MitoLógicas #1
Doze teses sobre a ficção atualmente
Traduzidas por Igor da Silva Livramento
Originalmente por R. M. Berry e Jeffrey R. Di Leo
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O presente da ficção é a intersecção de tudo o que a ficção tem sido e tudo aquilo em que se tornará.Formas de escrita e de leitura já estão sempre ligadas aos seus desenvolvimentos e tradições históricas, no entanto, são continuamente arrastadas para um futuro repleto de possibilidades. Poderíamos até dizer que a mudança e a temporalidade são as constantes no presente da ficção, uma caracterização que nos deixa perplexos com a própria palavra “presente”. Em comparação com o longo passado da ficção e seu futuro aberto, o presente parece relativamente breve e instável, com quase qualquer durabilidade, mas isso não diminui seu valor. Pelo contrário, o valor pode muito bem não existir em qualquer outro lugar. Isto é, se a ficção ainda tiver significado para nós, então terá necessariamente agora, no presente, todo outro significado sendo latente ou potencial. Por outras palavras, o transitório, irrealizável presente pode simplesmente nomear a condição de existência contínua da ficção, distinguindo-a de tudo o que, como o épico, tem apenas um passado ou, como a justiça, apenas um futuro. Como o espaço elusivo onde o passado encontra os nossos sonhos e desejos, o presente da ficção estende a promessa de mudança a todos os que a sofreriam.
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As exigências atuais impostas à ficção diferem de quaisquer outras que esta já tenha experimentado anteriormente. Junto a sua rica história de problemas e inovações, a ficção no presente deve enfrentar a suspeita de que formas como o romance e o conto, assim como os conceitos emoldurantes de literatura e arte, esgotaram-se. Muitos julgam que as recentes ameaças militares, econômicas e ambientais exigem formas mais diretas de intervenção verbal, por exemplo, ensaios, polêmicas, autobiografias, relatos jornalísticos, críticas e tratados. A guerra no Iraque, o 11 de setembro de 2001, os ataques, a ascensão da globalização, o (re)surgimento do (neo)conservadorismo e os conflitos religiosos onipresentes têm o potencial para energizar ou estimular a prática literária, transformando o presente da ficção de um momento natural do passado e do futuro em uma questão: para ser presente, o que a ficção deve fazer agora? O romance deve envolver as questões políticas e econômicas prementes da atualidade, esperando dessa forma assegurar sua relevância, ou o esforço da ficção para espelhar a história contemporânea não se fará presente, dissipando o que tornou a ficção singular? Ou seja, o presente é algo que a ficção precisa alcançar, ou é um fato inescapável, uma condição que a ficção pode, ao se tornar ela mesma, apenas reconhecer? Assim como os historiadores literários atribuíram as inovações do modernismo do início do século XX aos horrores da Primeira Guerra Mundial e aos avanços científicos da teoria da relatividade, o presente da ficção pode parecer, em retrospectiva, ter sido produzido a torto e a direito por forças e eventos do século XXI. Mas também é possível que a diferença da ficção em relação às outras formas, supostamente mais diretas, possa persistir através dessas mudanças. De fato, pode-se até mesmo perguntar se a segunda tese descreve realmente uma situação historicamente única, ou se apenas explicita o que o adjetivo “presente” significa. Isto é, na medida em que as exigências sobre ficção são presentes, e não passadas, estas permanecem irredutíveis ao que veio antes. A tese ainda expressa uma situação difícil, mas que tem menos a ver com a situação contemporânea da ficção do que com nossa dificuldade em representá-la. Se a atualidade não é um objeto, mas um limite, então o problema da ficção é a própria atualidade.
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As pressões econômicas complicam seriamente a tarefa, tanto crítica quanto prática, de reconhecimento do presente da ficção. Muitas editoras estão saindo do mercado, reduzindo drasticamente a publicação de nova ficção ou sendo absorvidas por um número cada vez menor de conglomerados editoriais. Dentro das editoras sobreviventes, a mudança não é tanto de decisões de qualidade para decisões voltadas para o mercado, mas de uma cultura empresarial em que essa distinção fazia sentido para uma cultura empresarial na qual se tornou ininteligível. A “tomada de decisões econômicas” agora parece redundante, e o marketing de nicho, a solução outrora imaginada para a consolidação do mercado, provou-se ineficaz para a categoria de marketing “ficção literária” [literary fiction]. Ao contrário dos compradores de automóveis e de roupas, os consumidores de romances esteticamente ambiciosos geralmente não presumem saber, antes de ler, como identificar a mercadoria que procuram, esperando que a literariedade seja definida, pelo menos em parte, no nível de produção. Como resultado, esse segmento de mercado tem se mostrado difícil de ser visado. E embora inovações tecnológicas como e-books, e-zines e impressão sob demanda tenham reduzido os custos de produção e aumentado o acesso dos consumidores à “ficção literária”, essas inovações serviram mais para criar as condições materiais de um presente mais rico e diversificado do que para realmente estabelecê-lo. Na verdade, podem ter contribuído para a consolidação. Estima-se que mais de 150000 novos títulos foram publicados em 2003, o que exigiria a leitura de 411 livros por dia, 365 dias por ano, para poder apreciá-los todos. Se a crença convencional incontestada fosse aceita de que 95% desses livros são “sem valor”, então o abate dos 5% “dignos” exigiria um exército de críticos e reproduziria os problemas anteriores de homogeneização, provincialismo e arbitrariedade. E ainda seria preciso ler 20 novos livros por dia só para experimentar os “dignos”! Isso significa que os leitores estão cada vez mais dependentes de seleções feitas por cadeias de livrarias e publicações de resenhas de grande circulação, transferindo as restrições econômicas da presença da ficção do nível de produção para o nível de distribuição e promoção. O crítico que se propõe a representar o presente da ficção com base nos livros da Borders ou do New York Times Book Review pressupõe uma atividade construtiva prévia tão vasta, organizada sistematicamente, e consequente que, se não torna trivial a posterior construção do crítico, torna-a hegemônica.
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Se a ficção deve ter um presente, escritores e críticos devem exercer liderança. Embora existam bons espaços para discutir e ler sobre o presente da ficção, precisamos gerar [outros] maiores e melhores. Tais espaços não só podem introduzir os leitores a trabalhos que se mostraram heterodoxos demais para ampla distribuição e resenhas mainstream, como também podem fornecer uma perspectiva crítica sobre o presente da ficção, hospedando discussões sobre os problemas políticos, estéticos e filosóficos aos quais a ficção contemporânea responde. Essa escrita sobre o presente deve servir a fins intelectuais mais expansivos e concretos do que aqueles definidos pela profissão da crítica literária ou pelo estudo acadêmico da cultura contemporânea. Seu objetivo deve ser o de organizar leitores e escritores em torno dos produtores, e não apenas dos destinatários, do presente da ficção. Ou seja, deve abordar uma comunidade que atravessa as divisões institucionais entre editores, escritores, estudiosos, leitores de fruição, diretores de marketing, professores, revisores, resenhistas, teóricos e varejistas. O obstáculo para atingir esse tipo de objetivo expansivo é apenas secundariamente a terminologia crítica alienante. É mais fundamentalmente o de um discurso crítico que se constitui por sua externalidade. Ou seja, tanto a humildade intelectual que não quer prescrever, quanto a arrogância intelectual que fala, mas nunca para compartilhar uma visão da relação da crítica com o presente da ficção, como um discurso sobre outro discurso. Aceitar a tarefa coletiva, não de criticar um presente já formado ou de impor um presente aos desinformados, mas de produzir o presente da ficção, é, para a crítica, aceitar a posição do participante. Essa é a perspectiva crítica de dentro, o ponto de vista de quem foi abordado pela ficção e para quem a atividade produtiva é sua resposta. Essa é a forma que a liderança cultural deve assumir no momento.
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A crítica profissional hoje em dia está muito mais confortável ao examinar o passado e o futuro da ficção do que seu presente. As considerações sobre o passado da ficção são possibilitadas por uma visão a posteriori. Mesmo sem intervenção crítica, a própria história amplia as fissuras nas opiniões sedimentadas, proporcionando à consciência presente uma visão desmistificadora. E o passado tem uma definitude que, mesmo quando atacada, é reconfortante. Se alguém deseja atacar o cânone da ficção inglesa do século XIX, pode se sentir ultrapassado e superado, mas não é preciso se perguntar se existe um cânone. Talvez mais significativamente, um crítico contemporâneo pode considerar o passado da ficção como traço, artefato material ou criação institucional de uma consciência alienígena, não sua própria, e discutir o futuro da ficção, porque, inerentemente especulativo, oferece prazeres igualmente livres de culpa. Não é preciso “acerto”. Mas aceitar a própria parte na produção do presente da ficção é aceitar um grau de cumplicidade e responsabilidade que deixa o crítico perigosamente exposto. Raramente há um discurso anterior em contraste com o qual a própria consciência, supostamente mais avançada, pode parecer desmistificadora, e há pouca estabilidade ou definição para o próprio objeto. Falar do presente normalmente não é falar de um fato predeterminado, de uma circunstância determinada, ou de uma instituição estabelecida, e, no entanto, a deturpação desse objeto instável pode estar repleta de consequências profissionais, morais e legais. E, na mais cruel ironia de todas, nada contará para o crítico como confirmação, nem mesmo algum consenso universal. Sobre o presente da ficção, o crítico profissional fala de forma tão contingente quanto qualquer outro leitor. Sua autoridade é a posteriori, apenas uma função de sua inspiração. Não existe proteção institucional. O estudo do presente da ficção deixa a crítica [exposta] a nu.
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Todas as considerações sobre o presente da ficção são limitadas em escopo e valor. Dado o enorme número de escritores de ficção, por exemplo, apenas nos EUA, um panorama de resumo de cada representante do presente é impossível. Não se pode falar do presente da ficção como uma totalidade, ou, pelo menos, não se por “totalidade” se entende a inclusão de todos. Pelo contrário, falar do presente da ficção é necessariamente localizar a própria presença, portanto, projetar um limite. Ou seja, o projeto de determinar o presente da ficção não é o das ciências sociais. O que se pretende é uma descrição das características predominantes, nem mesmo uma descrição baseada em uma amostragem verdadeiramente representativa. O que se busca é um relato do que tornou a ficção presente para aqueles que encontrou, o que estabelece seu significado para mim agora — quem quer que eu esteja determinado a ser — e de que forma manifestou sua presença. Em outras palavras, o relato do presente da ficção não deve ser compreendido no modelo de pesquisa empírica ou descrição antropológica, mas sim no modelo da confissão pessoal. Deve necessariamente evidenciar seu sujeito. Isso permanece verdadeiro mesmo quando o relato do presente da ficção é proferido e aceito, não como sendo apenas do crítico, mas como do grupo a que pertence. É inevitavelmente um discurso de dentro, com todos os problemas e responsabilidades, cegueiras e complacências, de um discurso de valores. A totalidade exigida por tal relato é total franqueza, manifestação total. O que uma pessoa de fora quer saber é isto: que tipo de realização separou o presente do passado, estabeleceu limites de ação e projetou seus fins, localizou alguém aqui e agora? Sempre haverá uma circularidade nos testemunhos do presente da ficção, no que diz respeito ao que conta como exemplo presente e como presente exemplificado, mas o perigo não é que, enclausurando as pessoas a partir de dentro, esse círculo impeça que elas vejam tudo. O perigo é que, com o objetivo de ver mais, o resto de nós possa não enxergar o que vemos.
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Versões totalizantes do presente da ficção devem ser encaradas com desconfiança. Todos os esforços para derivar características generalizáveis da ficção a partir de um levantamento dos romances e histórias mais amplamente difundidos ou sacrificarão a diferença pela identidade ou apagarão a particularidade através da abstração. Embora tal generalidade no discurso crítico seja compreensível e possa ser necessária para a comunicação, essa busca por universalidades críticas se sustenta em um iluminismo e uma visão política romântica, e não em uma concepção da diferença e da diversidade global. Agora, à medida que a comunicação e o comércio mundial aproximam os seres humanos numa interdependência, não é o momento de se refugiar no provincialismo estético. O presente da ficção excede necessariamente nossa própria consideração. Entretanto, pode não ser universalmente óbvio que a ameaça à diversidade estética hoje vem de teorias explicitamente universalizantes. Isto é, mesmo se nos maravilhamos com a variedade de ficções distintas de grupos culturalmente díspares, também podemos ser atingidos por continuidades evidentes. De fato, diferença e identidade podem parecer, às vezes, ter sido travestidas. O que parece inequivocamente novo e importante nos textos globalmente diversos é sua representação de sociedades e culturas anteriormente desconsideradas pelo Ocidente. As histórias se passam, parcial ou totalmente, em localizações geográficas distantes dos EUA e da Europa. Os pontos de vista são os de personagens anteriormente marginalizados ou ofuscados pelos romances ocidentais. E os enredos se voltam para normas morais, conflitos políticos, condições climáticas e conhecimentos locais que, para aqueles cujos paradigmas de romance são Middlemarch, Madame Bovary e O grande Gatsby, parecem exóticos e esclarecedores. Embora tais obras também incorporem saídas formais relacionadas ao modernismo europeu ou a vernáculos e tradições não europeias, a estética predominante da ficção global hoje — na medida em que é representada pelas obras mais amplamente disponíveis nos Estados Unidos — é realista. Seu grande feito é a representação do mundo particular de um autor. Ao considerar o valor de tal obra, a crítica deve, com toda a franqueza, trazer à tona seu próprio interesse na representação narrativa, e não assimilar tacitamente a representação à ficção como tal. Ou seja, combinar um programa explicitamente antiuniversalista e diversificador com uma marginalização implícita da inovação formal e uma crítica realista é decretar o desejo oculto da crítica pela totalidade. O que essa totalização reprime é o ponto de vista de dentro, a convicção específica de que as diferenças nas formas de prática podem ser tão significativas para o produtor quanto as diferenças entre justiça e opressão, liberdade e prisão. O presente da ficção não tem exterior.
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Todos as histórias do presente da ficção são locais e devem sê-lo. Os limites de nossa capacidade de prestar contas do presente exigem que a crítica produtiva reconheça sua própria localização. Isso não significa limitar seu valor a seu próprio grupo, uma vez que uma crítica se distingue do preconceito apenas pela responsabilidade universal, sua abertura ao questionamento pelos outros. Também não pode significar limitar o valor das ficções que se estuda, uma vez que o valor limitado de uma ficção a marca como passado, não mais [algo] do presente. Se a crítica ao presente da ficção consiste em localizar seu objeto — seja literalmente, restringindo-o a uma região geográfica específica, ou metaforicamente, estreitando o foco do crítico à raça, gênero, classe, deficiência, trauma ou algum outro tópico — então a crítica deve mostrar como essa localização produz o valor presente da ficção, não apenas para os [grupos] locais, mas também para o grupo do crítico. Em outras palavras, aceitar que o presente da ficção excede toda concepção atual é conceber o presente como múltiplo, composto de muitas versões concorrentes, mas admitir a ausência de qualquer valor externo, de qualquer avaliação externa, faz com que o acesso da crítica a essas versões seja problemático. O presente não é delimitado como um objeto. Conhecer o presente da ficção é habitá-lo, e, embora a crítica possa, se suficientemente respeitosa e aberta e estudiosa, aprender a habitar mais de um único presente, tentar estar presente em dois lugares ao mesmo tempo comporta o risco de duplicidade, fazendo passar mero turismo por cidadania. Há razões urgentes hoje para valorizar ficções que representam locais ou tópicos sub-representados na Europa e nos Estados Unidos, e utilizar romances para documentar a história contemporânea pode ser uma forma de a crítica produzir seu próprio presente, mas usar a ficção para fins não próprios é apropriação, e quando a apropriação crítica é do local de outro, ela se torna conquistadora. Localizar o presente da ficção é descobrir a própria localização nos outros. Tudo o que limita meu acesso são os limites presentes da ficção para mim.
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Todos os relatos do presente da ficção são globais e devem sê-lo. Embora cada local projete um limite, a fronteira entre o local e o global não está, como uma cadeia de montanhas, ocorrendo naturalmente. Somente dentro do horizonte da mudança global as localidades adquirem seu significado irredutível e, principalmente como uma perturbação local, o global faz sentir sua presença. Entretanto, não está claro se esses fatos descrevem um novo fenômeno histórico (ou seja, a erosão das divisões geográficas através de tecnologias de comunicação inovadoras e das divisões políticas através da expansão do mercado) ou simplesmente explicitam o que as palavras “local” e “global” significam agora. De qualquer forma, sugerem que as interpretações políticas do presente da ficção estarão marcadas por uma tensão que é difícil de identificar. Por um lado, o que a crítica ao presente da ficção descobre em todos os lugares é nada menos que o mundo, a história global em sua manifestação concreta. A crítica ganha acesso a esses presentes ao superar seus próprios limites, a caducidade ou irrelevância da consciência global do crítico. Por outro lado, a representação que a crítica faz do mundo além de sua própria província, da história global manifestada nas versões distintas da ficção, é apenas mais um relato local. Que o discurso do crítico busque abrangência global apenas define sua ambição enquanto presente, como a busca pelo conhecimento presente, não datado. Um relato sinóptico da produção de ficção em vários locais, todos agregados para produzir um quadro abrangente da história e das mudanças globais, pode fornecer uma visão valiosa das forças transculturais e ajudar a articular os obstáculos materiais à realização presente, mas não pode representar as condições que controlam a consciência presente, seja para o escritor ou para o crítico. As limitações do presente não são presentemente sabidas. Se a crítica conhece as condições da ficção, então ela deve conhecê-las na própria localização do crítico, e isso faz do encontro com o global um deslocamento contínuo, não apenas do presente da ficção, mas da própria crítica. Ou a crítica localiza sua consciência global dentro do valor presente da ficção ou descobre o global e sua própria ausência juntos.
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A ficção e suas críticas enfrentam, atualmente, uma divisão histórica. Se, como alguns suspeitam, as formas do romance e do conto se esgotaram, então é improvável que seu desaparecimento signifique qualquer declínio na disponibilidade de romances e contos — ou, mais precisamente, de livros indistinguíveis daqueles anteriormente chamados romances e contos. Pelo contrário, a paixão pela ficção parece também significar um aumento da produção, um aumento no número de mercadorias que se enquadram na categoria de mercado “literatura, ficção” coincidindo com uma diminuição do número de leitores. O presente da ficção, como sua ausência, não é um fato sociologicamente documentável. O que sugere que uma forma de reconhecer a divisão na história da ficção é através de mudanças nos tipos de sucesso, ou nos seus marcadores, que estabelecerão o presente da ficção. Um presente para a ficção não é mais garantido, talvez nem mesmo evidenciado, pelo interesse generalizado em romances e contos, e o sucesso e o fracasso comercial parecem ser igualmente ambíguos. Pode até ser que as recentes justificativas éticas e políticas para a narrativa não sejam, elas mesmas, sinais da vitalidade renovada da ficção, mas respostas à sua obsolescência, como se constituíssem um esforço compensatório para tornar a ficção presente. Tudo o que agora estabelecerá o presente da ficção é a revelação inquietante da ficção — para indivíduos e grupos — do que a ficção sempre foi e em toda parte. Ou seja, a realização de um presente será marcada pela minha ou nossa incapacidade de ver além deste, de localizar o trabalho que lança o valor desse presente no passado, juntamente com a minha ou nossa capacidade, com base nessa revelação, de projetar um passado inclusivo de outro trabalho valioso. E quem é meu grupo, quem eu sou, não será conhecido antes da revelação da ficção. O que significa não apenas que pode haver muitos reivindicadores plausíveis do presente da ficção, mas também que esses diversos presentes não coexistirão pacificamente, ameaçando dividir tanto eu quanto meu grupo contra nós mesmos. O acesso a qualquer presente pode comprometer o acesso a outros, pode torná-los passados ou obsoletos, e a descoberta de valor do meu grupo além do presente, ou seja, além do que é ficção para nós agora, terá o poder de nos tornar obsoletos, de nos desmascarar como “nós”. São justamente esses desafios radicais que correspondem ao sucesso literário hoje. A ficção torna-se presente ao estabelecer uma origem não no passado, mas no que está acontecendo agora.
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O presente da ficção deve ser localizado além do modernismo e do pós-modernismo, não antes destes. No século XXI, o presente da ficção não será estabelecido pela repetição das inovações formais do modernismo e do pós-modernismo, independentemente das condições históricas que lhes deram significado. Naturalmente, permanece controverso quais foram essas condições. Se há algo menos convincente do que a afirmação do pós-modernismo de ter superado o modernismo, é a afirmação, repetida continuamente por várias figuras e movimentos nas últimas três décadas, de terem superado o pós-modernismo. Descobrir o significado da pós-modernidade é redescobrir o significado do modernismo, descobertas que tornam possível o reconhecimento dos limites do modernismo e do pós-modernismo, e somente depois disso é que as condições históricas necessárias para seu significado podem ser conhecidas. Entretanto, parece indubitável que certos gestos literários outrora polêmicos, associados ao modernismo e ao pós-modernismo, têm pouco impacto sobre os leitores de hoje, pelo menos em suas encarnações mais familiares, e as consequências atuais dessa mudança demandam investigação. Nossa atual falta de resposta à inovação formal, pelo menos como um fim em si mesma, significa que o presente da ficção pode agora ser estabelecido pela representação direta de eventos e forças contemporâneas, talvez em suas manifestações globais e locais? Embora o valor de muita ficção passada pareça reconhecível em alguns desses termos, outras formas de prática literária e artística — ensaios, autobiografias, comentários e tratados, para não mencionar o documentário e o vídeo-jornalismo — têm pelo menos uma reivindicação, tão forte quanto os romances, de representar nosso mundo contemporâneo. Nosso interesse atual em vozes anteriormente marginalizadas, cada uma com sua inflexão e perspectiva únicas, é um interesse no romance em si, ou é no fundo uma virada rumo à autobiografia? Existe hoje alguma tarefa historicamente sem precedentes que se encaixe especificamente na ficção? Tais perguntas não podem ser respondidas além da investigação contínua, por escritores e críticos, sobre a forma da ficção. Ou seja, conhecer as condições históricas necessárias ao significado atual da ficção é descobrir, em nosso presente contestado global e localmente, o que significa ser uma obra de ficção. Essa tarefa recai sobre os de dentro. Para ser presente, para produzir seu valor aqui e agora, a ficção deve conhecer a si mesma.
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O presente da ficção é o reconhecimento do passado da ficção. Somente com o estabelecimento do presente da ficção pode ser reconhecido o valor político, moral e filosófico da inovação estética do século XX. Em outras palavras, produzir o presente requer radicalizar o passado, localizando as raízes de nossa liberdade. É assim que uma revolução se consolida. Se a ficção não quer se afastar de sua história de problemas e conquistas, então deve se aprofundar, e não apenas repetir, a exploração modernista e pós-modernista das condições de existência da literatura, e, dentro do contexto da mudança global e do conflito, esse aprofundamento significa expor as consequências dessas condições para indivíduos e grupos situados em vários lugares do mundo. A investigação do século XX sobre a linguagem — uma investigação que abrange textualidade, escrita, voz, interpretação, autoridade, temporalidade, subjetividade e representação — não requer as formas de prática e realização ficcional celebradas nos anos 20 e 30 ou 60 e 70, mas não pode coexistir significativamente com uma aceitação acrítica da ficção literária dominante nos dias de hoje. O presente e o dominante parecem ser sinônimos apenas para os dominantes. Se nossa valorização atual de diversas vozes e perspectivas pretende produzir um presente, então deve mostrar-se tal qual o significado atual do retrato de voz feito pelo pós-modernismo e do retrato do ponto de vista feito pelo modernismo. Dessa forma, nossa liberdade em relação às suas histórias é alcançada. Embora antes de habitar um presente ninguém saiba o que o produzirá, o testemunho da psicanálise é que reprimir o passado leva apenas à compulsão. Para que o século XXI liberte um novo episódio da história da ficção, escritores e críticos precisarão localizar pontos de contato entre as condições formais de leitura e escrita e as exigências de um mundo multicultural, globalmente organizado, tecnologicamente complexo e economicamente limitado. Exigir que a ficção se acomode a essa história sem reconhecer a especificidade histórica da própria ficção equivale a extingui-la. O presente não pode ser a negação do passado. É a ausência de qualquer necessidade para a negação. De tal abertura, nasce o futuro.
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