É impossível compreender a lógica — alógica, ilógica — dos sonhos sem tomá-los por aquilo que realmente são: acontecimentos objetivos, isto é, impessoais e verdadeiros. Sonhos pertencem à mesma categoria de acontecimentos a que profecias pertencem, portanto, sonhos também pertencem à esfera da comunicação — mais, da linguagem.
Contudo, a comunicação respectiva ao sonho, tal qual aquela da profecia, do oráculo, etc., torna-se indizível quando acontece, pois vem do futuro para o presente, nisso perdendo parte de sua linguagem consolidada, esburacando-se, falhando, pois ainda não há referência ao que comunica, pois, precisamente, haverá no futuro. Sua comunicabilidade está desde sempre comprometida devido a sua própria natureza. Também por isso o sonho só pode ser interpretado após ocorrido e após ocorrido aquilo cuja existência anuncia, ou prenuncia, o que o sonho convoca.
Por compor uma linguagem, o sonho não pode ser tomado como mobilização — perturbação, rearranjo, autoafetação — de uma interioridade imaterial inacessível — não importa qual é seu nome: subjetividade, (in)consciência, psique, alma, etc.
A fim de não se perecer sob um positivismo ingênuo em que o inconsciente se tornaria o fundamento último de tudo quanto concerne ao sonho, toma-se em conta seu estatuto de linguagem: o sonho é (como toda linguagem) o meio — o medium, a mídia — em que as coisas se dão — em que ocorrem e em que se doam, concedem-se (como conhecíveis).1
Tal qual a linguística primeiro esboçou e a prática de conlanging demonstrou, uma linguagem independe de sua ocorrência empírica para ser. O sonho, também linguagem, é assim também. Contudo, isso não é impedimento para se tornar pessoal, pelo contrário, por ser impessoal (como qualquer linguagem) pode ser pessoalizado, pois a diferença diferenciada brota desde a própria diferenciação. Também o sonho não possui autoria (nem sequer coletiva), pois, como toda linguagem, é aquilo que permite a autoria — a inscrição do nome (de alguém) como nome (em obra, nos dois sentidos, em alguma obra e em operação).
O sonho não se corrompe ao ser narrado em linguagem verbal, em linguagem visual, ou qualquer que seja. A tradutibilidade é da própria essência da linguagem, é aquilo que leva de uma linguagem a outra, que as põe em contato, é também em que consiste a vida das linguagens umas nas outras: como chamado de umas pelas outras, um implorar lançado de uma a outra para se deixar ser lá, na outra, dando-se à outra a fim de se viver nela. Sendo essa mistura (de dar-se com chamar) a própria essência (a tradutibilidade) das linguagens, a linguagem das linguagens, que habita entre as linguagens, não menos linguagem que qualquer outra por isso, não é excepcional passar o sonho para o verbo, pelo contrário, é comum e mesmo necessário para fazer viver o sonho, pois clama por ser narrado.
O sonho, se não pertence à linguagem verbal — daí precisar de tradução a essa —, pertence à linguagem em geral e pertence a si enquanto linguagem (mesmo que a linguagem seja insubordinada à pertença). Ainda que habitasse o limiar entre passado e desejo — não é certo que habite —, seria um lançamento do passado ao futuro e do futuro ao passado, afirmando (confirmando) novamente sua objetividade. Devido a sua estrutura de amálgama de imagens (sensíveis), o sonho não apenas é poético — faz habitar o mundo com(o) distância —, como encarna a responsabilidade de conduzir (Hipnos aproximando-nos dos mortos, o estado do sono aparentado à morte) e de dizer (a outros). Dissemina (sentido) por sua estrutura livre de estruturação, a qual exibe a própria estruturação precisamente devido a sua ausência.2 Não apenas o sonho premonitório, profético, oracular, revela a objetividade do sonho, como também o demonstram a existência de artes oníricas — sejam surreais ou de atmosfera de sonho. Por isso, Calderón de la Barca estava certo: a vida é sonho (e o sonho também é sonho3).
O sonho põe em cena o (des)conhecimento fundamental — agradeço esta ideia a Petter Hübner: dado que a única certeza da e na vida é a morte e dado que não se vive a morte, pois se está morrendo quando essa ocorre, portanto impossibilitado de conhecê-la (inteiramente), a única certeza é a incerteza. Como sabiam os antigos, Hipnos, o Sono, afasta-nos dos vivos, aparentando-nos aos mortos. Nesse interregno, os Ὄνειροι [Óneiroi] tecem os sonhos, cuja forma (μορφή [morphḗ]) é regida por Μορφεύς [Morpheús] — a própria forma da forma, a formação que permite a toda forma ser. É na arte — ποίησις [poíēsis] — de Μορφεύς [Morpheús], Φοβητωρ [Phobētōr], Φάντασος [Phántasos] e Ἴκελος [Íkelos] que as atividades divinas se revelam como basculação de (des)velamento, assim, revela-se uma consciência que pode escolher se deixar confundir pela sobreposição de suas ilusões ou se esclarecer pela Alegria divina, a qual, na pluralidade de suas formas, revela sua luminosa transparência. Portanto, o sonho precisa ser sonhado — mesmo o sonho sonhado precisa ser sonhado, precisa estar-em-sonho.
Para não cair no positivismo ingênuo, mesmo infantil, o inconsciente precisa ter seu próprio inconsciente, o inconsciente precisa dormir e, nesse dormir, também deve sonhar. Sem isso, será reduzido à falsa promessa de um fundamento que desaparecerá sempre que se tentar buscá-lo, pois, precisamente, a única certeza é a incerteza e o fundamento não é a falta, mas apenas falta no lugar em que se espera encontrá-lo. A morte é aquilo que jamais se diz, pois estar vivo é comunicar a si, dar-se (adiante), projetar-se ao outro, chamá-lo, referi-lo, mencioná-lo, convocá-lo. Assim, nem mesmo se pode falar em línguas mortas, pode-se apenas falar daquilo que está morto nas línguas, pois parou de chamar, de marcar, de fazer efeito. Porém, sendo as línguas o meio em que se marca e se é marcado, em que se afeta e se é afetado, nada nas línguas morreu, apenas se sedimentou em camadas geológicas mais subterrâneas, mais compactadas. O sonho — as línguas, as mídias, as linguagens, a linguagem das linguagens, a basculação divina do ser — é a própria necromancia: aquilo que separa e, no mesmo gesto, une mortos e vivos, aquilo que os vivos herdam dos mortos, que os mortos lançam aos vivos, em que os vivos herdam os mortos, em que o próprio tempo se realiza enquanto temporalidade (sua essência). O correto entendimento da natureza do sonho corrige o adaptativismo: o sujeito trará para o mundo (atual) outros mundos (dos sonhos, dos mortos), o que fará medir o mundo (atual) e fará diferença (de si). Mudará o(s) mundo(s) por conhecê-lo(s) intimamente.↩
Daí sua vitalidade para engendrar poéticas (práticas artísticas): expõe profunda liberdade frente à narratividade, demonstrando como o sentido emerge apesar da — devido à — incoerência e incoesão.↩
A ilusão de firmeza de sentido, do sentido enquanto certeza, engendrada pelo movimento constante (da(s) linguagem(s)).↩
Nenhum comentário:
Postar um comentário