quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Synthesis

Os fenômenos estão aquém da alma, mas além das coisas. O lugar onde as coisas se tornam fenômenos não é a alma, tampouco a sua simples existência. Para que haja sensível (e para que, assim, haja sensação) "é necessário que exista algo intermediário" (hôst’anagkaion ti einai metaxu, De anima, 419a 20). Entre nós e os objetos há um lugar intermediário, algo em cujo seio o objeto torna-se sensível, faz-se phainomenon. É nesse espaço intermediário que as coisas se tornam sensíveis e é desse mesmo espaço que os viventes colhem o sensível com o qual, noite e dia, nutrem suas próprias almas. Também para observar a si mesmo, ouvir a si mesmo, faz-se necessário, para todo animal, constituir a própria imagem fora de si, em um espaço exterior: é no espelho que conseguimos devir sensíveis e é ao espelho (e não exatamente aos nossos corpos) que demandamos nossa imagem; é apenas depois de termos pronunciado alguma palavra que podemos ouvir aquilo que dizemos. […] No espelho, então, a imagem, o sensível, faz-se conhecer como aquilo que se opõe frontalmente aos corpos-objetos e às almas-sujeitos, algo que é simultaneamente exterior aos corpos de que são imagens e aos sujeitos aos quais permite pensar esses mesmos corpos. O espelho demonstra que a visibilidade de algo é realmente separável da coisa em si e do sujeito cognoscente. Nele, se está diante da própria visibilidade, da própria imagem, diante de si mesmo enquanto ser puramente sensível; essa imagem, no entanto, existe em um outro lugar, diferente daquele onde existem o sujeito cognoscente e o objeto do qual a imagem é visibilidade. […] Com isso, podemos concluir que a imagem (o sensível) não é senão a existência de algo fora do próprio lugar. Qualquer forma e qualquer coisa que chegue a existir fora do próprio lugar se torna imagem. Nossa forma se torna imagem quando é capaz de viver para além de nós, para além de nossa alma, para além de nosso corpo, sem que ela mesma se torne um outro corpo, já que é capaz de viver como que na superfície dos outros corpos. A imagem é como que a astúcia que as formas encontraram para escapar da dialética entre alma e corpo, matéria e espírito: como sair dos corpos e das almas sem se tornarem um outro corpo e sem entrarem ainda em uma consciência ou alma alheia transformando-se em percepções atuais de qualquer outro? É como se, para toda forma, houvesse uma vida depois do corpo, que, no entanto, ainda não é a vida do espírito, uma vez que tem lugar antes de entrar no reino dos espíritos, das almas, das consciências. A imagem nasce e vive sempre depois do fim, do término do corpo de que era forma, e antes da consciência onde é percebida. É exatamente esse o lugar e o tempo em que as formas são sensíveis.

COCCIA, Emanuele. A vida sensível. Tradução: Diego Cervelin. Desterro [Florianópolis]: Cultura & Barbárie, 2010, p. 19-22. (PARRHESIA coleção de ensaios).

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