O resultado da tendência social ampla de um favorecimento moral da multiplicidade; do recalque do confronto; da explosão da máquina acadêmica e da indústria da cultura; da instrumentalização da teoria e a paralela imobilização das obras – o resultado de tudo isso é a desobjetivação dos objetos, a perda de seus contornos específicos, de seu caráter formal. O pluri-, multi-, trans-, prefixos tão em voga ultimamente, deixam isso claro. Para dizer com outras palavras, a consequência final da disseminação da multiplicidade como lugar-comum é a aniquilação da diferença de verdade em uma indistinção generalizada. A escrita da multiplicidade insere-se assim na crise mais ampla da cultura, que há algum tempo estamos testemunhando: o fato de que está cada vez mais difícil ligar cultura e valor, cultura e utopia, cultura e oposição. Segundo um sentido mais antigo, sem dúvida excludente e ideológico, a cultura seria tudo aquilo que se furta à mera reprodução do existente: seria um reino de liberdade. A crítica ao que há de falso nessa representação levou à consolidação de um conceito antropológico de cultura, o conjunto de práticas de significação de um grupo determinado. Mas se cada conjunto de pessoas tem a sua cultura, se ela é imanente a qualquer produção coletiva e coerente de sentido, então não há nada no conceito que impeça que se fale da cultura dos carcereiros ou dos torturadores. Assim como a multiplicidade, a cultura parece não ter alteridade, porque seu verdadeiro outro, a barbárie, só pode aparecer em um contexto valorativo, que a cultura da multiplicidade de antemão impossibilita.
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