Num vídeo de Christian Dunker sobre o ciúme, o psicanalista brasileiro insiste na estrutura projetiva do ciúme a partir de Freud. Para exemplificar, ele cita a peça Otelo, de William Shakespeare, como exemplo de um ciúme impensado por Freud, além de mencionar o romance Dom casmurro, de Machado de Assis, como um exemplo de "ciúme delirante".
O problema se mostra melhor com a menção à segunda obra literária: o famoso romance, como se deve saber, constitui-se de um livro em outro livro, isto é, logo no início estamos lendo o livro de memórias que Bento Santiago vinha escrevendo há dias. Assim, trata-se de uma obra sobre a perspectiva do livro, sobre o modo livresco de ser e habitar, sobre como livrar a linguagem (formando um verbo a partir de "livro").
Se lemos Dom casmurro duma perspectiva psicológica — mais propriamente: psicologizante — como quer o divulgador da psicanálise em seu vídeo, enfrentamos um problema eminente: a verdade de um discurso jamais se encontra nesse mesmo discurso, sempre está em outro ou fora d(e tod)o discurso. Torna-se, portanto, rigorosamente impossível asseverar o estatuto de "ciúme delirante" do romance novecentista.
Em verdade, o discurso é tão estrutura linguística quando o é o signo, portando obedece à mesma lógica do signo; portanto, como o signo, vale por aquilo que não é, sua verdade está sempre ausente.
Tornemos ao ciúme.
O machismo louvou e enobreceu o ciúme, valendo-se do ciúme como meio para exercitar violências terríveis. Isso não é verdadeiro nem válido. Contudo, a análise do ciúme por Freud também não deu conta de abordar o sentimento em sua positividade, reduzindo-o a outros mecanismos psíquicos cujos funcionamentos supostamente dariam conta de explicar o funcionamento do ciúme — todavia, eram fachadas moralizantes por inversão, pelo negativo, diminuindo e quase demonizando o ciúme, também não dando conta de explicá-lo em sua verdade.
A projeção serve como defesa da supremacia do contratualismo (em psicanálise): tudo deve ser explicitado e acordado, do contrário, são projeções, imaginações invalidadas precisamente por serem imaginárias, por se assumirem irreais face à realidade e não cederem ao seu império (irreal). Ao fim e ao cabo, utiliza-se a projeção para demonizar a expectativa (a comunicação verdadeira).
Se o ciúme fosse, de fato, um problema de projeções, seria um problema de sobrecarga do contrato, um caso em que os termos do contrato excedem seus valores óbvios assumidos convencionalmente e pesam demais, seus sentidos tornam-se impossíveis de conter, proliferando-se sempre mais, inchando e pesando. A condenação pela projeção afirma apenas a comunicação leve e ágil, fácil e rápida, lisa e plana, transparente e explícita como válida e benéfica. Seria um problema de sobrecarga da e na comunicação.
O erro é crer que existiria comunicação sem essa sobrecarga. Ao contrário, a sobrecarga é o possibilitador d(e tod)a comunicação: se há comunicação, é porque essa sempre pode ser excedida e inchada, proliferada e engordada até a explosão. O sem sentido possibilita (tod)o sentido.
O ciúme, portanto, tornemos a repetir, não é um problema pessoal e individual, ainda que se manifeste nessa dimensão, senão cósmico e linguístico, ou seja, estrutural.
Percebe-se, assim, que o ciúme habita-nos como um problema de comunicabilidade: aquilo que mais essencialmente deveria comunicar — a única comunicação verdadeira: o implícito — exige-se tolhido e diminuto. Em outras palavras: impõe-se-nos uma exigência de podar a única comunicação verdadeira — a expectativa —, aquela capaz de construir realidade, em prol de um contratualismo vazio e pornográfico, isto é, da explicitude completa e infinita, ou seja, somos estimulados a nos deixar tomar pelo fim do segredo. Somos convidados a morrer nus.
O contratualismo que se impõe como verdade autoevidente no lugar da verdadeira verdade (ausente) do implícito já não põe realidade nem cria verdade, senão esteriliza todo sonhar. O fim do sonho é, precisamente, o sonho da realidade impor-se como realidade, como não sonhada. Tudo isso é falso.
Se o ciúme habita a comunicabilidade, habita, portanto, a cognição, o conhecimento. A cognoscibilidade é o meio que conhecedor e conhecido habitam para se tornarem, precisamente, conhecedor e conhecido, para se doarem um ao outro como conhecedor e conhecido, pois o conhecimento, a cognição, é uma questão de doação. Todavia, nunca se pode doar tudo, pois (o) tudo se pode apenas entregar, jamais doar, doar é sempre parcial e é a parte que importa (a cognição). Por isso o ciúme sempre acerta, sempre denuncia algo verdadeiro, não importa quão errado esteja: a parte que importa não está sendo doada e a ausência não opera como verdade (atrasada), tornando-se insustentável, arruinando a linguisticidade da linguagem, destruindo a comunicabilidade. Portanto, o ciúme jamais erra — enquanto verdade da verdade —, isto é, jamais falha, ainda que erre (minta, manipule, fira, agrida, etc.). Ou: o ciúme é indefensável porque não precisa de defesa, pois não pode ser atacado. Sua manifestação individual pouco tem a ver com seu acerto (sua verdade, verdade da verdade).
O ciúme atesta — mais que individualmente — o fim da realidade do sonho e o início do sonho da realidade.
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