108. Há nas ficções algo que me fascina: seja um conceito teórico ou um personagem inominado, quero levá-los comigo e aplicá-los, transpor seu mundo sobre o mundo real e produzir toda sorte de efeito mágico. É como se me enfeitiçasse por essa força que irrompe da textura dos pensadores, dos narradores, das vozes, dos lugares, dos sons, das cores, em suma, das coisas. Há mesmo qualquer sorte de ligação subterrânea aos nossos sentidos entre linguagem e feitiço, qualquer espécie de laço imperceptível unindo ambas as instâncias como duas partes duma mesma entidade multifacetada, pluridimensional, ininterpretável.
109. Todo tempo histórico é singular, suas demandas são singulares. Mas isso não torna nosso tempo menos putrefato e destruído. Fala-se muito em liberdade e em direitos, mas pouco ou nada se pensa do que deverá sustentar tudo isso. É claro, no império do efêmero, da curtida, da pura superfície lisa e higienizada, recheado de discursos de liberdade de compra, de empreendedorismo, é óbvio que se cairia nisso.
110. Quando estou prestes a dizer "queres falar do que te houve?" o corretor do smartphone me sugere "falsear" em vez do verbo esperado. Uma surpresa, sim, mas das boas! Se tomarmos falsear como vontade fabulante, como ficcionalizar, então é um ótimo substituto, se é assim, falar é sempre falsear.
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