sábado, 8 de junho de 2024

Mais especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

Untitled

A teoria dos atos de fala tenta descrever o alcance e a estrutura da reclamação em termos de atos, mais precisamente, de atos locutórios. Sem adentrar mais na tensão e mesmo na incompatibilidade entre os conceitos de ato e de expressão, define a reclamação como ato de expressão. J. L. Austin atribui-na ao grupo de declarações de reações emocionais que ele chama comportamentais [behabitives]. Uma vez que os atos, do ponto de vista dessa teoria, só são considerados atos em uma convenção já dada e só podem ocorrer na condição de seguirem essa convenção, a expressão à qual devem dar um afeto está sempre definida como a expressão de um interior que foi pré-formado por convenções, um sentimento que pode ser acordado e uma linguagem de afeto socializada em princípio. Um ato que não atenda a essas condições não pode ser “bem-sucedido” ou “feliz” nos termos de Austin; como tal, é incognoscível, irreconhecível e irrespondível. As reclamações sobre atos de fala “infelizes” e “malsucedidos” podem, naturalmente, ser “felizes” e “bem-sucedidas”, mas apenas se, por sua vez, estiverem conforme as convenções da reclamação. São apenas queixas “felizes” — socialmente aceitáveis e bem-sucedidas — se e quando não são queixas, mas acordos, se não rompem com um padrão de comportamento estabelecido, mas o confirmam. A teoria do ato de fala, em suma, bane de seu sistema tanto a queixa quanto qualquer outro afeto ou expressão de afeto para garantir a ação, e bane a ação de seu sistema para garantir a sistemática da ação, a síntese das ações e a harmonia pré-estabilizada entre essas. Se, para a teoria dos atos de fala, a ação funciona consoante as convenções, então formalmente não é nada mais que a confirmação dessas convenções, portanto, paradoxalmente, tanto uma ação que satisfaz sua forma universal quanto uma não ação que se abstém de toda influência ativa sobre sua forma. O termo “ato de fala”, portanto, como utilizado pela teoria dos atos de fala, é um antônimo: não descreve nem um ato, nem um ato de fala, mas apenas uma mecânica de comportamento de acordo com um programa pressuposto de funções.

Uma vez que os atos de conformidade só podem ser “felizes” porque não são atos, sua definição também delimita os atos “infelizes” excluídos pela teoria dos atos de fala, atos que, no mínimo, têm a chance de alterar as condições de conformidade sob as quais podem se tornar eficazes e, assim, de fato, assumir o caráter de um ato. Esses atos só podem ocorrer independentemente das normas dos atos de fala, antecipadamente e sem levar em conta seu cumprimento. Portanto, só podem ser não convencionais, não se baseiam em nenhum consenso e não correspondem a rituais nem rotinas. Mas isso significa que “atos de reclamação” não devem ser apenas reclamações sem consideração por serem ouvidas ou terem efeito, reclamações sem intenção ou destinatário. Devem, em todos os sentidos, ser atos de fala “infelizes”: a saber, primeiro, atos de fala que dão origem ao infortúnio; segundo, que perdem sua intenção; terceiro, que não se conformam a nenhuma regra de compreensão. São muito estridentes, muito subjugados, muito brutais, muito desesperados, não linguísticos o suficiente ou excessivamente ativos. Uma vez que não compartilham uma regra com as expectativas associadas a tais expressões, portanto, não é seguro que serão reconhecidos como reclamações, devem essencialmente parecer anômicos, associais ou antissociais. Portanto, não deve nem ser tomado como certo que possam ser incluídos no campo da linguagem — seja um idioma específico ou uma língua humana como tal. Somente se as reclamações forem expressas absolutamente sem condição e sem um horizonte predeterminado, portanto, ou se evitarem ser expressas, são reclamações. São reclamações apenas se minarem os parâmetros de sua determinação, portanto, todas as linguagens pelas quais poderiam ser identificadas como o que são. Que pedras gritem não é uma metáfora poética. Que emoções extremas sejam expressas na linguagem de um animal não é uma descoberta fisiológica. Que toda a natureza se levantaria em lamento se lhe fosse dada linguagem, como escreve Walter Benjamin, não é a hipérbole metafísica de um melancólico, mas a definição objetiva da ausência de horizonte do que é chamado linguagem e atividade linguística sem normas convencionalistas de reconhecimento. Como toda fala, a reclamação também deve ser capaz de falhar em todas as suas dimensões — como verbalizar, tematizar, endereçar, comunicar e efetuar — para poder ser reclamação, “ato” linguístico, linguagem. É somente com base nessa possibilidade extrema — a possibilidade necessária, portanto sempre já operativa de sua impossibilidade — que a linguagem e sua queixa extrema podem ser pensadas.

A restrição da reclamação na teoria dos atos de fala a um ato “expressivo”, portanto, não apenas comete um erro metodológico, mas não faz justiça ao fenômeno da reclamação, uma vez que não reconhece sua retirada para o afenomenal como um traço constitutivo desse fenômeno. Fazemos bem, então, em abandonar essa restrição e nos voltarmos, na análise da reclamação, àquilo que rompe as fronteiras das convenções linguísticas, as fronteiras de sua comunalidade, de seu lugar na linguagem humana e talvez de sua constituição linguística como tal. Para entender a reclamação como um ato de quebra de regras e até mesmo de quebra de sua natureza como ato, para entendê-la como anti-ato e como antissocial, como anti-pacto e como paixão, temos que levar a sério a expressão “reclamação silenciosa” e relacionar a série interminável de denúncias sobre toda e qualquer coisa a uma denúncia sempre sem voz, implícita e inexprimível. Na reclamação que não se expressa, insinua-se uma reclamação sobre a própria linguagem, uma acusação do falar, uma revolta silenciosa contra o falar.

Se a pessoa reclamando pudesse descrever precisamente o que está sentindo, ela não estaria reclamando, mas sim descrevendo, compreendendo e colocando sob seu controle o objeto de sua reclamação, por mais arruinado e ruinoso que seja. A reclamação, no entanto, não é um discurso teórico e predicativo da definição de objetos e relações, mas a reclamação sobre a falha de todo o controle sobre a matéria e sobre a linguagem que pode compreendê-la. Não é uma mera relação, mas sim uma relação com o fracasso precisamente dessas relações que tenta estabelecer, uma relação com a ausência de homeostase entre dentro e fora, com a falta de correspondência entre o que pode ser sentido e o que pode ser dito, com a continuidade que nunca se materializa entre as fases do sentimento, entre sentimento e insensibilidade, entre enunciado e significado. Em cada caso, lamenta-se o que está negado. Mas o que é negado à pessoa que reclama é qualquer tipo de relação que possa oferecer coerência e constância, conformidade e consistência. Sua queixa é uma relação com o sem relação. As reclamações são, portanto, repetidamente julgadas com o termo ambíguo “excessivo”. Não conhecem limites, nem paradas, nem fronteiras, porque constantemente se referem ao que não está lá. Mas uma vez que a queixa é incessante e ilimitada, também não pode ser restrita a um interior; uma vez que não é dada uma “linguagem privada” de interioridade que poderia ser levada para fora ao ser transformada em som, mediante expressões faciais ou gestos, não há interior que pudesse ser “expresso”. Não é porque não consegue encontrar um meio adequado para seu enunciado que a reclamação jaz desprovida de expressão; está desprovida de expressão porque não tem e não é nada sobre o qual um interior estável possa ser constituído e distinguido de um exterior. É sem expressão porque corre através do movimento do puro ser-fora-de-si — o movimento, não da separação de uma linguagem interna de uma externa, não de um mundo de um segundo, mas o movimento da separação do mundo do mundo, da linguagem da linguagem, portanto do próprio movimento de cada movimento. O que ocorre na reclamação, na queixa silenciosa ou não expressa, o que ocorre na dor, é uma fissura através do mundo da linguagem como um todo — portanto, sua abertura para o que o mundo da linguagem não é e para o fato de que “não é”.

A reclamação jaz no extremo inexpressivo, desarticulado e silencioso, porque é o movimento de volta antes de um mundo da linguagem, antes de um mundo comum, consistente, físico e mental para uma relação com o que não tem força, em que nada mais pode ser entendido exceto o fato de que “está lá”, sem que seja como algo e sem que “isso” apresente-se como algo diferente da retirada de toda possibilidade de uma declaração de existência. Na sua forma mais extrema, portanto, por completo, a reclamação é a linguagem da recusa da linguagem. É por isso que pode ser descrita como o evento da separação e partida de si como linguagem e como reclamação. Uma vez que a fissura que se abre com ela constitui o evento fundamental do que é chamado linguagem, fica claro a partir dela que a linguagem não é apenas uma estrutura aberta composta de nomeações e enunciados, atos indicativos e suas modificações, acordos e contestações, mas sim, em primeiro lugar — portanto, se ainda imperceptivelmente, em todos os sentidos — uma experiência de ser-sem-linguagem e ser-sem-mundo, com afasia e afânise. A queixa, portanto, a linguagem na totalidade, é mutação: movimento com seu silenciamento. Como é esse silenciamento em que se divide e se comunica com o outro, é uma com-mutação antes e em toda comunicação.

A comunidade daqueles que falam é sempre também a comunidade daqueles que não falam uns com os outros: que são capazes de não falar, não precisam falar, que não dizem nada, ficam quietos ou permanecem em silêncio. Assim como sua linguagem não é sem pausas ou áreas silenciosas, também a conversa compartilhada e conversar um com o outro repetidamente se interrompem e abrem espaço para o que não é — pelo menos não manifestamente — linguagem. Isso não significa que o silêncio e a mudez sejam fenômenos sociais que são iguais, ou mesmo meramente comparáveis, à fala e aos segmentos dessa delimitados por pausas. Isso está tão longe do caso que mesmo expansões mínimas nessas pausas ou aumentos no intervalo entre os enunciados de diferentes falantes podem sugerir a possibilidade de ausências completas, de incapacidade de falar e da perda do mundo. Mesmo as representações mais coerentes na linguagem — talvez precisamente essas — podem murar algo não dito, sobre o que não se pode dizer se tratar de um silêncio significativo ou uma mudez sem sentido. As pausas constitutivas para toda comunicação ocupam o limiar entre a fala que comunica — pois podem ser interpretadas como ironia, como manifestação de dúvida ou como reclamação — e uma ausência de comunicação na qual não se silencia com e para os outros, uma vez que não há relação com os outros nela, mas apenas uma relação com o outro como outro, com um não outro e sua mudez, uma relação com o que é incapaz de relação. A reclamação ocupa esse limiar quando se trata de uma reclamação sobre não ser ouvida, não conseguir chegar a um destinatário, não falar uma língua comum com os outros, portanto, não ser capaz de silêncio ou comunicação.

Uma observação de Hegel sobre a conexão entre o lamento e o canto sugere que, em sua ênfase e expressividade, a música supera a linguagem, portanto, deixa para trás toda determinação que possa confiná-la ao reino da finitude. A música seria a infinitização insistente da experiência da finitude. Se assim for, no entanto, o lamento não tem simplesmente uma dimensão social, como se estivesse embutido em uma rede social que pode ser gerenciada e regulada, uma rede que regula, um mero fio em um nexo social seguro. Se o lamento é uma possibilidade irredutível — no sentido de um traço estrutural indissolúvel — de toda linguagem, então mesmo na linguagem da comunicação, algo que não pode ser comum, algo não dialógico e sem linguagem está em ação que dissolve as conexões sociais, desfaz seu tecido, destrói seus fios. O lamento está isolado no minúsculo ponto do desaparecimento, no qual não pode mais ser contado como lamento e não pode ser posto ao lado de um segundo ou terceiro. É infra-singular e super-geral, incompreensível como categoria, uma linguagem não de determinação, mas da ausência de determinação, objetivo, intenção e, no limite, também de voz. Que possa ser escutado em conversas e, repetidas vezes, na música coral pode sugerir que as comunidades lamentem, em primeiro lugar, sua própria desintegração e que se restaurem nesse lamento. Mas também pode indicar que em seu lamento — como nos diálogos de Jó e nos coros trágicos — uma linguagem antes de toda comunidade, antes de todo idioma social ou mesmo político e antes de toda generalidade conceitual se abre e, como a abertura de outra linguagem, opõe-se a toda linguagem conhecida.

Isso também afeta a forma. A dor não pode simplesmente receber forma, porque cada forma pode, por sua vez, provocar dor e ser quebrada por ela. O que seria da forma se não pudesse ser dilacerada pela dor? O que seria a dor se não distorcesse todas as formas? O movimento da dor, que sempre exige formas e sempre as destrói novamente, mina toda forma, rito e padrão de relação que deve evitar a dor e traz seu colapso. É mais uma vez instrutivo lembrar de Hegel neste contexto, uma vez que ele afirma que sua filosofia é uma filosofia do cristianismo e, mais precisamente, do espírito verdadeiramente cristão do cristianismo, que ele pensa como uma religião da dor e sua subsunção: da dor da finitude que, sentida como tal e articulada na forma adequada, também já deveria ser modificada, relativizada e aliviada. A tradição cristã que culmina nos comentários de Hegel é uma tradição de tornar social, de universalizar e espiritualizar, mas também, portanto, de negar a dor. Entendida como a dor do negativo, é sempre também o trabalho do negativo. Como esse trabalho, é produtiva. E como dor produtiva, é apenas essa dor que faz seu trabalho destrutivo como o trabalho de transformação em figuras sempre novas de espírito e, finalmente, na figura única e máxima do espírito absoluto que se contém, portanto, na forma de todas as formas. Essa última, a ideia absoluta, como a própria dor, teria que ser, ao mesmo tempo, seu alívio; teria que ser a dor sublimada, preservada, dissociada e aliviada por si mesma. No entanto, a dor subsumida nesse sentido, a dor compreendida e tornada espírito — Hegel está certo — não é mais dor. Pode ter sido aliviada como dor, mas há uma dor não aliviada precisamente no fato de que ela não faz seu trabalho de destruição como tal dor, como o possível objeto de um conceito, como uma dor que é produtiva e que produz figuras, mas sim como aquela dor que funciona fora de todos os conceitos, portanto, deste lado de toda figuração e espiritualização. É a dor que é sempre incompreensível, absolutamente sem espírito e sentido, dor que não pode tomar forma. Mas não é apenas sem sentido e não sujeita a teleologia; é também aquela dor que ataca os sentidos, paralisa-os e rouba sua capacidade de orientar. Alguém “fora de seus sentidos” está “oprimido” pela dor ou tão “atordoado” por ela que toda a esfera da sensibilidade está concentrada nessa dor, absorvida e reunida nela. A dor é pura sensibilidade, portanto, já não é mais uma sensibilidade que poderia ser contida, que poderia ser levada a um propósito ou forma pretendida.

Se houvesse uma forma “adequada” à dor, só poderia ser aquela que surge da própria dor. A dor teria que continuar a trabalhar nela e deformá-la em cada instância que diferisse dela. Mesmo expressões de pathos, como categorizadas pela psicologia racionalista e pela fisionomia, portanto, não exibem formas tanto quanto exibem sua distorção, elipses e hipérboles de forma, deformações e o colapso da formação. A dor não tem medida, não tem padrão e não tem limites — não tem dimensão — que possam permitir que seja entendida em uma figura integral, seja “subsumida” e tornada suportável por ser neutralizada. Portanto, é mais do que duvidoso que pinturas como a Crucificação de Grünewald ou O corpo do Cristo morto no túmulo de Holbein possam ser consideradas pinturas cristãs no sentido da definição de cristianismo de Hegel. Nesses lamentos pictóricos, extrai-se o amorfo dos limites das convenções formais, a desarmonia gritante do encarnadino rompe a forma, o excesso ou a retirada dos gestos composicionais, a rigidez dramática mesmo do que é instável — rompem a defesa contra a dor, que só poderia estar assegurada através da figuração e tornam a imagem explosiva, em um caso, e desgastada, no outro. Nas desfigurações da imagem, a representação da decomposição, juntamente do representado, deteriora-se. A não-pintura é pintada, o mudo fala. Daí o hiperrealismo traumático dessas imagens lamentadoras. Se há, no entanto, uma “subsunção” — uma preservação e neutralização — da dor, isso se dá apenas na ausência de lamento com a qual se está detrás e além de cada medida determinada de lamentação. Pois se a dor e a queixa excedem todas as medidas, então também excedem “a si mesmas” e o fazem de tal forma que a ausência de lamentação fala em cada lamentação, a apatia em cada pathos, a incapacidade de suportar a dor em cada dor. O meio de sua comunicação não é uma mediação; mas aquilo que não pode ser mediado, o imensurável, que aflige a linguagem e, com ela, toda medida.

Nenhum comentário:

Postar um comentário