quinta-feira, 7 de março de 2024

Questões de arte, pornografia, filmes e comércio

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A verdadeira arte é antipornográfica porque se recusa a desassociar-se de si mesma a fim de ser vendida em partes. Certamente, a ênfase é uma das estratégias da produção de arte, ferramenta com a qual o artista consegue produzir efeitos estéticos no espectador. Entretanto, a fragmentação do corpo feminino em algumas poucas partes repetidas e fetichizadas não funciona da mesma maneira que a distorção enfática do artista. Então, qual a diferença?

Nesse sentido, a arte (produzida do modernismo em diante) possui algo de ritual, como uma religião desprovida de crença. Mesmo o ritual de desmembramento, com toda sua violência, permanece distinto da separação em partes para otimização da linha de produção. Essa diferença consiste, além do contexto e do dinheiro investido, no esforço artístico, na eficácia simbólica ou semiótica, também na insubordinação. A maior insubordinação permanece sendo a resistência a entrar no jogo de compra e venda.

Quando se diz que uma obra de arte é inestimável ou atemporal, se diz, em verdade, que essa obra expõe, de alguma maneira, as condições de subordinação a que estamos submetidos. Por isso a verdadeira arte é antipornográfica: expõe as suas condições e nos lembra da realidade que nos compõe. A pornografia, por ser o mais óbvio, repetir o mais evidente, esconde as coisas na plenitude da visão. Mesmo porque a ideia de que é possível ver tudo já é uma ilusão.

A tentativa da pornografia de reduzir o sexo a imagens, porque as imagens podem ser controladas, não serve para falar da realidade do sexo. Essa realidade depende muito mais das palavras, dos gestos, dos atos, das trocas. O sexo é a arte da transição, assim como a mudança de um acorde ao próximo na arte da harmonia musical. Que o sexo ocorra na fantasia, nesse mundo imaginário das transições, significa que não pode ser regulado pelas imagens, pois as imagens são sua matéria-prima, não seu controle.

O entretenimento, portanto, seria a arte transformada em pornografia, pois privilegia o comércio dessa arte e, para tal finalidade, precisa reduzi-la ao mero estatuto de bem de consumo. Daí que os influenciadores de livros se preocupem mais com a compra, ou seja, a quantidade de livros lidos, que a qualidade dos livros e a qualidade da leitura mesma. Até apresentadores que produzem vídeos ou podcasts de 40, 50 minutos sobre um romance, são incapazes de fazer associações expansivas e sofisticadas sobre o texto, porque seu raciocínio permanece reduzido à explicitude do enredo e trivialidades afins. Afinal, se comprei muitos livros, tenho muito dinheiro, se tenho muito dinheiro, isso se deu por mérito, se é assim, então sou melhor, sou superior a quem tem menos (livros) que eu.

Essa subordinação à diegese reduz o escopo de ação ou eficácia semiótica da arte. Como já escrevi antes, a alegoria é a ferramenta mais forte na arte moderna porque permite reavaliar as relações, sejam as relações a que essa arte está submetida, sejam as relações em que essa arte transitará, sejam as relações que essa arte instituiu ou inventou. Daí a pornografia ser antialegórica, porque estabelece apenas uma relação, sempre óbvia, reforçada como a única válida e verdadeira.

Não é na relação imediata, isto é, na identificação, que o espectador se envolve com a obra. O espectador envolve-se na obra com a imaginação. Por exemplo, no caso do filme narrativo: a ilusão de que se vê a verdade, ou seja, de que se vê sem pensar, é apenas uma ilusão perniciosa. O que se vê são imagens técnicas em sequências desconjuntadas, as quais a memória reunirá posteriormente, buscando coerência (narrativa), ou seja, enredo. De maneira direta: o filme narrativo é um efeito dos limites da memória do espectador.

Só há inteligência (e pensamento) onde há memória. Torna-se impossível pensar sem manipular registros (memorização, recordação). Vivemos sob a ilusão dos letreiros de luz neon, a cidade iluminada durante todas as 24 horas, o mito da visibilidade absoluta. Imagine-se a infelicidade disso! Não afirmo que se trate de defendermos obscurantismos ideológicos, mas precisamos defender as sombras, o direito às trevas, à escuridão, ao repouso das imagens. Talvez tenha me interessado tanto pela edição fílmica porque a saturação de imagens ao meu redor fez-me atento ao intervalo entre uma imagem e a próxima.

Note-se: não repito a estética do silêncio poético, daquilo que se sugere por sua ausência delineada. Necessitamos de explicitude, sim, contraimagens para combater as imagens presentes. No entanto, também necessitamos de focos anti-imagéticos, concepções insensíveis, insensatas, insignificantes, é dizer, que expõem o solo assêmico anterior ao estabelecimento do sentido. Práticas que nos recordem (eis a memória!) da tela escura sobre a qual o filme pode se desenrolar. Devemos recobrar a visão a despeito das coisas vistas. Não exijo enredos metaficcionais, mas que atentemos a um personagem lendo um jornal ou uma carta, pois essa é nossa posição e está figurada na realidade diegética, estamos representados por uma figura. Aceitamos de bom grado essa figuração? Abaixamos a cabeça e dizemos amém ao nosso representante, o qual nós nem sequer escolhemos?

Há que se pensar sobre essas coisas.

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