Fico contente que meu entusiasmo com o cinema não pareça uma espécie de afobação, mas sim uma alegria a ser partilhada, pois penso que essa é a grande partilha: as artes promovem a partilha do tempo, dos interesses, da atenção e da reflexão, partilha capaz de nos engrandecer e melhorar.
Sei dos excessos cometidos por Stanley Kubrick, os boatos que rondam Hollywood. Ao mesmo tempo, compreendo que o nível de exatidão que ele buscava corresponde à precisão que encontra poucos iguais no cinema, assim como alguns escritores permanecem acima de outros pela qualidade de sua escrita. Beckett, Nabokov, Thomas Mann, Paul Celan; as figuras construídas por Dante ou Mallarmé — existe algo aí de uma precisão muito semelhante à exatidão de Kubrick, uma espécie de busca pela forma cristalizada, já decantada, como se fosse possível recolher séculos de história em algo que se faz em um dia.
Entretanto, também compreendo que um diretor assim com seus atores afastará os aspirantes, mesmo que os atores angariem benefícios para suas práticas e suas técnicas, pois será como tortura e torturas sempre se enxergam como não necessárias de se repetir. O artista, afinal, jamais deve sofrer mais do que já sofrerá pelo mero fato de ser artista.
O mito do artista sofredor por sua arte é apenas isso mesmo: um mito, lenda moderna que se criou para justificar o sacrifício dos artistas. Como já não se podia mais falar do corpo sacrificado de Cristo, porque Deus morreu, passou-se a se sacrificar a obra de arte, pois nem mesmo o artista conseguiu padecer nesse lugar.
Se observarmos atentamente, perceberemos que a obra de arte passa a ser sacrificada a partir do modernismo estético (século XX, quem sabe, desde os finais do XIX). Veja-se, por exemplo, como o impressionismo sacrifica a uniÀo da visão ao movimento da mão no corpo do pintor para gerar imagens que correspondem a imprecisões. Uma captação de visão de baixa qualidade, como se o pintor fosse míope ou astigmata. Assim também ocorreu na escrita. William Faulkner teve de se transformar para escrever O som e a fúria, colocou-se nessa posição, subjetivou-se dessa maneira, para conseguir produzir esse tipo de texto.
Entretanto, os textos desses autores foram sacrificados, não os autores. Ainda Franz Kafka teve de sofrer: morreu acreditando que deveria jogar fora seus escritos e não publicou mais que um ou outro texto. Também Fernando Pessoa passou por isso: publicou em vida apenas Mensagem, também O guardador de rebanhos, de seu heterônimo Alberto Caeiro (que é de fato uma obra-prima da poesia, ao lado das Geórgicas de Virgílio). Virgílio também padeceu por sua poesia, uma poesia que guarda, assim, alguma modernidade, essa espécie de modernidade que é uma preocupação com o presente, com responder às circunstâncias em que se vive. Assim como Ovídio também foi exilado no fim da carreira por conseguir, através dos seus versos, descrever e narrar a situação em que o Império Romano se encontrava, tornando, portanto, sua poesia em uma espécie de ameaça ao poder que não aceita questionamento. Uma vez que a poesia é, por sua própria natureza imaginativa, uma forma de destituição da soberania, já que permite a fuga da realidade imediata e até mesmo a fuga da realidade social, tornando os sujeitos insubordinados ao poder instituído e constituído ao redor desse sujeitos, o poder soberano odeia-a e expulsa-a.
Todavia, perceba-se que, se pudéssemos entrevistar William Faulkner ou James Joyce, eles nos responderiam com a maior clareza, sem padecerem de qualquer espécie de loucura. Em outras palavras: a obra de arte começou a padecer no altar da religião secular que veio substituir a religião sobrenatural e mística que dominava o mundo até aquele momento.
Também o cinema passou pela mão de diretores (surrealistas?) que conseguiram desmontar a forma narrativa fazendo filmes que não possuem enredos, como se fossem suítes sinfônicas ou poemas líricos. Todas as artes, portanto, foram destronadas de sua matriz figurativa, ou, se pudermos inventar uma expansão de significado da palavra, de sua matriz realista.
Digamos realista porque há uma espécie de preconceito ocidental que vincula o realismo ao figurativo: o preconceito do símbolo1.
Uma das maneiras modernas de se enfrentar essa relação estabelecida vem desestabilizando-a e estabelecendo outras relações. Portanto, a alegoria, com seu estabelecimento de relações não concebidas previamente, e a desfiguração, com suas várias maneiras possíveis, como o abandono da rima na poesia ou como a escolha de comparações inesperadas, têm papel central nesse processo.
Também a prosa passou por estratégias de desfiguração e alegorização, como os enredos de Kafka, fábulas sem lição de moral ao final, sem moral da história, ou como os romances de William Faulkner, em que não há uma perspectiva verdadeira, apenas uma composição em mosaico ou free jazz, a qual já não permite o agregado coerente de uma totalidade, desfigurando a realidade ou reduzindo-a a mera figura de si própria, uma cópia de segunda mão, deformada e parcial.
No entanto, a obra de arte foi sacrificada também no altar do comércio. O que se sacrificou, nesse caso, foi o intuito artístico e o pertencimento a uma continuidade histórica, cultural, social, de desenvolvimento humano. Em vez de os artistas comerciais trabalharem de acordo com a estética de seu tempo e respondendo aos problemas de seu tempo, preferiram trabalhar repetindo os valores de seu tempo, como devotos dos ídolos, idólatras mesmo, anestesiando e cegando a população para seu próprio assujeitamento. É claro que não supomos que William Faulkner é um escritor do realismo socialista ou de uma crítica anarquista ferrenha da sociedade de classes altamente dividida dos Estados Unidos. Dizemos muito simplesmente que alguém que leia honestamente, que de fato se entregue à experiência bastante agoniada e sufocante de ler um romance como O som e a fúria ou Enquanto agonizo, essa pessoa sairá transformada, não será a mesma que começou a lê-los, seu vocabulário mudará, sua relação com a língua mudará, seus sentimentos mudarão, sua gramática e seu repertório mudarão.
O filme, por custar muito caro para ser produzido, também foi autorizado a render muito lucro caso alcançasse muitas pessoas. Assim, o cinema foi uma das artes mais sacrificadas no altar do dinheiro, tendo de se convencionar, tornar-se entretenimento, para sobreviver. Porém, mesmo nessas condições adversas, o cinema continua uma arte possível, assim como a literatura, que está se afogando no oceano de textos medíocres hoje.
Por isso, ainda há muito a se explorar na influência dos artistas sobre outros artistas e no poder transformador da arte na sociedade, mesmo que estejamos vivendo em um tempo em que há cada vez menos exemplos para justificar essa crença. Para muitos, ler a poesia de Homero ou de Virgílio ou de Ovídio tornou-se uma espécie de distintivo social e cultural, algo como um broche ou uma plaqueta dizendo “sou melhor que você porque li os poetas clássicos, aqui está a prova de minha superioridade cultural e intelectual”. Entretanto, apesar de subordinar esses autores a esse comércio em que seus textos servem apenas como moeda de circulação e uma espécie de troféu, existe para esses leitores a possibilidade marginal, porém sempre presente, de se transformam através dessa leitura. Também é possível que um poeta já estabelecido encontre nesses antigos inspiração renovada, alguma maneira de transformar sua poesia em algo que responde melhor ao presente, um impulso de modernidade soprado desde o passado rumo ao futuro.
Aquela forma que partilha alguma característica com o simbolizado, tornando o símbolo em uma espécie de extensão privilegiada do simbolizado, alguma maneira de levar o simbolizado ao mundo todo, de estendê-lo além dos seus limites naturais, promovendo-o por todo canto — como uma religião ou idolatria.↩
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