quarta-feira, 26 de junho de 2024

Últimas especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

Últimas especulações sobre o ato de reclamar e sua relação com a linguagem

A criação não fornece uma resposta ao lamento; em vez disso, alimenta o ímpeto para lamentar. O lamentador não estava presente com seu desejo no momento da criação. Isso se ilustra de maneira pungente na resposta de Yahweh às lamentações de Jó. A resposta de Yahweh não é uma declaração sobre o estado das coisas, mas uma pergunta: “Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra? Faze-mo saber, se tens entendimento” (Jó 38:4). Essa pergunta implica que Jó não tem entendimento e não pode responder a Yahweh; também sugere que Jó não tinha lugar na fundação da Terra e que suas lamentações não tinham fundamento antes dessa criação, assim como seu desejo de voltar a um estado anterior à criação.

Além disso, a pergunta de Yahweh sugere uma noção mais profunda: com a criação, Yahweh criou um desejo que ultrapassa toda a criação porque busca retornar a um tempo anterior à criação. O desejo de Jó de não existir e de não desejar é mais poderoso do que o ato de Deus de fundar um mundo. Esse simples ato de desejar se liberta de sua condição de criatura, voltando-se contra todos os atos de fundação e todas as fundações em direção ao infundado. Isso permite que se torne um evento que existe no mundo de sequências de eventos bem fundamentadas e causais, mas que permanece sem fundamento e sem um Deus teologicamente concebido que funda.

As lamentações de Jó e o desejo ali contido apontam para um paradoxo essencial: o desejo de retornar a um estado de inexistência, um desejo de desfazer o ato fundamental da própria criação. Esse desejo está em oposição à fundação do mundo e a todos os atos subsequentes de criação. Representa uma forma de desestruturação, um desejo que transcende o próprio ato de criação, voltando-se contra esse.

A força absoluta desse desejo, esse desejo de retornar ao nada, destaca uma tensão fundamental entre a criação e o desejo de não ser. Isso sugere que, em todo ato de criação, há um desejo inerente de desfazê-lo, um desejo que antecede e ultrapassa a própria criação. Esse desejo é mais poderoso do que o ato de criação porque busca negar não apenas o mundo, mas o próprio ato de fundação que o trouxe à existência.

Assim, o lamento de Jó e o desejo final contido ali desafiam o ato fundamental da criação, sugerindo que o desejo de não ser, o desejo de retornar a um estado anterior à criação, é uma força mais profunda e fundamental. Isso ressalta a noção de que o lamento é motivado por um desejo que excede a criação, um desejo que busca retornar a um estado de in-fundação, um estado de in-existência que antecede todos os atos de criação e fundação.

A pergunta de Yahweh a Jó faz mais do que apenas sugerir que Jó não tem motivos para sua reclamação, também significa que a lamentação de Jó funciona independentemente do ato de criação de Yahweh. A lamentação de Jó dirige-se a Yahweh antes de sua criação, apelando para um deus antes de Deus se tornar um, essencialmente voltando-se para ninguém e para nada, buscando uma resposta de nada e de ninguém. A ausência de Jó no momento da criação implica não apenas que ele é uma criatura, mas que seu desejo de não ter sido criado poupa-o das decepções inerentes à criação, tornando desnecessária qualquer resposta divina.

A pergunta retórica de Yahweh, “Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra?” (Jó 38:4), reconhece que o lamento de Jó transcende os limites da criação; admite que o desejo de Jó de nunca ter existido, embora originado na criação e dependente dessa, é simultaneamente um evento que rejeita a própria premissa da criação, não precisando de nenhum fundamento ou apoio nessa. Esse desejo é fundamentalmente uma ocorrência do nada e uma vida conduzida por esse desejo existe antes de seu próprio início, no limite máximo do tempo, do espaço e da linguagem do mundo. É uma vida livre de ônus por si mesma, sem a compulsão de existir.

Os lamentos de Jó, portanto, não são apenas gritos pessoais de angústia, mas são os lamentos do próprio mundo. Por meio deles, o mundo volta a um estado anterior à sua criação, tornando-se um acontecimento irrefutável e inolvidável que existe livre dos princípios fundamentais da criação, consequentemente, livre de si mesmo. Essa percepção nega a necessidade de lamentação. Quando Jó entende essa implicação da pergunta de Yahweh, reconhecendo a natureza de seu próprio desejo, ele não encontra mais motivos para lamentação.

Essa interpretação sugere que a lamentação e o desejo de não existir são forças poderosas que desafiam o ato da própria criação. O desejo de Jó, embora paradoxal e irrealizável, representa uma rejeição fundamental da fundação do mundo, revelando um desejo profundo de retornar a um estado de nada. Esse desejo, existente à margem da criação, mina a própria essência do ser e oferece uma perspectiva que transcende as limitações do mundo criado. Ao compreender isso, Jó transcende seu sofrimento, indo além da necessidade de se lamentar, reconhecendo as profundas implicações de seu desejo e seu lugar na ordem cósmica.

O entendimento de Jó sobre a resposta de Yahweh revela que essa não pertence à esfera do conhecimento ou da cognição. Reconhecendo isso, Jó responde: “por isso falei do que não entendia; coisas que para mim eram demasiado maravilhosas e que eu não conhecia” (Jó 42:3). Essa troca de lamentação e resposta não se trata de compartilhar conhecimento, mas sim de renúncia mútua. Yahweh absolve Jó da responsabilidade pela criação, por sua vez, Jó absolve Yahweh da responsabilidade por suas tristezas. Eles reconhecem que seu diálogo não trata de transmitir informações, mas de libertar um ao outro de seus fardos interconectados.

O lamento representa o distanciamento entre o acontecimento do mundo e o próprio mundo. A única resposta significativa para o lamento é aquela que reconhece e efetua esse distanciamento, uma resposta que se distancia de todos os fundamentos. Essa é a resposta de um criador que reflete sobre o tempo anterior à criação, dirigindo-se a um lamento que opera fora das leis da criação. O lamento e sua resposta não convergem em um mundo comum; em vez disso, existem no pensamento de que não há mundo, comunicam-se não por se alinharem um ao outro, mas por contradizerem sua linguagem e todas as linguagens. Se a conversa daqueles transcende a manutenção das convenções, volta a um estado anterior ao início da linguagem.

Essa renúncia mútua entre Jó e Yahweh simboliza um profundo distanciamento existencial e linguístico. O lamento de Jó e a resposta de Yahweh operam em um reino além da linguagem e da compreensão convencionais, movendo-se em direção a um estado pré-linguístico e in-criado. Refletem uma verdade mais profunda que está fora dos limites da criação e do conhecimento, enfatizando as limitações; por fim, a transcendência da compreensão e da expressão humanas. Esse distanciamento ressalta a natureza fundamental do lamento como uma resposta às deficiências e limitações inerentes ao mundo criado, buscando uma resposta que reconheça e participe dessa transcendência.

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