domingo, 30 de setembro de 2018

TrechodeFJLR

O mundo pós-humano através de cujo umbral deslizamos sem trégua nem pausa nos exigirá considerar o gesto platônico inicial da metafísica para pensar que, na radicalidade da loucura socrática, existia a suspeita de que a filosofia não podia ser outra coisa senão um delírio ascético capaz de dizer a si mesmo e se infiltrar, com agônica persistência, nos resquícios da polis mundial. Mas cabe deixar claro que essa loucura só pode se dizer em primeira pessoa, já que é sujeito de si mesma, e nunca predicado de um enunciado. O efeito de verdade, não obstante, deve ser buscado com afinco pela filosofia, precisamente por ter ela uma posição ótima para isso na qualidade de saber delirante e, sendo assim, carente de qualquer metalinguagem que separe o lógos do mundo que descreve. Pretender o contrário, como fazem certas formas do realismo contemporâneo, significa converter-se no sucedâneo de uma inveterada cisão metafísica que se ilude em encontrar uma exterioridade pura, livre e sensata, em que pensar não seja acossado pelo de-lirare.

A filosofia soube encontrar o futuro de muitas ilusões. Uma delas foi, precisamente, crer que a gnosis podia suportar uma depuração terapêutica da loucura e tornar possível um mundo. O fracasso foi estrondoso. A loucura deslocada pelo cogito cartesiano encontrou sua forma mais própria tomando posse do mundo em sua totalidade. Os conceitos filosóficos captaram, algumas vezes, esse fenômeno de traslatio cognoscendi sob o nome de técnica.

Dessa forma, se a loucura não pode ser dita apropriadamente e alcança os marcos da ilimitação, deve-se admitir que o que propicia isso é o fato de nossa época se negar a constituir uma (pós-)metafísica à altura de um multiverso infinito. Nesse sentido, seria auspicioso retificar as utopias e, no lugar uma stultifera navis, lutar pelo advento de uma stultifera scientia.

ROMANDINI, Fabián Javier Ludueña. A ascensão de Atlas. Glosas sobre Aby Warburg. Trad. Felipe Augusto Vicari de Carli. Desterro: Cultura e Barbárie, 2017, p. 50-1.

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