domingo, 10 de março de 2024

Uma reflexão sobre religião e uma afirmação que não se converte em outra

Untitled

Acredito que Deleuze confunde-se na maneira como enfrenta a negatividade, porque a negatividade do inconsciente é necessária para que haja uma afirmação (o positivo) da subjetividade. Deleuze quer que tudo seja conversível em afirmação, supõe que se possa tratar o inconsciente afirmativamente; é aqui que ocorre o desastre. Por isso, o inconsciente deleuziano aproxima-se do modo como Bergson pensa a memória. A memória pode ser afirmativa, mas o inconsciente não é uma ordem da memória, pelo contrário, é a dimensão do sujeito que agride, com a experiência, a identidade afirmativa da memória.

O mesmo vale para a situação espinosana: a negatividade determina os modos, finitizando-os (para conformar o sujeito como um modo finito)1. Trata-se de um problema similar ao quase fascismo inerente ao pensamento jungiano.

A amplificação da mitologia apregoada por Jung, a tal ponto que se torna quase um elogio da mitografia, tenta seguir a lógica secularizadora de Freud, entretanto de maneira depressiva: enquanto Freud vislumbra o estudo científico da religião como triunfo do princípio da realidade sobre o princípio do prazer, Jung vê esse estudo como indicativo do “materialismo superficial” da modernidade que, supostamente, nos privaria de nossa autêntica espiritualidade originária. No entanto, Jung não nos dá simplesmente uma “religião da psicologia”, mas sim uma psicologia da religião permeada pelo desejo de abolir suas próprias condições seculares de produção — aqui que contemplamos claramente a natureza reacionária do pensamento junguiano, sua filiação a certa fantasia fascista de um retorno à era dos deuses primordiais.

Deus é inconsciente — a fórmula lacaniana — afirma algo que não se pode converter na afirmação junguiana (implícita): o inconsciente é deus. Fazer do inconsciente portador dos atributos divinos, como a regência do destino, não depõe a favor de deus, como se o inconsciente fosse um mitologema secularizado, mas sim contra deus, expondo sua natureza mistificadora enquanto ocultamento da lógica inconsciente (portanto, enquanto impedimento dos sujeitos alcançarem maior liberdade)2.

É claro que há similaridades entre a psicoterapia e a religião, mas não onde se costumam apontá-las. Por libertar o sujeito, mesmo que parcialmente, a psicoterapia exerce concreta e materialmente o mesmo efeito que a proteção divina promete (proteção contra “o mal” — os fantasmas, o desalinhamento entre desejo e vontade, etc.). Não é de espantar, tendo-se em vista a alegorização religiosa dos sofrimentos psíquicos (os relatos de tentação, do demoníaco, de acosso, de fracasso, etc.).

Para bem e mal, toda religião é apenas instituição humana.


  1. Frequente encontro quem deseje negar a matriz cartesiana de Espinosa, mas isso é impossível. Assim como a Ética é profundamente devedora da Cabalá, assim também “pensamento e extensão” nomeiam por outras palavras o que há de essencial na grande invenção (geométrica) do plano cartesiano. Álgebra como sinédoque de pensamento (supondo, erroneamente, que o pensamento poderia se dar sem o sensível) e geometria como sinédoque da extensão (supondo, erroneamente, um sistema de medida universal).

  2. Essa ideia nega, precisamente, o louvor ao inconsciente como a um deus. Deus é inconsciente, mas o inconsciente não é deus. Visões, milagres, efeitos, sustos, brotam do inconsciente e confirmam-no, mas isso não faz do inconsciente um ídolo a que se deva prestar culto ou com o qual devamos nos maravilhar. Trata-se, ainda e sempre, de material mundano, poeira ao rés-do-chão, como tudo. Seu funcionamento particular deve-se à mistura de passado e presente na formação do futuro: quer-se o que se será como o que se foi.

Nenhum comentário:

Postar um comentário