domingo, 10 de março de 2024

Uma reflexão sobre religião e uma afirmação que não se converte em outra

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Acredito que Deleuze confunde-se na maneira como enfrenta a negatividade, porque a negatividade do inconsciente é necessária para que haja uma afirmação (o positivo) da subjetividade. Deleuze quer que tudo seja conversível em afirmação, supõe que se possa tratar o inconsciente afirmativamente; é aqui que ocorre o desastre. Por isso, o inconsciente deleuziano aproxima-se do modo como Bergson pensa a memória. A memória pode ser afirmativa, mas o inconsciente não é uma ordem da memória, pelo contrário, é a dimensão do sujeito que agride, com a experiência, a identidade afirmativa da memória.

O mesmo vale para a situação espinosana: a negatividade determina os modos, finitizando-os (para conformar o sujeito como um modo finito)1. Trata-se de um problema similar ao quase fascismo inerente ao pensamento jungiano.

A amplificação da mitologia apregoada por Jung, a tal ponto que se torna quase um elogio da mitografia, tenta seguir a lógica secularizadora de Freud, entretanto de maneira depressiva: enquanto Freud vislumbra o estudo científico da religião como triunfo do princípio da realidade sobre o princípio do prazer, Jung vê esse estudo como indicativo do “materialismo superficial” da modernidade que, supostamente, nos privaria de nossa autêntica espiritualidade originária. No entanto, Jung não nos dá simplesmente uma “religião da psicologia”, mas sim uma psicologia da religião permeada pelo desejo de abolir suas próprias condições seculares de produção — aqui que contemplamos claramente a natureza reacionária do pensamento junguiano, sua filiação a certa fantasia fascista de um retorno à era dos deuses primordiais.

Deus é inconsciente — a fórmula lacaniana — afirma algo que não se pode converter na afirmação junguiana (implícita): o inconsciente é deus. Fazer do inconsciente portador dos atributos divinos, como a regência do destino, não depõe a favor de deus, como se o inconsciente fosse um mitologema secularizado, mas sim contra deus, expondo sua natureza mistificadora enquanto ocultamento da lógica inconsciente (portanto, enquanto impedimento dos sujeitos alcançarem maior liberdade)2.

É claro que há similaridades entre a psicoterapia e a religião, mas não onde se costumam apontá-las. Por libertar o sujeito, mesmo que parcialmente, a psicoterapia exerce concreta e materialmente o mesmo efeito que a proteção divina promete (proteção contra “o mal” — os fantasmas, o desalinhamento entre desejo e vontade, etc.). Não é de espantar, tendo-se em vista a alegorização religiosa dos sofrimentos psíquicos (os relatos de tentação, do demoníaco, de acosso, de fracasso, etc.).

Para bem e mal, toda religião é apenas instituição humana.


  1. Frequente encontro quem deseje negar a matriz cartesiana de Espinosa, mas isso é impossível. Assim como a Ética é profundamente devedora da Cabalá, assim também “pensamento e extensão” nomeiam por outras palavras o que há de essencial na grande invenção (geométrica) do plano cartesiano. Álgebra como sinédoque de pensamento (supondo, erroneamente, que o pensamento poderia se dar sem o sensível) e geometria como sinédoque da extensão (supondo, erroneamente, um sistema de medida universal).

  2. Essa ideia nega, precisamente, o louvor ao inconsciente como a um deus. Deus é inconsciente, mas o inconsciente não é deus. Visões, milagres, efeitos, sustos, brotam do inconsciente e confirmam-no, mas isso não faz do inconsciente um ídolo a que se deva prestar culto ou com o qual devamos nos maravilhar. Trata-se, ainda e sempre, de material mundano, poeira ao rés-do-chão, como tudo. Seu funcionamento particular deve-se à mistura de passado e presente na formação do futuro: quer-se o que se será como o que se foi.

quinta-feira, 7 de março de 2024

Questões de arte, pornografia, filmes e comércio

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A verdadeira arte é antipornográfica porque se recusa a desassociar-se de si mesma a fim de ser vendida em partes. Certamente, a ênfase é uma das estratégias da produção de arte, ferramenta com a qual o artista consegue produzir efeitos estéticos no espectador. Entretanto, a fragmentação do corpo feminino em algumas poucas partes repetidas e fetichizadas não funciona da mesma maneira que a distorção enfática do artista. Então, qual a diferença?

Nesse sentido, a arte (produzida do modernismo em diante) possui algo de ritual, como uma religião desprovida de crença. Mesmo o ritual de desmembramento, com toda sua violência, permanece distinto da separação em partes para otimização da linha de produção. Essa diferença consiste, além do contexto e do dinheiro investido, no esforço artístico, na eficácia simbólica ou semiótica, também na insubordinação. A maior insubordinação permanece sendo a resistência a entrar no jogo de compra e venda.

Quando se diz que uma obra de arte é inestimável ou atemporal, se diz, em verdade, que essa obra expõe, de alguma maneira, as condições de subordinação a que estamos submetidos. Por isso a verdadeira arte é antipornográfica: expõe as suas condições e nos lembra da realidade que nos compõe. A pornografia, por ser o mais óbvio, repetir o mais evidente, esconde as coisas na plenitude da visão. Mesmo porque a ideia de que é possível ver tudo já é uma ilusão.

A tentativa da pornografia de reduzir o sexo a imagens, porque as imagens podem ser controladas, não serve para falar da realidade do sexo. Essa realidade depende muito mais das palavras, dos gestos, dos atos, das trocas. O sexo é a arte da transição, assim como a mudança de um acorde ao próximo na arte da harmonia musical. Que o sexo ocorra na fantasia, nesse mundo imaginário das transições, significa que não pode ser regulado pelas imagens, pois as imagens são sua matéria-prima, não seu controle.

O entretenimento, portanto, seria a arte transformada em pornografia, pois privilegia o comércio dessa arte e, para tal finalidade, precisa reduzi-la ao mero estatuto de bem de consumo. Daí que os influenciadores de livros se preocupem mais com a compra, ou seja, a quantidade de livros lidos, que a qualidade dos livros e a qualidade da leitura mesma. Até apresentadores que produzem vídeos ou podcasts de 40, 50 minutos sobre um romance, são incapazes de fazer associações expansivas e sofisticadas sobre o texto, porque seu raciocínio permanece reduzido à explicitude do enredo e trivialidades afins. Afinal, se comprei muitos livros, tenho muito dinheiro, se tenho muito dinheiro, isso se deu por mérito, se é assim, então sou melhor, sou superior a quem tem menos (livros) que eu.

Essa subordinação à diegese reduz o escopo de ação ou eficácia semiótica da arte. Como já escrevi antes, a alegoria é a ferramenta mais forte na arte moderna porque permite reavaliar as relações, sejam as relações a que essa arte está submetida, sejam as relações em que essa arte transitará, sejam as relações que essa arte instituiu ou inventou. Daí a pornografia ser antialegórica, porque estabelece apenas uma relação, sempre óbvia, reforçada como a única válida e verdadeira.

Não é na relação imediata, isto é, na identificação, que o espectador se envolve com a obra. O espectador envolve-se na obra com a imaginação. Por exemplo, no caso do filme narrativo: a ilusão de que se vê a verdade, ou seja, de que se vê sem pensar, é apenas uma ilusão perniciosa. O que se vê são imagens técnicas em sequências desconjuntadas, as quais a memória reunirá posteriormente, buscando coerência (narrativa), ou seja, enredo. De maneira direta: o filme narrativo é um efeito dos limites da memória do espectador.

Só há inteligência (e pensamento) onde há memória. Torna-se impossível pensar sem manipular registros (memorização, recordação). Vivemos sob a ilusão dos letreiros de luz neon, a cidade iluminada durante todas as 24 horas, o mito da visibilidade absoluta. Imagine-se a infelicidade disso! Não afirmo que se trate de defendermos obscurantismos ideológicos, mas precisamos defender as sombras, o direito às trevas, à escuridão, ao repouso das imagens. Talvez tenha me interessado tanto pela edição fílmica porque a saturação de imagens ao meu redor fez-me atento ao intervalo entre uma imagem e a próxima.

Note-se: não repito a estética do silêncio poético, daquilo que se sugere por sua ausência delineada. Necessitamos de explicitude, sim, contraimagens para combater as imagens presentes. No entanto, também necessitamos de focos anti-imagéticos, concepções insensíveis, insensatas, insignificantes, é dizer, que expõem o solo assêmico anterior ao estabelecimento do sentido. Práticas que nos recordem (eis a memória!) da tela escura sobre a qual o filme pode se desenrolar. Devemos recobrar a visão a despeito das coisas vistas. Não exijo enredos metaficcionais, mas que atentemos a um personagem lendo um jornal ou uma carta, pois essa é nossa posição e está figurada na realidade diegética, estamos representados por uma figura. Aceitamos de bom grado essa figuração? Abaixamos a cabeça e dizemos amém ao nosso representante, o qual nós nem sequer escolhemos?

Há que se pensar sobre essas coisas.

segunda-feira, 4 de março de 2024

Sobre arte erótica, pornografia e o escritor como jardineiro

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Quero começar com um insight que tive: o escritor deve agir com a linguagem como o jardineiro: deixar a linguagem florescer e podá-la apenas quando souber que assim crescerá. Tive essa compreensão súbita ao ler a resenha de um filme. Seria uma espécie de kenshō, 見性, um entendimento súbito, profundo, porém breve, fugidio, que se me ocorreu. A subitaneidade do ocorrido parece dizer respeito ao ritmo e à velocidade: sedimenta-se uma compreensão no inconsciente, como uma camada de terra no subsolo ou no fundo do oceano, e tudo se arranja de nova maneira, emergindo novo entendimento, que parece súbito, mas é, em verdade, lento e demorado, habitado por muito tempo.

Um amigo propôs a definição da arte erótica como aquela que levanta questões sobre nós (nós mesmos e uns aos outros) como seres sexuais ou sexuados. Gosto dessa definição.

Infelizmente o vocabulário do erotismo está saturado por sedimentos históricos, inflando sobremaneira sua semântica. Digo isso porque eu jamais definiria a revista Playboy como erótica, mesmo que essa denominação já tenha sido utilizada; preferiria revisá-la e categorizá-la retroativamente revista pornográfica. Afinal, seu foco sempre foi a produção de efeitos precisos (tanto psíquicos quanto fisiológicos).

Não raro penso na divisão sexual, nas diferenças de sexuação, dos modos de desejar de homens e mulheres. Note-se bem que não digo “desejar o outro”, mas apenas desejar, pois creio que seja algo simultaneamente mais amplo e mais subterrâneo que o anseio por relacionamentos erótico-afetivos.

Trata-se da maneira como, ao longo da história, consolidou-se um conjunto de ideais coerentes para o homem e outro incoerente para a mulher. O homem deve prover, ser forte, defender; a mulher divide-se em duas: ou será safada, objeto de anseio erótico, ou será cuidadora, objeto de anseio afetivo. Dessa maneira, os ideais da divisão sexual (o masculino e o feminino) são inalcançáveis por razões distintas. O homem ideal é inalcançável por comparação: nenhum homem provê o suficiente, como o outro (homem), não é tão forte ou não é tão presente, etc.; sempre resta algo para completar a comparação, para fechar o círculo. Já a mulher ideal é inalcançável por impossibilidade, pois safada e cuidadora anulam-se mutuamente, especialmente quando são tomadas pelo olhar tipicamente masculino (armadilhado na comparação insatisfatória explicada acima); a mulher ideal é impossível porque não é uma, mas duas (a amante + a mãe).

Nesse sentido, as redes sociais empurram-nos um ideal masculino feminilizado, pois estão sempre promovendo comparações (seja com pessoas reais, nossos conhecidos, seja com pessoas impossíveis, como os famosos do cinema e dos esportes), mas também estão sempre vendendo mais de uma imagem à qual devemos nos adaptar (trabalhar muito, porém também relaxar, ou ler, mas também aprender habilidades manuais e trabalhos braçais).

Sociedade pornográfica esquizoide: não consegue produzir uma realidade coerente e expõe tudo à vista, não sugere seus meios de atuação, senão os deixa explícitos e os impõe a olhos vistos. Daí que as pessoas “normais” sejam insanas ao extremo, pois insistem que uma fissura é o melhor modo de tapar um buraco, regozijam-se em sua incongruência fundamental.

Partindo-se disso, a melhor literatura e o melhor cinema seriam antipornográficos. Recusam-se a dizer a que lado da divisa pertencem as relações, porque exploram as relações, elaboram-nas, sentem-nas, expressam-nas, descobrem-nas ou até as inventam. Daí o valor universal da grande literatura, pois toca o fundo do ser, o resquício de sua memória anterior à divisão, indo até a relacionalidade das relações, a tela escura donde emergem as figuras que desenham o mundo. Não sem motivo utilizei a palavra “figuras” na frase anterior: gosto de pensar o estudo da literatura como o estudo das figuras (de linguagem), não apenas aquelas convencionadas pela ciência retórica, mas também as figuras que constrói, convenciona, institui e estabelece, bem como o solo donde essas emergem.

Esse estudo da figuração tem algo de espírito de artista, algo que diz mais respeito a Nietzsche que a Kant, para exemplificar. Estudar como as imagens chegam a ganhar corpo, como vêm ao mundo e povoam esse mundo que, sem as imagens, seria deserto e insólito. Mas também, estudar como o toque do sensível, o alcance das imagens, consegue nos transformar e mesmo transformar outras imagens, a história das imagens e as relações entre as imagens e sua história (ou suas histórias). Tudo isso parece se condensar (mas não se explicar) na maneira como os artistas sofrem suas influências.

Se falo dos artistas e suas influências, não temo transformar esse impulso de pesquisa em uma teoria psicológica, pois sei que sigo fiel ao ideal de relacionar textos a outros textos, já que estou sempre preocupado com linguagens. Ainda assim, não haveria problema algum em mobilizar todas as ciências humanas para dar conta do estudo: psicanálise, linguística, estilística, sociologia, história, economia, etc. A divisão disciplinar não importa, pois o humano acontece inteiro a todo momento e a arte é seu sumo, seu resumo mais promissor nos estudos, seu resto mais duradouro e seu registro mais íntimo (exposto).

domingo, 3 de março de 2024

Especulações sobre literatura a partir da leitura do texto anterior (Especulações sobre o cinema)

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Fico contente que meu entusiasmo com o cinema não pareça uma espécie de afobação, mas sim uma alegria a ser partilhada, pois penso que essa é a grande partilha: as artes promovem a partilha do tempo, dos interesses, da atenção e da reflexão, partilha capaz de nos engrandecer e melhorar.

Sei dos excessos cometidos por Stanley Kubrick, os boatos que rondam Hollywood. Ao mesmo tempo, compreendo que o nível de exatidão que ele buscava corresponde à precisão que encontra poucos iguais no cinema, assim como alguns escritores permanecem acima de outros pela qualidade de sua escrita. Beckett, Nabokov, Thomas Mann, Paul Celan; as figuras construídas por Dante ou Mallarmé — existe algo aí de uma precisão muito semelhante à exatidão de Kubrick, uma espécie de busca pela forma cristalizada, já decantada, como se fosse possível recolher séculos de história em algo que se faz em um dia.

Entretanto, também compreendo que um diretor assim com seus atores afastará os aspirantes, mesmo que os atores angariem benefícios para suas práticas e suas técnicas, pois será como tortura e torturas sempre se enxergam como não necessárias de se repetir. O artista, afinal, jamais deve sofrer mais do que já sofrerá pelo mero fato de ser artista.

O mito do artista sofredor por sua arte é apenas isso mesmo: um mito, lenda moderna que se criou para justificar o sacrifício dos artistas. Como já não se podia mais falar do corpo sacrificado de Cristo, porque Deus morreu, passou-se a se sacrificar a obra de arte, pois nem mesmo o artista conseguiu padecer nesse lugar.

Se observarmos atentamente, perceberemos que a obra de arte passa a ser sacrificada a partir do modernismo estético (século XX, quem sabe, desde os finais do XIX). Veja-se, por exemplo, como o impressionismo sacrifica a uniÀo da visão ao movimento da mão no corpo do pintor para gerar imagens que correspondem a imprecisões. Uma captação de visão de baixa qualidade, como se o pintor fosse míope ou astigmata. Assim também ocorreu na escrita. William Faulkner teve de se transformar para escrever O som e a fúria, colocou-se nessa posição, subjetivou-se dessa maneira, para conseguir produzir esse tipo de texto.

Entretanto, os textos desses autores foram sacrificados, não os autores. Ainda Franz Kafka teve de sofrer: morreu acreditando que deveria jogar fora seus escritos e não publicou mais que um ou outro texto. Também Fernando Pessoa passou por isso: publicou em vida apenas Mensagem, também O guardador de rebanhos, de seu heterônimo Alberto Caeiro (que é de fato uma obra-prima da poesia, ao lado das Geórgicas de Virgílio). Virgílio também padeceu por sua poesia, uma poesia que guarda, assim, alguma modernidade, essa espécie de modernidade que é uma preocupação com o presente, com responder às circunstâncias em que se vive. Assim como Ovídio também foi exilado no fim da carreira por conseguir, através dos seus versos, descrever e narrar a situação em que o Império Romano se encontrava, tornando, portanto, sua poesia em uma espécie de ameaça ao poder que não aceita questionamento. Uma vez que a poesia é, por sua própria natureza imaginativa, uma forma de destituição da soberania, já que permite a fuga da realidade imediata e até mesmo a fuga da realidade social, tornando os sujeitos insubordinados ao poder instituído e constituído ao redor desse sujeitos, o poder soberano odeia-a e expulsa-a.

Todavia, perceba-se que, se pudéssemos entrevistar William Faulkner ou James Joyce, eles nos responderiam com a maior clareza, sem padecerem de qualquer espécie de loucura. Em outras palavras: a obra de arte começou a padecer no altar da religião secular que veio substituir a religião sobrenatural e mística que dominava o mundo até aquele momento.

Também o cinema passou pela mão de diretores (surrealistas?) que conseguiram desmontar a forma narrativa fazendo filmes que não possuem enredos, como se fossem suítes sinfônicas ou poemas líricos. Todas as artes, portanto, foram destronadas de sua matriz figurativa, ou, se pudermos inventar uma expansão de significado da palavra, de sua matriz realista.

Digamos realista porque há uma espécie de preconceito ocidental que vincula o realismo ao figurativo: o preconceito do símbolo1.

Uma das maneiras modernas de se enfrentar essa relação estabelecida vem desestabilizando-a e estabelecendo outras relações. Portanto, a alegoria, com seu estabelecimento de relações não concebidas previamente, e a desfiguração, com suas várias maneiras possíveis, como o abandono da rima na poesia ou como a escolha de comparações inesperadas, têm papel central nesse processo.

Também a prosa passou por estratégias de desfiguração e alegorização, como os enredos de Kafka, fábulas sem lição de moral ao final, sem moral da história, ou como os romances de William Faulkner, em que não há uma perspectiva verdadeira, apenas uma composição em mosaico ou free jazz, a qual já não permite o agregado coerente de uma totalidade, desfigurando a realidade ou reduzindo-a a mera figura de si própria, uma cópia de segunda mão, deformada e parcial.

No entanto, a obra de arte foi sacrificada também no altar do comércio. O que se sacrificou, nesse caso, foi o intuito artístico e o pertencimento a uma continuidade histórica, cultural, social, de desenvolvimento humano. Em vez de os artistas comerciais trabalharem de acordo com a estética de seu tempo e respondendo aos problemas de seu tempo, preferiram trabalhar repetindo os valores de seu tempo, como devotos dos ídolos, idólatras mesmo, anestesiando e cegando a população para seu próprio assujeitamento. É claro que não supomos que William Faulkner é um escritor do realismo socialista ou de uma crítica anarquista ferrenha da sociedade de classes altamente dividida dos Estados Unidos. Dizemos muito simplesmente que alguém que leia honestamente, que de fato se entregue à experiência bastante agoniada e sufocante de ler um romance como O som e a fúria ou Enquanto agonizo, essa pessoa sairá transformada, não será a mesma que começou a lê-los, seu vocabulário mudará, sua relação com a língua mudará, seus sentimentos mudarão, sua gramática e seu repertório mudarão.

O filme, por custar muito caro para ser produzido, também foi autorizado a render muito lucro caso alcançasse muitas pessoas. Assim, o cinema foi uma das artes mais sacrificadas no altar do dinheiro, tendo de se convencionar, tornar-se entretenimento, para sobreviver. Porém, mesmo nessas condições adversas, o cinema continua uma arte possível, assim como a literatura, que está se afogando no oceano de textos medíocres hoje.

Por isso, ainda há muito a se explorar na influência dos artistas sobre outros artistas e no poder transformador da arte na sociedade, mesmo que estejamos vivendo em um tempo em que há cada vez menos exemplos para justificar essa crença. Para muitos, ler a poesia de Homero ou de Virgílio ou de Ovídio tornou-se uma espécie de distintivo social e cultural, algo como um broche ou uma plaqueta dizendo “sou melhor que você porque li os poetas clássicos, aqui está a prova de minha superioridade cultural e intelectual”. Entretanto, apesar de subordinar esses autores a esse comércio em que seus textos servem apenas como moeda de circulação e uma espécie de troféu, existe para esses leitores a possibilidade marginal, porém sempre presente, de se transformam através dessa leitura. Também é possível que um poeta já estabelecido encontre nesses antigos inspiração renovada, alguma maneira de transformar sua poesia em algo que responde melhor ao presente, um impulso de modernidade soprado desde o passado rumo ao futuro.


  1. Aquela forma que partilha alguma característica com o simbolizado, tornando o símbolo em uma espécie de extensão privilegiada do simbolizado, alguma maneira de levar o simbolizado ao mundo todo, de estendê-lo além dos seus limites naturais, promovendo-o por todo canto — como uma religião ou idolatria.

sexta-feira, 1 de março de 2024

Especulações sobre o cinema

Ando apaixonado pelo cinema como a forma de arte que expõe o funcionamento íntimo do que os artistas sempre fizeram: uma espécie de corte e a subsequente combinação da coisa cortada, o que se poderia chamar uma redução deliberada. Trata-se de uma espécie de distorção ou deturpação deliberada em que se enfatizam alguns elementos em detrimento de outros, produzindo excedentes de sentido ao se privar o sentido de toda sua nuance material.

Acredito que os diretores-autores mais antigos, os auteurs, dos anos 1920–50, estavam todos muito atentos à função do corte e da combinação na construção do filme. Essa atenção excepcional ao corte e à combinação fazia com que compreendessem os níveis estruturais em que a narrativa se estabelece. Aqui, é claro, posso utilizar o termo metanarrativo referindo-me à estruturação da narrativa, aos elementos suprassegmentais em que a história se constrói para o espectador.

Essa consciência apenas a atingem o crítico aguçado e o artista que estuda os predecessores. O espectador leigo, passivo e completamente entregue ao filme, não compreende, assim como o leitor que apenas vira páginas e não pensa naquilo que lê.

Parece-me que o cinema é uma forma de arte que consegue pressurizar o tempo, consegue comprimi-lo em uma espécie de líquido que flui de uma tomada à próxima, de um ângulo da câmera ao próximo — de uma visão à próxima. Varia-se de um ritmo acelerado a um desacelerado numa perseguição de carros, passando-se a um diálogo, um toque de mãos, uma janela. Toda essa combinação faz com que o tempo torne-se uma espécie de líquido, que é comprimido ou expandido na tubulação que constitui as cenas, umas após outras.

É como se o cinema fosse não apenas a arte da imagem em movimento acompanhada do som (muitas vezes o som jaz subordinado a essa imagem, porém existem exceções), mas também, talvez até mais que a imagem em movimento, talvez o cinema seja a arte do tempo, cuja matéria-prima é a própria temporalidade.

Acredito que todas as artes narrativas, como literatura, teatro, dança, música e cinema, podem trabalhar o tempo, mas o cinema, pela maneira passiva com que nós o engajamos, permite a manipulação do nosso tempo interno. Entretanto, como somos seres orgânicos, nossa temporalidade sempre se regula através de ritmos. Já falei disso algumas vezes e é uma hipótese que carrego com muita convicção em meu coração, é algo em que acredito de maneira ferrenha: temos o ritmo de salivar e o ritmo de deglutir a saliva, abaixar e levantar a mandíbula, descer e subir as pálpebras para piscar, inspiração e expiração, uma perna após a outra na caminnhada, sono e vigília, fome e saciedade, isolamento e convivência social, e temos também o ritmo do pensamento, da formação de imagens (sensibilia) mentais, que é regulado através desses ritmos fisiológicos e também os regula.

Todavia, a regulação biorrítmica dos tempos internos (memória, imaginação, comunicação, interação) não se dá de maneira consciente, senão inconsciente, pois é na inconsciência que vive o animal do humano. Portanto, o cinema é a arte que nos põe em contato direto com nossa animalidade constitutiva, o que não é dizer pouco, pois era ao controle disso que Aristóteles visava ao explicar a teoria da catarse no teatro antigo. Em outras palavras: o cinema é uma arte eminentemente política e social.

No entanto, o cinema só consegue alterar ou afetar essas camadas inconscientes quando toma o tempo, como a literatura toma o tempo, é dizer, quando demora. Mesmo que as tomadas do filme sejam todas breves e sucedam-se rapidamente umas às outras, é preciso que o tempo que se pressuriza naquele filme seja um tempo lento, quase geológico, porque apenas o tempo geológico, das mudanças significativas da natureza, será capaz de mudar o ser humano (que é, antes de tudo, um animal, um ente de natureza).

A literatura, por suposto, trabalha com esse tempo lento porque trabalha com as línguas verbais, que são todas muito antigas e muito lentas, mesmo que os linguistas históricos classifiquem-nas como línguas modernas; são arcaicas para nós porque dizem respeito à nossa infância e à nossa introdução no mundo humano, ou seja, existe algo da pré-história humana que ocorre repetidamente a cada vez que uma criança adentra a linguagem, a cada vez que um infante torna-se falante.

Mas não há garantias de que a linguagem audiovisual, cinematográfica, guiada primariamente pelo visual, seja capaz de atingir esses ritmos da natureza que organizam e, de certo modo, antecedem o tempo1. Essa falta de garantia significa que o cinema é uma aposta ou um risco, mas também implica que o cinema comercial reforça certa animalidade sociabilizada do humano urbano moderno. Esse ser humano moderno e urbano é um ser domesticado no pior sentido possível, está adestrado para receber recompensas quando atende aos sinais com que lhe acostumaram. É um escravo da semiose já estabelecida, uma máquina orgânica de repetição de signos, uma fábrica ambulante para a produção e repetição do mesmo.

Se há grande arte, essa é capaz de revirar o subsolo inumano que habita o humano e em que o humano habita e essa arte fornece-o como uma espécie de matéria-prima para que o humano remodele sua vida. Promove novas relações dos sujeitos entre si e consigo próprios. Porque a grande arte, seja um poema narrativo sobre a guerra, escrito há dois 2500 anos, ou um filme sobre suspeitas e acusações jurídicas, lançado há poucos meses, a grande arte diz respeito às relações. Sejam as relações entre seres humanos, as relações entre humanos e não humanos, as relações dos seres consigo próprios (sua interioridade) ou até as relações entre os entes não humanos, como as máquinas, a natureza, a arquitetura e as próprias artes.

Como a grande arte diz respeito aos relacionamentos, também é capaz de propor novos relacionamentos e reconfigurar as relações já existentes. Isso significa que a arte é eminentemente política, mas não diz respeito à política institucional de cada época, e sim à politicidade2 que persiste ao longo da história e caracteriza o ser humano como animal social e político. Essa compreensão do ser humano já estava presente na obra de Aristóteles; seria o estagirita um dos precursores do cinema, junto aos irmãos Auguste e Louis Lumière?

De um modo ou de outro, volto à ideia de ritmo, porque acredito que todas as artes (que têm alguma relação com o tempo) caracterizam-se pelo ritmo.

Creio que o ritmo seja o elemento unificador das artes que se distendem no tempo, como a poesia, a prosa, a música, a atuação, a dança e o cinema. Se distingo teatro e cinema, faço-o porque travam relações diferentes com a presença dos espectadores e com o tempo.

O ritmo fica explicitado na música, na dança e na poesia, mas isso não quer dizer que esteja ausente da prosa, do teatro (quando esse não é musical) e do cinema. Pelo contrário: por estar presente de maneira pouco perceptível, ou o que poderíamos chamar insensível (fazendo um trocadilho), permite com que seja mais profundo em suas raízes e mais eficaz em seus efeitos organizadores do inconsciente.

Com a invenção do cinema, começou-se a sonhar de maneira pública (mas não coletiva) e explícita. Esse último ponto cria um problema sério e difícil de solucionar, pois o sonho precisa sempre ter alguma coisa implícita para que permaneça fazendo os efeitos que, como sonho, deve fazer. Em outras palavras: o sonho precisa ter conteúdos latentes para continuar sendo sonho, pois apenas quando os conteúdos latentes deslocam, recortam, transformam e recombinam as memórias do dia é que há sonho com a lógica própria de sonho, sua estrutura típica. Quando o sonho passa a um espetáculo público e explícito, perde completamente seu estatuto onírico, tornando-se isso mesmo, mero espetáculo, simulacro do material onírico, uma realização incapaz de produzir os mesmos efeitos daquilo que imita.

Entretanto, dá-se essa cópia de segunda mão apenas quando o cinema torna-se entretenimento, esvaindo-se seu aspecto artístico originário. Pois, mesmo o cinema mais antigo, como Intolerância, de Griffith, voltado todo ao dinheiro, ainda era um filme capaz de comover e produzir mensagem, que atravessa o tempo desde quando o filme foi lançado até hoje.

Valendo-me do vocabulário dos românticos, diria que o cinema entretenimento é absolutamente incapaz de alegorias e está totalmente entregue ao símbolo. Quer dizer: cada cena representa a si mesma e seu sentido é óbvio — uma instrução para o espectador, esse cãozinho disciplinado. Assim como a teoria romântica do símbolo afirmava que esse mantém relação direta com aquilo que simboliza, como o crucifixo repete a forma da cruz em que Cristo morreu, é dizer, há alguma semelhança que garante a continuidade entre o símbolo e o simbolizado; por sua vez, a alegoria é capaz de relacionar elementos que, a princípio, não relacionaríamos, fornecendo liames não lógicos ou não naturais para o pensamento, produzindo associações criativas e originais ao propor proporções ou equivalências entre termos que, de antemão, não pareceriam comparáveis entre si.

Através dessa ferramenta, o cinema e a literatura podem propor novas relações ou reconfigurações das relações existentes, novos parâmetros para as relações existentes. A alegoria talvez seja o grande recurso da arte moderna e não mais o símbolo, pois o símbolo pertenceria à arte clássica, que espera o mundo em ordem e deseja afirmar uma ordem como a grande ordem natural, enquanto a alegoria percebe que o mundo tem a ordem que nós lhe impomos e permite que tornemos explícita essa imposição, possibilitando o questionamento da ordem atual e a abertura para ordens alternativas.

A forma extrema da alegoria ocorre com a desfiguração do próprio ato de figurar, levando a distorção até o irreconhecível, deturpando as figuras com que formamos nosso imaginário e povoamos nossa memória, expondo o imaginário e a memória operando detrás dos panos do memoriado e do imaginado. Isso parece impossível, já que suas ações estão intimamente ligadas ao conteúdo sensível, pois a memória de algo sem preenchimento sensível seria como uma equação puramente algébrica.

Acredito que o corte e a montagem, o processo de edição cinematográfico, seja talvez o processo mais importante na narrativa moderna e contemporânea, porque pode se tornar invisível ou insensível, mas permanece organizando a sensibilidade.


  1. Ainda que só possa existir ritmo quando há tempo no sentido metafísico de uma espécie de substância, substrato ou meio indistinto que permite a sensação de passagem e movimento, transição e mudança (assim como o espaço).

  2. Relacionalidade institutível, mas não necessariamente já instituída, apreensível, formalizável, realizável, mas não necessariamente já realizada e constituída.

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Uma questão de atração aos grandes nomes

A cortina queima o vidro,
a janela chateia-se.
Meia-noite.
Fora, os vermes ao luar.
Soa uma hora.
O amor dependurado numa árvore
como subindo escada.
A hora estanca.

Intriga-me a gravitação exercida pelos grandes nomes (notadamente sobre os acadêmicos). Inclinação infeliz, pois os cega para todas as sombras que têm diante dos olhos fartos de tanta luz. Essa é mesmo a distopia capitalista contemporânea: tudo banhado a fosforescência 24h, nenhuma treva. A atenção às sombras é a própria crítica (é dizer, o contrário da ingenuidade): descobrir quanto não se enxerga naquilo que se vê.

Mas como treinar a vista cansada para ver mais precisamente aquilo que não se vê? Quiçá começar pela característica: não se vê não por invisibilidade, mas por tornar-se acostumado à visão de tanto se ver. Reeducar os sentidos, a sensibilidade.

Estejamos alertas, portanto, ao cansaço e ao costume da sensibilidade. Admitamos, portanto, que a semiose interminável que nos cerca também nos cansa.

A sensibilidade, para permanecer sensível, terá de permanecer atenta sem cansaço, o que parece impossível, pois toda vigília demanda o sono para seu reparo.

Aí está uma das soluções do problema: dormir e sonhar. Se dormirmos (e sonharmos), regeneraremos a fina membrana da sensibilidade, esse delicado órgão imaterial com que medimos o mundo e a nós mesmos, nossa cartografia interior.

Será tarefa fácil estabelecer novos conceitos e categorias nas ocasiões adequadas quando a sensibilidade estiver revigorada, pois também incide sobre a percepção do momento oportuno.

Relaciona-se, portanto, com os ritmos internos e externos, é dizer, com o tempo. Propicia a inserção do sujeito no fluxo dos acontecimentos e estimula sua criatividade nas maneiras de barrá-lo, como cortá-lo ou suspendê-lo, mesmo que apenas durante um gesto ou um instante.

A sensibilidade exausta com que vivemos não precisa tanto de olhos, de vistas, perspectivas, mas de danças, texturas, arquiteturas — toque.

Referir-se, portanto, ao tato de alguém (“ele tem tato”) como sua capacidade de agir e reagir adequadamente a um ambiente emocional concreto [inglês mood] quão háptico e quão natural, é dizer, quão orgânico, quão instintual, da ordem dos órgãos psíquicos, capacidades invisíveis, deve ser esse feito.

Falta tocar — e tocar-se — àquele que circunda apenas os grandes nomes (e vê os pequenos nomes como meros comentaristas, seguidores, adeptos, cultistas, etc. dos grandes nomes). Falta-lhe essa relação quase animal (instintual) com a matéria em questão — o pensamento.

Pensar requer ver, sim, é claro, a própria ideia de ideia1 deriva-se daí, as perspectivas — pontos (geometria) de vista —; porém, depende igualmente da matéria, da maneira, da mão, do toque, do tato: tocar e ser tocado, reciprocidade que, pace Didi-Huberman, não sofre correspondente na visão.

Ainda que hoje, sim, sejamos até mais vistos do que vemos (câmeras de segurança, live streams, reconhecimentos fotográficos, etc.), no contato podemos exercer força sobre o objeto assim como o objeto pode exercê-la em (ou contra) nós.

O contato corrobora a existência do corpo e permite operar e decidir desde o critério do impacto.

O reino das imagens sob o qual padecemos ruma ao desaparecimento do corpo. Ama a abstração como salvação, promovendo as fantasias de upload da consciência, como se o animal sensível pudesse se reduzir ao raciocínio calculativo-representacional.

O império imagético se engana e nos engana ao querer reter a vida na imagem, ignorando que a vida só se delimita em imagens quando cede seu espaço ao trabalho da morte2.


  1. Provavelmente partindo do proto-indo-europeu *wéydos (“ver, imagem”), de *weyd- (“ver”), cognato do sânscrito वेदस् [vêdas] (“conhecimento, ciência; riqueza, propriedade”).

  2. As imāginēs (“semelhanças, aparências” — de imāgō, “imagem, imitação, estátua, representação” como também “fantasma, aparição”) dos mortos retidas em suas máscaras mortuárias, como a máscara dourada com o rosto de Tutancâmon ou a máscara de bronze com a face de Napoleão.

Das Kino

O cinema é feito

para aguardar violência.

Para si, o ato é uma ressonância

desviada.


Há apenas Cinema;

quase nenhum filme.


A técnica e a ciência

são-lhe intrínsecas.

O cinema dá conta

— do valor —

e aumenta seu poder

(de decisão).


O verbo, no cinema,

é visível e audível

(em direção à explosão).

É aqui que entra

a palavra

escrita.

Já que o cinema é escrita

e leitura

(e apagamento).


O cinema alcança

e avança

a História

que dissimula seu atraso.


A história desvia-se

da história

com um "s".

(História(s).)


A multiplicação de histórias pode

aproximar a História,

mas perde o Cinema.

O cinema precisa perder a si próprio?

Pode ser.