domingo, 2 de junho de 2024

Sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

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Reclamamos de tudo, de infortúnios pessoais e comunitários, do estado geral do mundo e do curso da história, do resultado das eleições e do clima, de indisposições, doenças, guerras, reclamamos da malícia e da maldade, reclamamos até do fato de que os outros e nós mesmos reclamamos. Reclamamos de tudo que há sob o Sol, como diria o bíblico Eclesiastes. Dificilmente se encontra uma forma de discurso mais comum e inteligível que a reclamação. No entanto, reclamações, revelações abertas de nós mesmos, enfrentam constantemente a ameaça de serem descartadas, seja na forma de uma reclamação sobre a reclamação, seja por meio do ridículo, da ironia, da indiferença deliberada ou do silêncio constrangedor — devemos nos perguntar se a ironia, o sarcasmo, até mesmo o humor e, muitas vezes, o silêncio podem ser formas de reclamar.

A reclamação é, inquestionavelmente (embora também lamentavelmente), uma das formas pelas quais nos relacionamos. Entretanto, essa é uma de nossas formas mais estranhas de relacionamento, pois, em certas esferas, as convenções justificam-na e até impõem-na, em outras, tornam-na tabu, mas a reclamação está estruturada de tal forma que uma resposta nem sempre é desejada e, na maioria das vezes, parece impossível.

Talvez a irritação decorrente da reclamação possa ser melhor vista no fato de que temos inúmeras versões e registros de reclamação, mas raramente falamos sobre reclamar. Talvez essa hesitação diante desse fenômeno cotidiano, porém extremo, possa ser explicada, pelo menos em parte, pelo fato de que todo discurso analítico sobre a reclamação causa facilmente a impressão de ser uma continuação (disfarçada) da reclamação.

Isso se dá porque não há absolutamente nada cuja perfeição não possa ser posta em dúvida, nada cuja dubiedade não possa ser objeto de reclamação. Mas, se não há nada que não possa também ser objeto de uma reclamação, isso significa que nada pode oferecer uma base sólida para um sistema comunicativo, um fundamento firme para a compreensão mútua, um vínculo universal entre os falantes, exceto a própria reclamação. Se a reclamação é sempre e em toda parte possível e se pode se referir a qualquer coisa, então tudo pode ser arruinado pela reclamação de alguma maneira vaga e pouco definível.

A reclamação é aquela linguagem que não permite que qualquer significado, importância, valor, interesse, crença ou qualquer uma de suas consequências esteja fundamentada sobre si mesma. Em toda parte, aponta para deficiências e lacunas em enunciados, relacionamentos e atitudes, para danos, erros, agravos e transgressões, e ataca-os por serem causas de inadequação, infortúnio ou sofrimento. Todavia, não atua apenas como reclamante, mas também como testemunha da acusação, falando perante um tribunal que não pode estar a salvo de sua reclamação e testemunho. Lamenta-se e atesta-se por meio da reclamação sempre aquilo que não funciona, não está à disposição, não está lá: o objeto da reclamação, portanto, sempre é uma perda ou falta, uma ausência, um distanciamento ou um declínio. O objeto da reclamação é uma ruína e, com a reclamação que a apresenta, a ruína entra na linguagem e consequentemente em todo o mundo da experiência e do pensamento, em todas as relações sociais ou societárias, no falar e no viver juntos. A linguagem da reclamação é a linguagem de uma destruição que, em princípio, é ilimitada. Portanto, pode-se considerar falar sobre a reclamação como o surgimento da pulsão de morte na linguagem. Para a reclamação, tudo é vazio, indiferente, acabado.

Portanto, na reclamação, estamos expostos a um fenômeno que é tão universal quanto estranho, quer queiramos ou simplesmente percebamos — ou não percebamos — claramente: ao fenômeno de uma linguagem que só pode lamentar a si mesma e sua perda, a si como sua perda. “Estou sem palavras” ou “estou emudecido”: essas frases lamentadoras implicam que não expressam nada além da impotência da linguagem; portanto, implicam que não dizem nada e que a única linguagem à qual podem (em)prestar queixa é a de uma fórmula que se consolida em uma expressão contraditória. A linguagem da reclamação não corresponde mais a um estado de coisas ruim ou a uma incongruência do que à capacidade de compreensão daquele a quem se dirige. É sempre também a queixa de que não há um destinatário adequado. A reclamação é, por isso, mais ou menos claramente também a reclamação de que não pode ser ouvida e que se torna uma reclamação, em primeiro lugar, ao ser ouvida. Junto com sua natureza de reclamação, a reclamação contesta, simultaneamente, sua linguisticidade.

Quem reclama, reclama por não poder ter certeza do que está fazendo e se está fazendo alguma coisa. A reclamação, portanto, é uma forma extrema, limítrofe, de linguagem pela qual todos devem, de alguma forma, sentir-se ouvidos, mesmo que (ou precisamente porque) conteste que possa ser atendida.

Se todos sentem-se ouvidos pela reclamação a ninguém, então deve haver em todos a possibilidade de ser exatamente esse ninguém, aquele que pode ser afetado pela destruição da linguagem na reclamação e apagado como destinatário. Toda reclamação diz: “você não está me ouvindo. Você, a quem esta reclamação dirige-se, não está aí. Você não é você”. No entanto, justamente por sermos citados na reclamação como aqueles que estão ausentes, voltamos nossa atenção para a reclamação. Voltamos nossa atenção para a possibilidade de nós mesmos não estarmos presentes, a possibilidade de sermos negados, esquecidos ou destruídos.

Assim, o escopo e o peso da reclamação não podem ser limitados de forma alguma. A reclamação delineia uma infinidade de perdas e ausências. Contesta sua capacidade de encontrar uma resposta que não seja (por sua vez) outra reclamação, implícita ou explicitamente, por meio de sua estrutura ou de seu conteúdo semântico. Não nega apenas a possibilidade de uma resposta, mas contesta a palavra como tal. É o paradigma de uma linguagem contra a linguagem, de um voltar-se para si que é, nesse gesto, um afastar-se de si e que (na conexão mais que meramente paradoxal entre conexão e dissolução de todas as conexões) revela a estrutura constitutivamente desconstitutiva do que chamamos sua linguisticidade (seu estatuto linguageiro, sua natureza de linguagem).

Como a reclamação tem a estranha capacidade de contestar toda conexão linguística, bem como a conexão consigo mesma, portanto sua própria consistência e continuidade, a reclamação também apaga o tempo. Não apenas é monótona; não apenas, por meio de sua monotonia, provoca o eterno retorno do sempre igual da reclamação, o que exclui qualquer mudança no tempo. Por meio de seu monocronismo, destrói o tempo, uma vez que esse tempo é um tempo de mudança, do “ainda não”, um tempo de realização do futuro que ainda não foi pensado. Visto que se relaciona com toda a extensão do tempo e com as possibilidades abertas por esse, a cada gesto em que se revela, conduz às fronteiras do tempo e salta de seu monocronismo para o anacronismo. Mas comporta-se de forma anacrônica não apenas em um determinado tempo mensurável, mas em relação a todos os tempos, não apenas em relação ao tempo passado — que pode ser lamentado como passado — mas em relação ao tempo vindouro — que, como ainda está à frente, está faltando, portanto também pode ser lamentado — também em relação ao tempo presente, que pode ser esvaziado pela reclamação, portanto, só pode ser vazio. Por mais que a reclamação esteja empenhada na passagem perpétua do mundo, portanto, por mais que transforme cada mundo em um mundo “meramente” temporal e de tal forma que seja o próprio tempo do mundo linguístico, a reclamação também está, como esse evento de temporalização, já no limite máximo e fora de todo o tempo.

O que quer que seja ou esteja presente, esteja tornando-se, transformando-se ou esteja ausente acaba exposto pela reclamação a um não-tempo que não está presente nem é esperado, nem vazio, nem realizado, nem passado, nem eterno, que não é tempo e, como não é tempo, também não pode ser descrito temporalmente. A reclamação examina o tempo do mundo linguístico apagando cada ser, cada é. Insiste que esse tempo desse mundo não pode ser predicado e que, independentemente de todos os enunciados possíveis sobre o tempo, esse é inefável no sentido mais veemente da palavra. É a primeira a professar essa inefabilidade e atesta-a enfatizando sua própria falta de um objeto ou destinatário, sua falta de fundamento e sua futilidade, e de todas as formas mina, deforma e destrói as convenções formais, semânticas e pragmáticas de sua articulação. Nada que possa ser dito, nada sobre o que um é possa ser dito, restaria não danificado pela reclamação. Como nega que possa haver um fim para a reclamação e insiste em considerar toda resposta limitadora lamentável, acusável e deplorável, para si não há futuro — o que significa, antes de tudo, nenhum futuro da linguagem — que não tenha de ser rejeitado por si. Não há retorno e não há infinidade de reclamações que não precisariam ser rejeitadas. Em cada um de seus momentos, portanto, a reclamação está saindo da linguagem, da comunidade, do mundo e do tempo. Atravessa o movimento de atrofia, anacronismo, a-sociabilidade, portanto, é o testemunho mais sincero do que é a limine extramundano e inumano em cada linguagem. Entretanto, só pode ser isso porque, por si só, contesta a linguagem e o discurso em suas formas e elementos constitutivos e contesta a substancialidade, a persistência, portanto a capacidade de resposta de todos aqueles a quem se dirige. É a linguagem da diferença e da própria diferença da linguagem e na linguagem.

Reclamações não se limitam a apresentar acusações claramente fundamentadas com um objetivo definido. Acusações, como regra geral, estão relacionadas a circunstâncias que são discutíveis e passíveis de questionamento, que podem se tornar temas de uma conversa, debate ou processo jurídico. Pode-se registrar uma reclamação no tribunal por danos, conforme definido pelo sistema jurídico, mas esses danos são considerados reparáveis, pelo menos até certo ponto. Nesse caso, a reclamação é finita; as partes em disputa podem “resolver as coisas” se concordarem com as convenções sociais e com as instituições que as garantem. No entanto, isso raramente acontece e, mesmo depois que um conflito foi resolvido, seja uma disputa legal ou uma mera “diferença de opinião”, as partes envolvidas não param de reclamar, muitas vezes jamais. Reclamações cujo escopo e intensidade são difíceis de determinar legalmente, pois, além do que é apresentado abertamente, também incluem reclamações não reconhecidas, repudiadas, ocultas e inconscientes e sua longa reverberação, transcendem toda acusação finita confinada a um objeto determinado e a uma situação circunscrita. As fronteiras da reclamação — sempre um caso particular ou fracasso — só existem para serem ultrapassadas, no caso particular, a fim de reclamar sobre o fracasso de tudo e estender a reclamação infinitamente: falamos com desdém sobre a tagarelice.

Nenhum estatuto ou limite sobre reclamações pode detê-las, pois, em princípio, abrangem tudo e sempre se queixam, em relação a tudo, de que não é tudo, não está inteiro, não está completo, não existe. Por isso, não apenas se deparam com um não, mas o procuram; não apenas o descobrem, mas abrem-no e buscam aquilo que, como nada, excede toda falta particular e limitada. Assim, nem mesmo o infinito pode satisfazer a estrutura da reclamação; seria apenas a rejeição das fronteiras que, no curso dessa rejeição, sempre poderiam ser traçadas — e apagadas — novamente. Mas a reclamação não continua meramente em sua rejeição de todas as particularidades e delimitações; também rejeita sua continuação, sua continuidade, seu progressus ad infinitum precisamente porque não proporciona saturação, portanto, como reclamação absoluta, também continua a continuação da reclamação e a descontinua. Uma vez que deve ser infinita, bem como não-infinita, só pode ser esse não e somente na maneira ontologicamente incompreensível do não-ser. A reclamação não é um tema potencial da ontologia.

Trazer para a linguagem aquilo que, sem estar presente, ainda assim enfaticamente “está lá” — esse é o desejo que move a reclamação. Não tenta falar sobre o nada, como a filosofia tem feito desde Parmênides, meramente para excluí-lo da esfera do que pode ser pensado e dito; tenta trazer o nada para a linguagem, seja o nada particular da pessoa que fala ou o nada que mal se distingue disso, que deve acompanhar toda fala, desde que esteja falando do que está ausente. Não dizer nada, mas sim dizer o nada: esse é o desejo a que a reclamação visa. Se fosse bem-sucedida, então o nada se tornaria linguagem — linguagem sem significado e sem objeto ou destinatário, mas linguagem e, como tal, presente, se também não for ininterrupta. Todavia, essa linguagem também seria, simultaneamente, nada e, assim, ausente, embora não sem resquícios. O trabalho da reclamação consistiria, dessa maneira, em expor em uma sequência discreta a impossível simultaneidade da linguagem e do nada e em tentar, a cada vez de novo, trazer o absolutamente ausente à presença. Consequentemente, a reclamação seria o caminho para o início da linguagem que, mesmo antes dessa linguagem, leva de volta a um tempo sem linguagem. Ao contrário de toda impressão de anormalidade lógica e psíquica que desperta há muito, especialmente na lógica e na psicologia formais, a reclamação seria a linguagem mais sincera do início da linguagem que se pode imaginar: de seu início e acontecimento. Seu maior perigo estaria em se entregar a reclamações sobre reclamações, denunciando-se como fútil, assim julgando erroneamente sua natureza como acontecimento.

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