística do mundo) mesmo
quando é fragmentária (pois é fragmentária em toda uma extensão, o que é uma
espécie peculiar de continuidade, a continuidade por dissemelhança).
A ausência de totalidade, a impossibilidade do retorno a Um é a fonte da feiura, do sofrimento, da ausência fundamental? Não quero propor o retorno a Um, porque Um é ainda algo, é ainda presença,
é ainda Tudo, e Tudo é menos que Nada,
por isso proponho o retorno a Zero. O
Nada é mais que Tudo exatamente por ser menos; Tudo
é ainda algo, enquanto Nada é ausência, mas não necessariamente não-algo, sendo, portanto, a verdadeira totalidade, a totalidade em
potencial, tanto quanto, simultaneamente, “não sendo nada”, isto é, “sendo nada”, ou seja, não-sendo. Daí se
deriva facilmente que a dor humana provém de Ser (mesmo quando se morre, quando
se encontra o limite da vida, não se deixa de ser, em verdade é impossível deixar de ser uma vez que se
é). Sendo o humano, portanto sempre sendo, é impossível deixar de ser, assim, sofrer é parte essencial da vida (ou da experiência de vida).
A defesa está feita, que rolem os
dados. Feita, não acabada, acabado só está o que morre (ainda assim se pode
falar do morto e, desta forma, mantê-lo vivo), pois vida é sofrimento, mas
também movimento (os significantes se assemelham, não é sem motivo). Espero,
numa próxima série de apreciações, fazer uma defesa da necessidade de
existência da Moral. Fica pra próxima, de qualquer forma, estou exausto e o
cansaço alheio se deve respeitar.
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