A cortina queima o vidro,
a janela chateia-se.
Meia-noite.
Fora, os vermes ao luar.
Soa uma hora.
O amor dependurado numa árvore
como subindo escada.
A hora estanca.
Intriga-me a gravitação exercida pelos grandes nomes (notadamente sobre os acadêmicos). Inclinação infeliz, pois os cega para todas as sombras que têm diante dos olhos fartos de tanta luz. Essa é mesmo a distopia capitalista contemporânea: tudo banhado a fosforescência 24h, nenhuma treva. A atenção às sombras é a própria crítica (é dizer, o contrário da ingenuidade): descobrir quanto não se enxerga naquilo que se vê.
Mas como treinar a vista cansada para ver mais precisamente aquilo que não se vê? Quiçá começar pela característica: não se vê não por invisibilidade, mas por tornar-se acostumado à visão de tanto se ver. Reeducar os sentidos, a sensibilidade.
Estejamos alertas, portanto, ao cansaço e ao costume da sensibilidade. Admitamos, portanto, que a semiose interminável que nos cerca também nos cansa.
A sensibilidade, para permanecer sensível, terá de permanecer atenta sem cansaço, o que parece impossível, pois toda vigília demanda o sono para seu reparo.
Aí está uma das soluções do problema: dormir e sonhar. Se dormirmos (e sonharmos), regeneraremos a fina membrana da sensibilidade, esse delicado órgão imaterial com que medimos o mundo e a nós mesmos, nossa cartografia interior.
Será tarefa fácil estabelecer novos conceitos e categorias nas ocasiões adequadas quando a sensibilidade estiver revigorada, pois também incide sobre a percepção do momento oportuno.
Relaciona-se, portanto, com os ritmos internos e externos, é dizer, com o tempo. Propicia a inserção do sujeito no fluxo dos acontecimentos e estimula sua criatividade nas maneiras de barrá-lo, como cortá-lo ou suspendê-lo, mesmo que apenas durante um gesto ou um instante.
A sensibilidade exausta com que vivemos não precisa tanto de olhos, de vistas, perspectivas, mas de danças, texturas, arquiteturas — toque.
Referir-se, portanto, ao tato de alguém (“ele tem tato”) como sua capacidade de agir e reagir adequadamente a um ambiente emocional concreto [inglês mood] quão háptico e quão natural, é dizer, quão orgânico, quão instintual, da ordem dos órgãos psíquicos, capacidades invisíveis, deve ser esse feito.
Falta tocar — e tocar-se — àquele que circunda apenas os grandes nomes (e vê os pequenos nomes como meros comentaristas, seguidores, adeptos, cultistas, etc. dos grandes nomes). Falta-lhe essa relação quase animal (instintual) com a matéria em questão — o pensamento.
Pensar requer ver, sim, é claro, a própria ideia de ideia1 deriva-se daí, as perspectivas — pontos (geometria) de vista —; porém, depende igualmente da matéria, da maneira, da mão, do toque, do tato: tocar e ser tocado, reciprocidade que, pace Didi-Huberman, não sofre correspondente na visão.
Ainda que hoje, sim, sejamos até mais vistos do que vemos (câmeras de segurança, live streams, reconhecimentos fotográficos, etc.), no contato podemos exercer força sobre o objeto assim como o objeto pode exercê-la em (ou contra) nós.
O contato corrobora a existência do corpo e permite operar e decidir desde o critério do impacto.
O reino das imagens sob o qual padecemos ruma ao desaparecimento do corpo. Ama a abstração como salvação, promovendo as fantasias de upload da consciência, como se o animal sensível pudesse se reduzir ao raciocínio calculativo-representacional.
O império imagético se engana e nos engana ao querer reter a vida na imagem, ignorando que a vida só se delimita em imagens quando cede seu espaço ao trabalho da morte2.
Provavelmente partindo do proto-indo-europeu *wéydos (“ver, imagem”), de *weyd- (“ver”), cognato do sânscrito वेदस् [vêdas] (“conhecimento, ciência; riqueza, propriedade”).↩
As imāginēs (“semelhanças, aparências” — de imāgō, “imagem, imitação, estátua, representação” como também “fantasma, aparição”) dos mortos retidas em suas máscaras mortuárias, como a máscara dourada com o rosto de Tutancâmon ou a máscara de bronze com a face de Napoleão.↩
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