segunda-feira, 7 de abril de 2014

Capítulo II - Alvorecer de uma nova era

            A Luz do Mundo seguiu seu caminho pacientemente, umedecendo, com seus ensanguentados pés, as tábuas rangentes, depois a grama em derredor da casa, fazendo voar os grilos do mato, quais finalizavam as Odes de Recepção a Ela. Abismou-se com a beleza dos verdinhos insetos barulhentos esvoaçando e bagunçando toda a harmoniosa sacra canção que compunham e executavam especialmente para ela, sem nem mesmo saber que faziam isso.
            Então ela caminhou para além d’Os Jardins Sagrados, que cercam A Primeira Casa, buscando algum lugar do mundo a modelar, algum pedacinho de chão a exibir seus traços, para que pudesse, enfim, trabalhar, cumprir sua missão, significar seu nascimento de maneira a eternizar-se, materializar sua vida. Passando d’Os Jardins Sagrados, encontrou, finalmente, aquilo que procurava O Deserto de Krysta, aquém de Adva, O Vertente Infindo.
            Por Krysta Ela pôde impor sua forma às coisas, estendendo suas finas e efeminadas mãos iluminava as coisas do mundo e as transformava em imagens ideais, criaturas perfeitas dali nasciam. Rochas reluzentes capazes de brilhar como apenas a Estrela d’Alvorada, outras tão opacas que consumiam toda a luz para si. Tudo era perfeição. As areias d’O Deserto pareciam agora suas fieis seguidoras, obedientes, sabiamente atrás de cada passo seu; o chão marcara-se por seus pés, mesmo que macios e leves, ferviam-se as solas no escaldante calor do solo há muito alumiado.
            Todavia, nem toda peregrinação é alegria, nem esta seria. Mais adiante em seus tortuosos e maravilhosos caminhos por Krysta, A Luz do Mundo contemplou ao longe um agrupamento bastante movimentado, parecia agitadiço. De fato o grupo estava agitado, sentiam sua presença e sua luz os cegava mais que a Estrela Dalva. Eram Aqueles Sem Rosto, anteriores mesmo a Ela, anteriores À Luz do Mundo, contemporâneos d’O Criador Primevo, Seu já extinto pai. Ao avistarem-na, ainda que, tal qual Seu pai, usassem panos sobre seus rostos, viraram seus encobertos rostos em sua direção e avançaram, em passo considerável.
            Aqueles Sem Rosto aproximaram-se dela, ergueram seus magros braços pelos frágeis pulsos e cheiraram sua pele, seus sovacos. Subiram, cheirando seu pescoço, então seu queixo, suas bochechas, seus cabelos. Não eram delicados, ao contrário, grosseiramente a jogavam dum lado ao outro, para que a cheirassem. Seu cheiro era doce e metálico, ainda tinha sobre a pele fina camada do sangue seco de Seu pai. Uma benção ter tão magnífico odor sobre si, em vez de aturar a aridez de Krysta? Ou uma maldição, por atiçar forças e instintos tão profundamente segredados e dela desconhecidos? Seu temor aumentava conforme o jogo de empurra-empurra se tornava mais voraz e violento.
            Antes que pudesse dizer uma só palavra Ela foi erguida, não como uma taça, ou um prêmio, mas como um pedaço de carne. Foi beijada, foi tocada, Sua pele foi arranhada. Quando deu conta de si, já não lambiam Sua pele, mas a mordiam e machucavam. Seu cheiro era tão agradável, Sua superfície tão macia que A queriam dentro de si, queriam devorá-la por inteiro. Foi então que Ela se deu conta da verdade mais fatal e profunda de si mesma: Ela não sabia falar. Seu amantíssimo pai não a havia deixado talvez o legado mais importante. Deu À Luz do Mundo todos os poderes de que necessitava para cumprir sua tarefa, qual ela mal pôde começar a completar já se achou aqui, sendo impedida e destruída por Aqueles que Seu pai talvez chamasse de amigos, talvez apenas convivesse com... Ou talvez fosse viver naquela casa arruinada exatamente para se isolar, sob a proteção do cantar dos grilos do mato.
            A verdade é que Ela não podia gritar para expressar Sua dor quase infinita. Ela não podia dizer nada, apenas sentir. E apenas sentindo Ela tomou a desesperada atitude de se jogar, com Sua própria luz, ao outro lado do mundo, depois de Krysta, caindo muito próxima d’O Vertente Infindo, Adva. Banhou suas feridas, limpando o novo sangue, mais férreo e menos adocicado, agora Seu, d’A Luz do Mundo, não mais d’O Criador Primevo, Seu pai. Adva, agraciou-se do sabor e da cor do sangue Dela, sorrindo e reluzindo, refletindo A Luz Primordial por toda sua extensão, expondo-a ao mundo, auxiliando, assim, no cumprimento da missão Dela.