sexta-feira, 1 de março de 2024

Especulações sobre o cinema

Ando apaixonado pelo cinema como a forma de arte que expõe o funcionamento íntimo do que os artistas sempre fizeram: uma espécie de corte e a subsequente combinação da coisa cortada, o que se poderia chamar uma redução deliberada. Trata-se de uma espécie de distorção ou deturpação deliberada em que se enfatizam alguns elementos em detrimento de outros, produzindo excedentes de sentido ao se privar o sentido de toda sua nuance material.

Acredito que os diretores-autores mais antigos, os auteurs, dos anos 1920–50, estavam todos muito atentos à função do corte e da combinação na construção do filme. Essa atenção excepcional ao corte e à combinação fazia com que compreendessem os níveis estruturais em que a narrativa se estabelece. Aqui, é claro, posso utilizar o termo metanarrativo referindo-me à estruturação da narrativa, aos elementos suprassegmentais em que a história se constrói para o espectador.

Essa consciência apenas a atingem o crítico aguçado e o artista que estuda os predecessores. O espectador leigo, passivo e completamente entregue ao filme, não compreende, assim como o leitor que apenas vira páginas e não pensa naquilo que lê.

Parece-me que o cinema é uma forma de arte que consegue pressurizar o tempo, consegue comprimi-lo em uma espécie de líquido que flui de uma tomada à próxima, de um ângulo da câmera ao próximo — de uma visão à próxima. Varia-se de um ritmo acelerado a um desacelerado numa perseguição de carros, passando-se a um diálogo, um toque de mãos, uma janela. Toda essa combinação faz com que o tempo torne-se uma espécie de líquido, que é comprimido ou expandido na tubulação que constitui as cenas, umas após outras.

É como se o cinema fosse não apenas a arte da imagem em movimento acompanhada do som (muitas vezes o som jaz subordinado a essa imagem, porém existem exceções), mas também, talvez até mais que a imagem em movimento, talvez o cinema seja a arte do tempo, cuja matéria-prima é a própria temporalidade.

Acredito que todas as artes narrativas, como literatura, teatro, dança, música e cinema, podem trabalhar o tempo, mas o cinema, pela maneira passiva com que nós o engajamos, permite a manipulação do nosso tempo interno. Entretanto, como somos seres orgânicos, nossa temporalidade sempre se regula através de ritmos. Já falei disso algumas vezes e é uma hipótese que carrego com muita convicção em meu coração, é algo em que acredito de maneira ferrenha: temos o ritmo de salivar e o ritmo de deglutir a saliva, abaixar e levantar a mandíbula, descer e subir as pálpebras para piscar, inspiração e expiração, uma perna após a outra na caminnhada, sono e vigília, fome e saciedade, isolamento e convivência social, e temos também o ritmo do pensamento, da formação de imagens (sensibilia) mentais, que é regulado através desses ritmos fisiológicos e também os regula.

Todavia, a regulação biorrítmica dos tempos internos (memória, imaginação, comunicação, interação) não se dá de maneira consciente, senão inconsciente, pois é na inconsciência que vive o animal do humano. Portanto, o cinema é a arte que nos põe em contato direto com nossa animalidade constitutiva, o que não é dizer pouco, pois era ao controle disso que Aristóteles visava ao explicar a teoria da catarse no teatro antigo. Em outras palavras: o cinema é uma arte eminentemente política e social.

No entanto, o cinema só consegue alterar ou afetar essas camadas inconscientes quando toma o tempo, como a literatura toma o tempo, é dizer, quando demora. Mesmo que as tomadas do filme sejam todas breves e sucedam-se rapidamente umas às outras, é preciso que o tempo que se pressuriza naquele filme seja um tempo lento, quase geológico, porque apenas o tempo geológico, das mudanças significativas da natureza, será capaz de mudar o ser humano (que é, antes de tudo, um animal, um ente de natureza).

A literatura, por suposto, trabalha com esse tempo lento porque trabalha com as línguas verbais, que são todas muito antigas e muito lentas, mesmo que os linguistas históricos classifiquem-nas como línguas modernas; são arcaicas para nós porque dizem respeito à nossa infância e à nossa introdução no mundo humano, ou seja, existe algo da pré-história humana que ocorre repetidamente a cada vez que uma criança adentra a linguagem, a cada vez que um infante torna-se falante.

Mas não há garantias de que a linguagem audiovisual, cinematográfica, guiada primariamente pelo visual, seja capaz de atingir esses ritmos da natureza que organizam e, de certo modo, antecedem o tempo1. Essa falta de garantia significa que o cinema é uma aposta ou um risco, mas também implica que o cinema comercial reforça certa animalidade sociabilizada do humano urbano moderno. Esse ser humano moderno e urbano é um ser domesticado no pior sentido possível, está adestrado para receber recompensas quando atende aos sinais com que lhe acostumaram. É um escravo da semiose já estabelecida, uma máquina orgânica de repetição de signos, uma fábrica ambulante para a produção e repetição do mesmo.

Se há grande arte, essa é capaz de revirar o subsolo inumano que habita o humano e em que o humano habita e essa arte fornece-o como uma espécie de matéria-prima para que o humano remodele sua vida. Promove novas relações dos sujeitos entre si e consigo próprios. Porque a grande arte, seja um poema narrativo sobre a guerra, escrito há dois 2500 anos, ou um filme sobre suspeitas e acusações jurídicas, lançado há poucos meses, a grande arte diz respeito às relações. Sejam as relações entre seres humanos, as relações entre humanos e não humanos, as relações dos seres consigo próprios (sua interioridade) ou até as relações entre os entes não humanos, como as máquinas, a natureza, a arquitetura e as próprias artes.

Como a grande arte diz respeito aos relacionamentos, também é capaz de propor novos relacionamentos e reconfigurar as relações já existentes. Isso significa que a arte é eminentemente política, mas não diz respeito à política institucional de cada época, e sim à politicidade2 que persiste ao longo da história e caracteriza o ser humano como animal social e político. Essa compreensão do ser humano já estava presente na obra de Aristóteles; seria o estagirita um dos precursores do cinema, junto aos irmãos Auguste e Louis Lumière?

De um modo ou de outro, volto à ideia de ritmo, porque acredito que todas as artes (que têm alguma relação com o tempo) caracterizam-se pelo ritmo.

Creio que o ritmo seja o elemento unificador das artes que se distendem no tempo, como a poesia, a prosa, a música, a atuação, a dança e o cinema. Se distingo teatro e cinema, faço-o porque travam relações diferentes com a presença dos espectadores e com o tempo.

O ritmo fica explicitado na música, na dança e na poesia, mas isso não quer dizer que esteja ausente da prosa, do teatro (quando esse não é musical) e do cinema. Pelo contrário: por estar presente de maneira pouco perceptível, ou o que poderíamos chamar insensível (fazendo um trocadilho), permite com que seja mais profundo em suas raízes e mais eficaz em seus efeitos organizadores do inconsciente.

Com a invenção do cinema, começou-se a sonhar de maneira pública (mas não coletiva) e explícita. Esse último ponto cria um problema sério e difícil de solucionar, pois o sonho precisa sempre ter alguma coisa implícita para que permaneça fazendo os efeitos que, como sonho, deve fazer. Em outras palavras: o sonho precisa ter conteúdos latentes para continuar sendo sonho, pois apenas quando os conteúdos latentes deslocam, recortam, transformam e recombinam as memórias do dia é que há sonho com a lógica própria de sonho, sua estrutura típica. Quando o sonho passa a um espetáculo público e explícito, perde completamente seu estatuto onírico, tornando-se isso mesmo, mero espetáculo, simulacro do material onírico, uma realização incapaz de produzir os mesmos efeitos daquilo que imita.

Entretanto, dá-se essa cópia de segunda mão apenas quando o cinema torna-se entretenimento, esvaindo-se seu aspecto artístico originário. Pois, mesmo o cinema mais antigo, como Intolerância, de Griffith, voltado todo ao dinheiro, ainda era um filme capaz de comover e produzir mensagem, que atravessa o tempo desde quando o filme foi lançado até hoje.

Valendo-me do vocabulário dos românticos, diria que o cinema entretenimento é absolutamente incapaz de alegorias e está totalmente entregue ao símbolo. Quer dizer: cada cena representa a si mesma e seu sentido é óbvio — uma instrução para o espectador, esse cãozinho disciplinado. Assim como a teoria romântica do símbolo afirmava que esse mantém relação direta com aquilo que simboliza, como o crucifixo repete a forma da cruz em que Cristo morreu, é dizer, há alguma semelhança que garante a continuidade entre o símbolo e o simbolizado; por sua vez, a alegoria é capaz de relacionar elementos que, a princípio, não relacionaríamos, fornecendo liames não lógicos ou não naturais para o pensamento, produzindo associações criativas e originais ao propor proporções ou equivalências entre termos que, de antemão, não pareceriam comparáveis entre si.

Através dessa ferramenta, o cinema e a literatura podem propor novas relações ou reconfigurações das relações existentes, novos parâmetros para as relações existentes. A alegoria talvez seja o grande recurso da arte moderna e não mais o símbolo, pois o símbolo pertenceria à arte clássica, que espera o mundo em ordem e deseja afirmar uma ordem como a grande ordem natural, enquanto a alegoria percebe que o mundo tem a ordem que nós lhe impomos e permite que tornemos explícita essa imposição, possibilitando o questionamento da ordem atual e a abertura para ordens alternativas.

A forma extrema da alegoria ocorre com a desfiguração do próprio ato de figurar, levando a distorção até o irreconhecível, deturpando as figuras com que formamos nosso imaginário e povoamos nossa memória, expondo o imaginário e a memória operando detrás dos panos do memoriado e do imaginado. Isso parece impossível, já que suas ações estão intimamente ligadas ao conteúdo sensível, pois a memória de algo sem preenchimento sensível seria como uma equação puramente algébrica.

Acredito que o corte e a montagem, o processo de edição cinematográfico, seja talvez o processo mais importante na narrativa moderna e contemporânea, porque pode se tornar invisível ou insensível, mas permanece organizando a sensibilidade.


  1. Ainda que só possa existir ritmo quando há tempo no sentido metafísico de uma espécie de substância, substrato ou meio indistinto que permite a sensação de passagem e movimento, transição e mudança (assim como o espaço).

  2. Relacionalidade institutível, mas não necessariamente já instituída, apreensível, formalizável, realizável, mas não necessariamente já realizada e constituída.

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