domingo, 12 de novembro de 2023

A Lenda diz que o vizinho

Sobre Mário Quintana

A Lenda diz que o vizinho
será trazido ao estatuto
de Semelhante,
mas a Palavra
só encarna o Poder
de Decidir em si;

Quem, então, o Voo
sem asas das aves
alcançará em vindo?

Tudo deixa em rastros
sua Língua e assim
Participa, mesmo que
Nada diga de si.

Eu não sou
e não sei
o que é
Ser.

domingo, 17 de setembro de 2023

Sobre um parágrafo de Gustave Flaubert

Sobre Mário Quintana

Mesmo que não comunique nada, o discurso representa a existência da comunicação; mesmo que negue a evidência, afirma que a fala constitui a verdade; mesmo que se destine a enganar, especula com a fé no testemunho. […] O inconsciente é a parte do discurso concreto, como transindividual, que falta à disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de seu discurso consciente. (Lacan, 1998, cap. “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise — 1953”, pp. 253, 260)

Literatura, subjetivação e o âmbito simbólico

O que a poesia faz ao sujeito? Essa pergunta eminentemente moderna transforma as ordens poéticas até então estabelecidas (ordenações estéticas e epistemológicas). A partir dessa questão, compreende-se que o poema torna-se em um plano simbólico de subjetivação, ou seja, um dos âmbitos de produção de subjetividade (Lacan, 1998, pp. 292, 302 et seq., 2021, cap. Ⅴ et seq.). Misturando os sujeitos — sujeito poético (ou diegético), sujeito poeta (ou autor), sujeito leitor —, a poesia não se reduz ao seu tema ou assunto1 e atua na subjetividade em geral.

domingo, 10 de setembro de 2023

Ritos, de Nicanor Parra, traduzido por mim

Ritos

De Canciones rusas (Santiago: Universitaria, 1967).

Toda vez que retorno
para meu país após uma longa viagem,
a primeira coisa que faço
é perguntar pelos que morreram:
todo homem é um herói
pelo simples fato de morrer
e os heróis são nossos mestres.

E em segundo lugar, pelos feridos.

Somente após, não antes de cumprir
esse pequeno rito fúnebre,
eu me considero com direito à vida:
fecho meus olhos para enxergar melhor
e canto com rancor
uma canção do começo do século.

sábado, 9 de setembro de 2023

Sobre Mário Quintana

Sobre Mário Quintana

Escreveu Buffon que o cavalo é um nobre animal. Bobagem… Nobre animal é o poeta!1

Mário (de Miranda) Quintana, 1906–94, foi sofisticado demais para o modernismo paulistano. Exercitou aquela poética do cotidiano, da singeleza aguda que se celebra, hoje, na memória da pena de William Carlos Williams e que, a partir desse poeta, influenciou da Beat Generation até a New York School, de Robert Lowell e Allen Ginsberg a Charles Olson, Robert Creeley e Denise Levertov, passando pela San Francisco Renaissance de Gary Snyder. Com seus versos fortemente objetivos, carregados da concretude das coisas, aproximou-se da sofisticação dos extensos símiles da Ilíada, bem como da justaposição de imagens da poesia do leste asiático.

domingo, 3 de setembro de 2023

Sobre William S. Burroughs

Estou aqui para lhe mostrar algumas das coisas que você chama de realidade.
William S. Burroughs

Em um texto de 19731, Burroughs desenvolveu este mito: as palavras seriam um tipo de organismo viral; esse organismo parasitaria seu hospedeiro portador (o macaco anterior ao signo) e causaria uma mutação biológica caracterizada por uma “modificação das estruturas da garganta interna”; o efeito: estrangulamento, “frenesi sexual”, alta mortalidade e transmissão genética, por meio das fêmeas sobreviventes, da “nova estrutura da garganta”.

Essa fábula relembra a violência que prende o ser falante à socialidade da troca verbal, mas deixa na glote, como o rastro de um remorso “biológico”, o nó da angústia que está na origem do impulso de escrever (para trabalhar nesse nó e nessa fábula). Em ambas as extremidades da história da fala, há um estrangulamento traumático. Por um lado, o drama do corte inaugural que funda a socialidade tagarela da espécie; por outro, o controle dos “sujeitos” pelos discursos normalizados, o emaranhamento dos corpos na rede da gramática, a submissão aos nomes que constituem a alucinação conhecida como “realidade”.

O mito burroughsiano do “vírus da linguagem” é um tipo de logogonia patética. Retrata a doença que transforma o pequeno homem em um animal falante, arrancado do nada da coisa silenciosa emparedada pela necessidade (fome), mas jogado ao mesmo tempo no inferno da “antropofagia comunitária”.

Breves anotações sobre o Barroco retiradas de um diálogo com um amigo

Percebo que o domínio da linguagem me convoca nas leituras “inúteis” (agora) dos barrocos e dos oradores antigos. A maneira como não fingem sinceridade, mas admitem a artificialidade do ofício literário sem, contudo, mentirem, convoca-me. Elaboram uma verdade mais universal porque mais literária, trabalham o material incandescente do vulcão visceral da vida. Nem todos escreveram rebuscado, porque não é isso que importa, ainda que alguns preferiram, sim, as palavras retumbantes. Importava um modo próprio de significar e simbolizar essa bagunça chamada vida, mas significar e simbolizar querem dizer comunicar, dar forma transmissível, comunicável, comunitária.

domingo, 27 de agosto de 2023

Minha resposta a uma discussão com alunos do Direito sobre o lugar do estilo no pensamento sobre a literatura

Arte é contato com o inumano que habita em todos nós: seja o animalesco e abjeto infra-humano — como em Lautréamont, Clive Barker, Artaud, Pierre Guyotat —, seja o angelical e santificado sobre-humano — como no salmista bíblico, em Rōdhakī, Hāfez ou Petrarca. Estilo, portanto, não é uma tal ou qual forma da expressão individual, externalização da alma, exposição de uma suposta interioridade, mas a construção de uma forma justa (justa e correta, como no Direito, justa e adequada, como na Moda). Essa forma é justa porque é homóloga ao mundo, segue a mesma lógica do mundo (homo-logos): tão obscura, densa e impenetrável quanto a matéria do dia. O estilo, portanto, é a maneira que se encontrou para fazer com que as coisas — as ideias, os seres, os momentos — durem no tempo, o que faz com que a linguagem também endureça para permitir essa duração. Mostra-se, assim, como a chance de um leitor colocar seu próprio tempo transversalmente no tempo cronometrado do trabalho e da rotina.

terça-feira, 30 de maio de 2023

Uma tradução de C. Milosz

Castelo de um sonho

Czeslaw Milosz

A cidade era semelhante a um castelo, compacta, densa, com várias camadas, como os edifícios de Piranesi. Predominavam os tijolos vermelhos — significavam civilização — e, do outro lado do rio, começava a selva. Ele marchou rapidamente; seus companheiros, um ele e uma ela, mal conseguiam acompanhar. De repente ele percebeu como a abstração se transforma em realidade: os aromas picantes das lojas, o vapor sedutor das cozinhas que passavam, as enormes tábuas de presuntos, as tabernas cheias de bebedores de vinho… Ah! Devolver-se aos sentidos, apenas isso e nada mais.

Outra tradução de S. Beckett

O penhasco

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Minha tradução de S. Beckett

Eu desisti antes de nascer