186. O livre-arbítrio causa muita dor de cabeça. Há quem diga que não existe. Tudo bem, pode não existir. Mas aí restam duas questões: a) por que se faz/tem experiência dele? b) qual pergunta colocar no lugar de "o que fazer?"?
187. A estrutura da teodiceia, o famoso "porque Deus quis", se repete em diversos níveis no pensamento pós-moderno. Talvez porque o pós-moderno repita a estrutura geopolítica do império bizantino, por exemplo, onde e quando ocorria o abandono da teologia e a fundação da teodiceia, quer dizer, o abandono de uma reflexão (e) de (uma) sabedoria (de viver) traduzida em atitude e a fundação de uma narrativa jurídico-política totalizante justificando o império, as hierarquias, e o estado atual de coisas. Veja-se bem: a experiência mística (sabedoria reflexiva tornada atitude) proposta, por exemplo, por Cristo, desestruturava as hierarquias romanas e judaicas, tomando a proposição da igualdade radical. Sucede-se uma mistagogia, um esforço de sistematizar essa revolução do viver para torná-la experiência de todos, assim o iniciado faz parte e o não-iniciado não faz parte da religião, ou seja, da experiência mística, porque vivem de modos diferentes. Com a oficialização da religião, surge uma quebra: quem nasceu no território é daquela religião, portanto dispensa-se a experiência mística, anteriormente definidora da identidade e do pertencimento religiosos. Então as práticas linguísticas sob o nome 'teologia' abandonam a reflexão crítica e vão apenas tentar justificar aquela religião como correta, enquanto também tentam dogmatizá-la, i.e., produzir axiomas jurídico-políticos para reger moralmente a vida naquele ambiente geopolítico. Por isso a religião (oficial) é dogmática e o dogma é individual: é a polícia da vida. Já não é mais a experiência mística – abertura para outra forma de vida através da revelação –, mas apenas jurisdição e moralismo, imperialismo sobre a vida. O que se deve recuperar, portanto, é a mistagogia, a sabedoria de viver iniciada pelo místico fundante e sistematizada por seus discípulos também sábios (não obrigatoriamente os mais próximos no espaço-tempo, senão aqueles mais próximos na sabedoria, na experiência mística mesmo, fato muito turvado por narrativas oficializantes, daí um dos problemas da canonicidade). Resta notar a importância do artista nessa questão toda. O artista revela(-se) o mundo. Quer dizer, tem uma percepção do mundo revelada a si, produzindo percepções reveladoras do mundo. Aqui o vínculo entre mistério e místico deve estar óbvio. Por essa e outras questões, o artista explicitamente engajado em temáticas políticas dificilmente dirá algo revelador, exatamente porque está preso ao já-exposto, só pode reafirmar o óbvio, o que já se sabe, só pode "tomar posição", mas não consegue instaurar uma posição através da produção duma sensibilidade ou outro processo qualquer.
188. Creio ter desejado experimentar quando criei S&D. Eu estava testando uma tentativa nova, parece-me hoje (dez anos depois). Algo angustiante sem cair no absurdo, aterrador sem falir em terror. Algo único.
189. Vivemos uma era sensível, estética (se o termo não for idiotamente tomado como caliologia, mas como estésica) mesmo: o que importa é sentir e fazer sentir, comoção. A moção propriamente dita, o movimento, desapareceram, em nome da "sensibilização", termo tão em voga na minha formação escolar primária. Não, não essa sensibilização, essa é desnecessária. Só há duas saídas (sim, uma disjuntiva terrível, necessária igualmente): o pé no chão estóico reavivado; a loucura do furor heroico, sua imersão inevitável, inelutável, até à extinção (de si).
190. Por que as pessoas querem ser bonitas? Por que batem fotos com ângulos assim, olhares assados, sem bocas, narizes distorcidos? Minha sensibilidade é profundamente cagada, toda errada, mas eu só conheci duas belezas até hoje: músicas, só algumas; atos de sacrifício de si pelo bem alheio. Somente. Não vejo beleza em romances. Nem em pinturas ou desenhos. Nem em esculturas. Nem em superfícies que toquei. Nunca cheirei odores belos ou bonitos.
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