domingo, 22 de outubro de 2017

Uma reflexão social após pequeno debate sobre a estampa duma camiseta

"Mas as pessoas preferem as roupas genéricas e as dores de tumblr. Mais ou menos isso.", respondeu-me minha amiga, após uma breve discussão sobre o sentido do escrito numa camiseta (a quem interessar: I don't believe in humans, a infame estampa).
Esse breve diálogo, refletindo sobre o sentido de believe enquanto verbo epistemontológico, ou melhor, enquanto epistemetafísico, fez-me retornar a uma minha hipótese ultrarrecente pós-leitura dum blog gringo sobre metafísica: é preciso explicar o mínimo suficiente. Quanto é o mínimo suficiente não me interessa definir, pode ser mesmo o máximo-além-do-possível, não me importa, mas é preciso ter (sempre) por horizonte de trabalho o mínimo suficiente. Por quê? Ele dá conta exatamente do mínimo para que trabalho subsequente seja feito e, simultaneamente, ele é suficiente para que algum trabalho subsequente seja feito, mas não qualquer trabalho subsequente. Ele fornece substrato (ground[ing]) para o conceito, a categoria, ou o que quer que se esteja trabalhando, estabelecendo assim a  (mínima) ecologia glocal (global+local) do trabalhado, permitindo-o florescer, frutificar, reproduzir ou mesmo extinguir(-se). É um respeito com meio (ambiente, habitat) do trabalho e do trabalhado, bem como uma herança em ação. Mais sobre isso nalgum (momento) futuro.

sábado, 14 de outubro de 2017

(meta)crítica da razão marxista(de internet)

Anteontem, ontem e hoje, alguns amigos disputaram algumas questões na internet. Um deles me enviou muitos textos marxistas, especialmente de Vladimir Lênin, Joseph Stálin e Mao Tsé-Tung. Os textos não são de todo ruins, são úteis e podem servir de abertura à educação do povo, das massas, dos proletários, por sua simplicidade, brevidade e concisão. Mas não servem de base teórica para um estudo aprofundado e digno de nota. O que quero dizer com isso?

Quero dizer o que sucedeu: postando um trecho de Slavoj Žižek, desceram a criticá-lo ferrenhamente, sem nenhuma apreciação pela verdade ali contida – resumiram-se a rechaçá-lo como "intelectual pequeno-burguês" e "reacionário" sem dedicarem uma só linha ao seu pensamento exposto. Vejamos qual ou quais problemas essa atitude comporta.

Pontualmente eles estão jogando fora (excluindo) um pensador por causa de sua classe social (mais adequadamente socioeconômica), a qual estaria explicitada em seus textos e falas (públicas), de modo patente e óbvio o suficiente para uma rápida checagem numa rede social bastar a classificá-lo, julgá-lo e executar a cisão. Mas que cisão é essa?

A cisão em questão é uma divisão conhecida em toda a filosofia e mesmo fora dela, (nós) leigos fazem(os) o tempo todo, trata-se do bom x mal, certo x errado, verdadeiro x falso, válido x inválido, e toda sorte de similares. O ponto nevrálgico, aqui, é: essa cisão operada por eles é simultaneamente intra- e extra-filosófica, ela acolhe e abandona ao mesmo tempo, tange e aparta. Contudo – veremos como –, a segunda parte dos pares apresentados é mais intensa que a primeira nesses operadores de cisões.

O aspecto extra-filosófico, de abandono, o aparte é mais intenso que o acolhimento, que o intra-filosófico, que o tangível, porque, apesar de partirem dos argumentos žižekianos, não os elaboram e tampouco o refutam dentro do pensamento ou da argumentação, apenas recorrem à classificação socioeconômica e dela derivam a "refutação", que é um puro negacionismo intransigente circular (sem aberturas): "é ruim porque não é proletário; não é proletário porque é ruim", com aparências de não ser circular ou auto-centrado (egoico, egoísta, narcisista?) porque parte dos argumentos – só nas aparências, uma vez que não os toma em conta, não os elabora, não os toca, não os manipula buscando derrubá-los dentro das próprias regras do jogo (ou da brincadeira) do pensamento, apenas nega inquebrantavelmente.

Aqui entra outro ponto, que é crucial à argumentação deles: a metafilosofia que os sustenta. Que quer dizer? Quer dizer que a luta de classes precede a filosofia e qualquer outra forma de argumentação ou pensamento, portanto validando a recusa cega ao pensador esloveno. Essa é uma cisão operada a nível de metafilosofia [N.1], pois exclui de antemão o pensador e todo seu pensamento, sem considerá-lo dentro do pensamento, recusando-o por razões extra-filosóficas, mesmo que parta de algo argumentado por ele, é apenas para validar a exclusão externa e corroborá-la, como se fosse auto-evidente, ou, pelo menos, evidente para os "iluminados do proletariado".

Essa operação de cisão é problemática em duas frentes: a) por um lado, eles sempre poderão aplicar a classificação e operar a cisão metafilosófica de "não é proletário (o suficiente)", invalidando qualquer argumentador e qualquer argumentação, sem a devida apreciação (intra-)filosófica, portanto sem uma refutação propriamente dita, (auto-)validando o negacionismo absoluto; b) por outro lado, demonstra sua atitude de extremo desinteresse na/pela disputa argumentativa, expondo quanto só almejam a hegemonia [N.2] e o controle, em uma palavra: o poder – todos os poderes: burocratismo máximo, controle total [N.3].

Assim, tornam-se dogmáticos – jamais dialéticos (como insistem que são) – não se engajando (em combate mesmo) com a argumentação visando a aufhebung. Dogmatizam Marx (e Lênin e Stálin e Mao e, por vezes, outros; pior, consideram-no o corretor máximo de Hegel, desvalorizando o filósofo alemão sem qualquer consideração, quando ele claramente fez mais pelo mundo do que eles jamais fizeram) e assim o incompreendem profundamente, são incapazes de repetir seu gesto [N.4], pois o esvaziam de sua forma e o abarrotam de seu conteúdo: não sabem subsumir tudo à história como o barbudo fez, inclusive o próprio barbudo, inclusive a si mesmos. Dogmatizar o conhecimento socialista é ignorar as grandes lições de Stálin e Mao, ambos propagadores da necessidade da dialética histórico-materialista em relação a tudo, ao conhecimento não-proletário, proletário, ao próprio partido, tudo, inclusive a si mesmo.

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Poderão dizer que sou (pequeno-)burguês e tudo que escrevi não vale de nada.

[Notas:]

[1] Por mais que toda metafilosofia seja ainda filosofia, uma vez que a filosofia funciona como a linguagem e o pensamento e pode operar sobre si mesma (auto-recursividade) repetidas vezes. O mesmo ocorre com uma metalinguagem, que é sempre já uma linguagem e nunca deixa de sê-lo. Apesar disso o estatuto metafilosófico não deixa de operar nem perde sua válida.

Neste caso, especificamente, tem-se uma redução do filósofo à sua posição dentro de uma classificação sociológica e político-econômica, portanto extra-filosófica e não engajada no debate propriamente dito (daí também não engajada na dialética, ou dialeticamente); há um realismo materialista ou materialismo, como eles chamam, uma espécie de spinozismo reducionista socioeconômico, onde, apesar da existência da matéria, tudo que importa é a economia política e a sociologia, com a psicologia achatada a mero reflexo dessas dimensões "tão obviamente materiais".

[2] Além da óbvia corrida pela hegemonia, expõe como operam a partir de uma e com uma soteriologia secularizada – vendo-se a si mesmos como Messias seculares (mas não imanentes) capazes de transcenderem a "ideologia" e de se posicionarem acima e além dos "erros" dos outros –, onde o proletariado seria o Messias Salvador e o resto das classes socioeconômicas seriam apenas pecadores que precisam de salvação. Não sem motivos dão tanta importância aos pobres, pois há um forte núcleo cristão secularizado, profanizado, o qual jamais será admitido, por causa de proclamações tomadas dogmaticamente, como "religião é o ópio do povo", onde o cristianismo será posto como "ideologia burguesa" ou coisa que o valha. Aqui aparecem o roubo nada velado do pensamento cristão, sua apropriação secularizada, e a teologização que a dogmatização gera.

A teologização opera junto com a cisão negacionista criando um (meta-)conhecimento ilimitado ou sem fronteiras (limitlessboundless), pois pode ser aplicado sem barreiras a todos os conhecimentos e mesmo a quaisquer outras coisas. Essa ilimitação, essa ausência de fronteiras, é o problema da teologia: pode explicar tudo, pois se posiciona acima e além de tudo como determinante de todo o resto. Sem uma delimitação de aplicabilidade torna-se um conceito curinga capaz de ser atirado para todos os lados sem crítica possível, sem limitação aceitável, pois ele determinaria a própria crítica direcionada a si (e.g. este post está determinado por minha posição socioeconômica, sou pequeno-burguês, academicista, <adjetivo>). A ilimitação de aplicabilidade demonstra uma ausência de substrato ou, para chamarmos mais apropriadamente, ausência de grounding, ausência de um chão onde a ecologia do conceito se dá, o conceito não tem um habitat 'natural' no qual se desenvolve e ao qual está mais ou menos limitado ou pelo qual será eventualmente freado e donde poderá ser criticado e realocado, daí se tratar duma teologização dogmática ilimitada (ou sem fronteiras). Todo conhecimento sem substrato (ground) pode ser teologizado e dogmatizado sem fronteiras, porque não pertence a nenhum ecossistema (conceitossistema? psicossistema? conceitosfera?), não tendo um funcionamento minimamente padronizado esperado e um campo ou uma esfera de atuação/aplicação minimamente esperada (e minimamente [de]limitada). Essa ilimitação dá abertura para uma auto-justificativa sem fim, uma vez que é simultaneamente intra- e extra-filosófica, portanto propondo algo (com aparências de) intra-filosófico e (controlando[-o] a partir do) extra-filosófico.

Apesar de minhas afinidades com o pensamento à esquerda do espectro político, a dogmatização é anti-dialética, é a ignorância dos textos mais importantes de Stálin e Mao, apenas para citar dois núcleos do pensamento (ou seriam pensadores nucleares?). Isso não quer dizer que se deva dar ouvidos a qualquer idiota ou a qualquer coisa, mas a rede tramada para (in)validação é muito maior, mais ampla e mais complexa, mais dinâmica também, que o achatamento a "suficientemente proletário" (acertado por um ser "iluminado" que, apesar de tudo, vive sob as mesmas condições dos outros "não-iluminados" os quais ele julga "mui corretamente").

[3] O burocratismo total e máximo, o controle de tudo não passa da falha da crítica ao Estado. Eles, curiosamente, insistirão de forma veemente na natureza burguesa do Estado. Uma jogada argumentativa – falha para sair do controle total – é dizer que o Estado possui uma natureza de classe (socioeconômica), mas não necessariamente burguesa, ou que não precisa ser e permanecer assim eternamente, abrindo brecha para seu burocratismo maximal(ista). Demonstra a ausência de força, quando não de fundamento, de sua crítica ao/do Estado, simultaneamente velando suas intenções controladoras, portanto burocratizantes. Aqui, por exemplo, eles poderiam me chamar de anarquista (como se fosse uma ofensa) ou de trotskista, mas só demonstra sua ambição de classificação infinita e seu negacionismo cego absoluto, bem como sua dogmatização.

[4] Gesto, aqui, é um conceito (in)específico. Significa a repetição do puro ato sem conteúdo, do movimento sem tema, e.g. aplicar a subsunção à história ao próprio Marx e outros pensadores socialistas, aplicar os métodos genealógico e arqueológico de Foucault à obra dele mesmo, etc.

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Um pensamento ecológico sobre ecologia – com um enxerto de R.C.

O inconsequencialismo, mencionado na entrada anterior do site, também aparece nos discursos políticos (contemporâneos, porém melhor localizados como pós-modernos). Cito aqui a postagem de um amigo:

Não se assustem quando virem incongruências absurdas na propaganda (especialmente política), faz parte das técnicas de controle mental induzir seus objetos a gradativamente aceitarem paradoxos, assim os tornando mais abertos a toda classe de absurdos. Aceita-se a incoerência interna do discurso (pois a realidade não aceita paradoxos) para melhor se aceitar a incoerência entre discurso e realidade.
Se você promove a liberdade sexual irrestrita e aberta enquanto condena a hipersexualização das mulheres, não é muito difícil aceitar que não tem problema uma criança tocar em um homem nu. Sem querer cair em reductio ad Hitlerum, lembremo-nos de Hermann Göring: "Se o Führer quer, 2 + 2 = 5!"

Divergências à parte [nota 1], é importante notar o ponto que já argumento há muito: liberdade entendida como libertinagem X reclamações da (hiper)sexualização. A autocontradição é patente, óbvia mesmo. Por que, então, um pensamento ecológico sobre ecologia? Pensemos: a situação em questão trata da ecologia erótico-afetiva do homo sapiens.
A monogamia e a (mínima) contenção propiciam um equilíbrio da/na distribuição das forças e do/no fluxo das energias erótico-afetivas. Daí serem uma evolução psicossocial: se a distribuição sexual populacional do primata em questão é aproximadamente 1:1 em qualquer recorte de tempo (e espaço minimamente) relevante, então a distribuição erótico-afetiva em 1:1 visa o equilíbrio dessas duas forças/energias.
São duas propostas eficientes e eficazes porque remanejam essas forças/energias para outros fins e usos (que não a (auto)satisfação), movimentando e enriquecendo o sistema (energeticamente) – há um excedente de força e energia remanejado para aprimoramento do sistema.
Do contrário – configuração contemporânea do quadro – formam-se pólos que desequilibram o sistema constantemente e desperdiçam forças e energias por sua má alocação e uso sem planejamento.
Como os pólos não são apenas espaciais, mas também temporais, os efeitos do tempo não podem ocorrer e o sistema permanece em desequilíbrio, esvaindo energias e forças úteis, produtivas e cumulativas em tarefas inúteis.
São sistemas impermeáveis a certas formas de reestabilização, então a busca deve ser e permanecer no campo ecológico crítico, que é o mesmo que ético.

[nota 1: notadamente sobre a realidade de paradoxos, e.g., a necessidade da contingência.]

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Possibilidade, promessa, (in)consequencialismo e autossubjetivismo


Dentro de uma conversa onde eu convergi as noções de promessa e possibilidade, ou, mais especificamente, futuros possíveis a partir de relacionamentos humanos e suas atitudes, perguntaram-me: "qual o sentido de fazermos uma promessa pro futuro se estamos em constante mudança?" – A isso, antes de elaborar uma resposta para essa pergunta em específico, no transcurso da conversa, comentei que promessas fazem mais sentido que "meras possibilidades", pois podem não ser cumpridas, mas permanecem mais humanas que simples possibilidades, mais honestamente humanas, menos pretensamente neutras, ao que a pessoa acrescentou: "Podem não ser cumpridas, mas isso não as torna incertas. Seres humanos são incertos. Sabe, as falhas humanas não alteram o sentido de "promessa"". Então a pessoa emendou mais uma sequência: "se estamos em um relacionamento e te prometo ficar pra sempre, ok, há uma promessa. Se não, não existe esse compromisso. Nem vejo sentido pra existir, sou bem mais algo verdadeiro que eterno. É um pensamento bem simples, na verdade. Detalhe: não existe compromisso com essa tal eternidade. Não torna o relacionamento menos valioso, diria até que é mais realista. Que não seja eterno, posto que é chama."

Aqui quero tomar dois rumos: 1) responder à pergunta específica de por quais razões convergir promessa e possibilidade (de futuro); 2) argumentar brevemente como o encerramento ("não existe compromisso com essa tal eternidade / [isso] não torna o relacionamento menos valioso [...]"). Sigamos em ordem inversa, portanto: essa argumentação falida é apenas uma tentativa da comunicante de livrar-se da responsabilidade ético-moral que lhe recai por fatos passados que vivemos num relacionamento nosso. Jurar algo e não cumpri-lo constitui, sim, defecção (simultaneamente abandono e falta, como a palavra indica). Portanto trata-se de mero inconsequencialismo, tentativa falida de "limpar a barra" de histórias passadas concreta e evidentemente mal vividas, em/com defecção. O erro ético-moral de si (e, portanto, o autossubjetivismo) tomado como paradigma avaliativo é só uma estratégia argumentativa (obviamente falida) de justificar a própria vida em erro. O erro fundante aqui, ou fundamental se assim se preferir, é a desresponsabilização (da/sobre a própria vida) – essa "fenomenologia barata" que leva (não "levará", mas já leva) a uma flutuação pretensa e falsamente infinita da personalidade (dos gostos, das atitudes, a "liberdade" [na verdade libertinagem], das escolhas) na verdade só esconde um desejo por customização infinita e irrestrita que oculta uma ausência quase completa e total de resiliência perante a adversidade, desejando e esperando que o mundo se conforme aos caprichos do eu pós-moderno confuso e liquefeito.

Respondendo à pergunta específica e firmando o primeiro ponto: o sentido de convergir ambas as noções é: toda atitude humana – toda em sentido forte – é uma atitude ético-moral, i.e., decide por um futuro dentre todos os [futuros] possíveis. E todo ser humano – ou pelo menos a vastíssima maioria que não sofre de lesões cerebrais, ou problemas de neuro-psico-desenvolvimento, etc. e tal – tem a capacidade de compreender isso, portanto de viver de acordo com isso [nota 1]. Assim sendo, toda atitude é sempre uma promessa. Desresponsabilizar as pessoas nesse sentido, nessa dimensão, gera uma série enorme de problemas com os quais já estamos lidando hoje [pelo menos alguns deles], desde surtos de suicídio, até problemas ecológicos [nota 2], passando por terrorismo, subempregos e desemprego, culto à celebridade, banalização da violência, consumismo, efemeridade das relações, entre outras coisas.

[nota 1: eu chamei 'saber' na primeira versão da resposta; aqui já chamo 'isso' para não me avançar demasiadamente, ainda que não sinta problema algum, em chamar logo 'verdade'.]

[nota 2: originalmente: "problemas ecológicos de larga escala", mas compreendi que todo problema ecológico é de larga escala. Em verdade, a ecologia tem provido boa parte do meu pensamento contemporâneo, ou da minha revisão do meu pensamento que culmina em sua versão contemporânea.]

Potência do tempo

A potência fundamental do tempo permanece o mistério.
Se é sempre espaço-tempo e se há planificação do(s) espaço(s), então restitui-se ao tempo o que lhe é de direito: o mistério.
Não enigma, charada, mas mistério.