Ora, o objeto, o sujeito e o ato de ver jamais se detêm no que é visível, tal como o faria um termo discernível e adequadamente nomeável (suscetível de uma "verificação" tautológica do gênero: "A Rendeira de Vermeer é uma rendeira, nada mais, nada menos" — ou do gênero: "A Rendeira não é mais que uma superfície plana coberta de cores dispostas numa certa ordem"). O ato de ver não é o ato de uma máquina de perceber o real enquanto composto de evidências tautológicas. O ato de dar a ver não é o ato de dar evidências visíveis a pares de olhos que se apoderam unilateralmente do "dom visual" para se satisfazer unilateralmente com ele. Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre uma operação sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Todo olhar traz consigo sua névoa, além das informações de que poderia num certo momento julgar-se o detentor. Essa cisão, a crença quer ignorá-la, ela que se inventa o mito de um olho perfeito (perfeito na transcendência e no "retardamento" teleológico); a tautologia a ignora também, ela que se inventa um mito equivalente de perfeição (uma perfeição inversa, imanente e imediata em seu fechamento). Donald Judd e Michael Fried sonharam ambos com um olho puro, um olho sem sujeito, sem ovas de peixe e sem sargaço (isto é, sem ritmo e sem restos): contraversões, ingênuas em sua radicalidade, da ingenuidade surrealista ao sonhar com um olho em estado selvagem.
Os pensamentos binários, os pensamentos do dilema são portanto incapazes de perceber seja o que for da economia visual como tal. Não há que escolher entre o que vemos (com sua consequência exclusiva num discurso que o fixa, a saber: a tautologia) e o que nos olha (com seu embargo exclusivo no discurso que o fixa, a saber: a crença). Há apenas que se inquietar com o entre. Há apenas que tentar dialetizar, ou seja, tentar pensar a oscilação contraditória em seu movimento de diástole e de sístole (a dilatação e a contração do coração que bate, o fluxo e o refluxo do mar que bate) a partir de seu ponto central, que é seu ponto de inquietude, de suspensão, de entremeio. É preciso tentar voltar ao ponto de inversão e de convertibilidade, ao motor dialético de todas as oposições. É o momento em que o que vemos justamente começa a ser atingido pelo que nos olha — um momento que não impõe nem o excesso de sentido (que a crença glorifica), nem a ausência cínica de sentido (que a tautologia glorifica). É o momento em que se abre o antro escavado pelo que nos olha no que vemos.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O dilema do visível, ou o jogo das evidências. In: ______. O que vemos, o que nos olha (trad. Paulo Neves). São Paulo: Editora 34, 1998, p. 76-7.
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