Já brilhava
a estrela há muito tempo, despontando no céu antes deste fatídico momento. Descendo
a visão se pode ver o deserto, com um trecho quase central bem pisado pelos pés
daqueles que por aqui caminham; terras vazias e esquecidas, informe solo fértil
de possibilidade. Sucede do deserto uma vasta área de vegetação mediana, com
muita grama e algumas árvores, harmoniosamente cantam os grilos do mato,
exibindo pequenas fúrias. Mais adiante se vê uma casa de madeira, arruinada,
faltam-lhe paredes e portas, as janelas, escancaradas, a porta da frente
largamente aberta; cupins roem tudo, por toda parte.
Adentrando
a casa encontramos, logo na primeira sala, um espelho quebrado na parede sem
janelas, à frente dele a visão primeira do mundo embala-se freneticamente,
nervosamente. Sobre uma cadeira de balanço, que não para desde a infância do
tempo, senta-se O Criador Primevo, aquele que modelou tudo que vimos então,
conterrâneo e contemporâneo – se é que se pode falar em tempo num momento tão
distante e eterno, quase esquecido – daqueles sem rosto. As paredes em derredor
estão entre o branco e o carmesim, pintadas de improviso nas furiosas ações do corpo
que convulsiona balançando.
Da cabeça
se vê o cabelo, ondulado, puxado para trás, chegando a atingir os ombros em
extensão, mas não tocando nesses. O olho esquerdo está à mostra, diferente de
boa parte do corpo, não está coberto pelas bandagens; ele se movimenta
frenético, buscando olhar para todas as direções que pode alternadamente. O
resto do rosto e da cabeça está tampado por bandagens dando voltas e mais
voltas sobre si mesma, a boca não se exibe apenas os lábios, mas ele é
silencioso, como aqueles que, pelo deserto, vagam.
O peito
exibe a vestimenta soterrada sob os tecidos, uma espécie de vestido branco; o abdome
é aonde se podem ver mais amarras, vê-se também uma enorme mancha escura, feita
por algum líquido, qual chega a pingar. Continuando a descida, nota-se que é,
de fato, um vestido, pois as pernas estão cobertas à maneira de vestido e,
também, é outra parte manchada pelo líquido que escurece o tecido, em tons
quase vermelhos. Os pés estão firmemente plantados no chão, empurrando a
cadeira e o corpo para frente e para trás.
Observando
os ombros não se vê nada, nem nos braços, mas os antebraços e mãos estão
trepidantes, agitados. A mão esquerda aperta tão fortemente o apoio que as
unhas cravam-se nos dedos, enterrando-se. A mão direita, todavia, segura uma
lâmina reta, curta, feita inteiramente de metal, com cabo seguro e lâmina em
si. Percebe-se, portanto, que o líquido escurecedor é sangue. O Criador Primevo
sangra profusamente, movimentando-se em agonia silenciosa. Sofre, porque quer
iluminar o mundo amorfo com sua sabedoria, mas já não vive, porque para iluminá-lo
é preciso nascer alguém capaz de fazer isso.
Com a
trêmula destra ele começa a cortar as bandagens da barriga que a canhota segura,
insegura. Um corte aqui, outro ali, rapidamente o tecido se foi e o sangue
escorre, quase jorra. Dentes agarram e puxam, mordem e mastigam a pele da
barriga, do interior dela, tornando tudo mais rápido. Vê-se, todavia, apenas as
pontas dos dentes, porque há uma sequência de órgãos que se interpõe entre eles
e a pele que mordem. A lâmina faz seu serviço rapidamente, fende os tecidos
orgânicos e os acutila vorazmente. O sangue agora sai em amontoados, tal qual
fezes moderadamente liquefeitas, o som mesmo quando atingem o chão de tábuas é
similar. Um pedaço de órgão aqui outro ali, logo se amontoam os pedaços
vermelho escuro, quase marrom, aos pés d’Ele. Tudo que ele pode expressar são
gemidos contidos, porque nem mesmo a boca se mexe com liberdade sob as
bandagens faciais. Nem ele pode agir com liberdade porque Ela o devora
internamente, rendendo-o refém de si mesmo, de suas ações.
Silêncio...
Ou quase, os grilos do mato começam a cantar as Odes de Recepção a Ela. Não
parece nada diferente com o que se escutava antes, ainda que se tenha plena
certeza de que não há nada de semelhante; é, de fato, outra música. Do corpo
imóvel, respiração cessada, começa a sair, pela abertura da barriga, A Luz do
Mundo. Ela, banhada no sangue d’Ele, caminha sobre as tábuas, seus sutis e delicados
pés deslizam sobre o fétido líquido escuro.
Ela seguiu,
então, para dar a luz ao mundo. Formá-lo, formatá-lo, dignificá-lo e interagir
com Aqueles Sem Face, conterrâneos e contemporâneos de seu progenitor.
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