1.
Pensar
a poesia como linguagem da voz. Tomando como ponto de partida para a
discussão e debate aquilo que Giorgio Agamben propõe em A linguagem e a morte, na esteira de Foucault e
Derrida, como diferença entre phoné (voz) e logos (linguagem). Contudo,
a voz reivindicada por Giorgio Agamben não é a voz de Aristóteles. Caberia pensá-la como algo
mais próximo ao ato de fala, em
oposição à linguagem como logos (sistema
abstrato, langue). Portanto, dessa distinção
derivam dois modos de entender a poesia: voz da linguagem (isto é, como
representação de um sistema absoluto, do humanismo hegeliano, em que a
negatividade é apenas algo que deve ser mantido à distância, reverenciado, como
precursividade fundadora e instituidora, o nomos, em que a voz é mero
suporte do lirismo). Ou seja, por um lado se propõe questionar a
compreensão da poesia pensada como metáfora e, de outro lado, questionar a
poesia como linguagem da voz, isto é, como a-teologia ou teo-a-logia, segundo demostrou Giorgio Agamben sobre
Mallarmé em A potência do pensamento, em que a
poesia assumiria os traços da animalidade pós-histórica (Kojève) e, nesse
sentido, o poético seria aquilo em que arcaico e atual se reúnem enquanto
traços, restos, indícios, sobrevivências, anomalias selvagens. Dessa maneira,
estaríamos discutindo um conceito de contemporâneo para
a poesia.
2.
Ainda
no âmbito das discussões sobre o contemporâneo na poesia, é importante retomar
a reflexão sobre a indagação a respeito do “eu”, dos pronomes e, nesse ponto,
tanto Kojève quanto Foucault oferecem-nos pistas para pensar o poético. Hegel
dirá que o poético é a passagem da sensação, o sentimento, à consciência. Com
Kojève, no entanto, o poético seria o ensaio de pensar uma voz sem
negatividade (segundo Agamben) entre o Absoluto (Hegel) e o Ereignis (Heidegger). Entretanto, em nossa
proposta de trabalho não abrimos mão de pensar também a noção desenvolvida por
Kojève de que as relações entre Amo e Escravo (entre Kant e Sade, para dizer
com Lacan) não são mais do que desejo de um desejo.
E esse désir de Kojève (desiderium, um saber
a partir das sidera, da poeira de estrelas, da
constelação benjaminiana) não é Nada (néant)
como negatividade ainda dialética, mas é negatividade tomada como neutralidade
do Real, que reverte sempre sobre o sujeito e lhe pergunta a partir de sua
imobilidade por que ele diz o que diz.
3.
A
poesia como memória da linguagem. Numa entrevista radiofônica concedida a André
Gillois, em 1951, Georges Bataille dizia que a poesia nasce da desordem do pensamento, porque há algo de profundamente
poético em toda desordem do pensamento. A partir do conceito duchampiano
de infraleve, poder-se-ia traçar, portanto, uma tangente
teórica que viria até a obra de Rauschenberg que, segundo Branden Joseph,
postula uma ordem aleatória (JOSEPH,
Branden W. Random Order: Robert Rauschenberg and the
Neo-Avant-Garde. Cambridge,
MA / London. October Book, MIT Press, 2003). Entre outras aproximações, Joseph
vincula o interesse de Rauschenberg pelas performances com os escritos de
Antonin Artaud, em particular, O teatro e seu duplo,
apresentado como conferência no Black Mountain College, o centro de renovação
da arte norte-americana nos ‘50, orientado por M. C. Richards, e que
Rauschenberg pôde ter assistido. Que o tenha feito ou não é irrelevante de
fato, porque o que interessa, em termos de pensar uma estética inoperante, é construir constelações e
captar a energia que delas emana. Porque uma das questões que avultam, no
processo de anautonomização da arte,
é precisamente perceber que aquelas experiências que, originariamente,
constituíram experiências-limite da elite intelectual, acabaram por
transformar-se, atualmente, em experiências de massa, e como já apontava
Giorgio Agamben, uma Stimmung de
massa já não é uma música memorável: é tão somente uma enorme balbúrdia e
confusão, já que o homem contemporâneo é o primeiro a não ter Stimmung, isto é, vocação. Não é um dado alvissareiro,
certamente, mas é algo que revela, porém, a condição exposta do contemporâneo,
segundo Giorgio Agamben em A Ideia da Prosa.
Portanto, aceitando que o conceito de Stimmung está
relacionado com Stimme (voz), e ainda que o
verbo stimmen significa “afinar um instrumento”, e por
extensão, “estar certo”, “estar no lugar adequado”, o alvo não seria nos
empenharmos, à maneira de Roberto Schwarz, no sentido de fixar Que horas são?, mas no de provocar uma desordem no
pensamento e conceber as Stimmungen já
não como um continuum temporal, senão,
como tons, atmosferas, fricções que se processam conforme diferenças gradativas
e matizes infraleves que, de certo modo, supõem uma contestação da linguagem
descritiva.
4.
Pensando,
sobretudo, ainda no “inimigo” da poesia, o logos abstrato, interessa-nos
também retomar Henri Michaux, em Par des traits (misto
de grafismos e reflexões “casuais”), a partir do qual se reflete/sonha
sobre o aquém e o além da língua. Ele solicita uma “língua modesta, mais
íntima, […] uma língua sem pretensão, para homens que sabem que nada
sabem.” A resistência da poesia, nesse sentido, seria que a poesia resiste ao
romance, porque não deseja ter a pretensão de nomear sujeitos. Os vultos da
poesia não são necessariamente protagonistas, são figurantes.
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