domingo, 11 de fevereiro de 2024

Sobre algumas questões literárias e da escrita criativa

[L]o que está en juego en el trabajo literario (en la literatura como trabajo) es hacer del lector no ya un consumidor, sino un productor del texto.

Roland Barthes. 1. La evaluación. In: S/Z. Trad.: Nicolás Rosa. Ed. rev. y corr. México: Siglo ⅩⅪ, 2011. (Teoría.)

Uma das questões que mais me tem convocado sobre o estado atual da literatura é a falta de ênfase nas transformações e mudanças. Tanto os escritores contemporâneos quanto os acadêmicos parecem ter perdido o tato para a natureza dinâmica da narrativa literária. A experiência leitora ensina que personagens não são estátuas, estados de coisas paralisados, senão movimento, passagem, transição de estados de espírito, modificação de crenças, alteração de interações.

Essa desatenção ao dinamismo ficcional surge no mesmo momento histórico em que a literatura se escreve desprovida de qualquer atenção ao ritmo. O ritmo da prosa, sendo de natureza muito distinta do ritmo da poesia, traz consigo seus problemas peculiares, o maior deles: sensibilizar (e conscientizar) o leitor para sua existência e importância.

Já se sabe o ritmo ser uma questão vital: o piscar de olhos, a salivação, a mastigação, o caminhar, o digerir, o respirar, o pulsar, o dormir e o acordar, etc., são todos ciclos rítmicos. Pouco se discute como isso se traduz no texto prosaico, notadamente, mas não exclusivamente, o ficcional.

Pode-se pensar o ritmo prosaico desde a dimensão fonológica das sílabas até a duração prosódica da sentença, incluindo-se aí a duração da respiração interior pertinente à leitura silenciosa, espécie de duração mental ou atencional. O tamaho das frases, portanto, tem seu papel. Como também tem papel a introdução de novas informações: pontuam o andamento ideal do texto. Os tipos textuais (narrativo, descritivo, dialógico, etc.) também têm papel importante, apressando ou desacelerando a sensação de passagem do tempo textual em relação ao tempo leitor.

Podem também marcar o ritmo: a introdução de novos personagens, a transição de cenas, quebras textuais (parágrafos, seções, capítulos, etc.), mudanças tipográficas como itálicos, entre tantas outras possibilidades. Uma das mudanças mais silenciosas, porém mais pertinentes à atração às narrativas, é a mudança de estado patêmico (referente ao pathos): os personagens sentem-se de uma maneira, interagem, então se sentem de outra maneira e assim por diante, do começo ao fim da narrativa.

Essa mudança patêmica certamente precisa ser percebida durante a leitura para exercer seu efeito no leitor; todavia, isso não precisa se dar de maneira consciente.1 Tal mudança pode corresponder a mudanças no estado de espírito do leitor, mas isso não é necessário.

O ritmo, portanto, liga-se à transição entre estados patêmicos (estados de espírito, estados emocionais), demonstrado por ações ou reações do personagem e até mudanças narratoriais (o clima emocional ou mood da história).

Entretanto, por vivermos sob a cristalização constante do ser em sua imagem, não há mais escrita voltada à transformação, à transição, ao movimento, à mudança; tudo se queda estático. O personagem permanece como surge e segue assim do começo ao fim; o narrador também não muda sua narração. Assim, os finais tornam-se óbvios pela paralisação das personalidades, inutilizando a falta ou o excesso de reviravoltas na sequência de acontecimentos. Se ninguém muda, o final já estava exposto desde o início, porque não houve deslocamento algum (não importando quanta ilusão de movimento promova-se com o uso e abuso de reviravoltas).

Como a literatura se identifica à prosa desde o século ⅩⅨ e como a prosa perdeu sua característica determinante (a transformação do personagem, a mudança de estado patêmico), tem-se a sensação de que a literatura está morrendo.

Apesar de as formações em escrita criativa enfatizarem um “acontecimento disruptor” no início da trama, o qual propulsa o protagonista à série de reviravoltas que compõem o enredo, isso não movimenta nada realmente, porque a ênfase recai nas reviravoltas, ou seja, na estruturação da narrativa. Abandona-se a mudança patêmica do personagem e do clima emocional geral da história contada.

O ensino de escrita criativa baseado em fórmulas não tem servido para resolver isso, pois a aplicação das fórmulas ao impulso criativo próprio não promove a apropriação criativa desse impulso. Trata-se apenas da resposta pronta, a qual não estimula a reflexão sobre a escrita própria.

Contudo, a recomendação da leitura também não garante aprimoramento da escrita, pois a leitura de um texto ficcional (mesmo a comoção) não garante a reflexão sobre a escrita própria e a escrita alheia. Espera-se, com a recomendação de leitura, uma visada crítica sobre a escrita própria, é dizer, reconhecimento dos limites dos textos próprios e aprendizado de procedimentos, estratégias, técnicas e métodos (as chamadas “soluções criativas”) empregadas nos textos alheios.

Esse aprendizado não está garantido no mero ato de leitura ou mesmo na identificação emocional (a comoção) com o texto lido. Não há modo de garanti-lo apenas através da leitura e elaborar seu ensino mostra-se dificultoso ao extremo. Ainda assim, seria o programa ou currículo de escrita criativa mais poderoso já estruturado, pois prepararia o escritor para si mesmo, para reconhecer seus limites e trabalhá-los.


  1. Ao comentar a narrativa, como na produção crítica literária, faz-se necessário explicitar (conscientizar) as transações patêmicas da narrativa, pois a crítica depende frontalmente do comentário ao conteúdo ficcional e isso pode se dar ao trazer a forma literária (suas operações, encadeamentos, movimentações, etc.) como conteúdo do discurso da crítica.

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