sábado, 12 de setembro de 2015

Algumas Considerações

            Pretendo aqui explicitar algumas considerações que me parecem necessárias, seja por força interna ou externa. E começo pela seguinte epígrafe, a qual concebi secando a louça, há pouco: “se eu entendesse o que você está falando, você não precisaria ter perguntado se estou entendendo; nem nunca entendo, é como se falassem uma língua estranha ao meu redor, ainda que as palavras soem como as mesmas que eu digo, são novas, diferentes, nenhuma delas é nossa, mas minhas ou deles”.
            Um dos pontos mais fundamentais da contemporaneidade é ditar que somos formados socialmente. Ok, tudo bem, eu aceito, talvez eu seja fruto de uma série de instâncias culturais (e com isso quero dizer históricas e sociais, porque não há cultura instantânea, tampouco individual), mas a pergunta permanece: por que eu percebo “livro x” como melhor que “livro y”? Se meus gostos são formatados de fora e sou por eles atravessado, então que mecanismo eles utilizam para se disfarçar assim tão bem que não os distingo de mim mesmo? E por que eu me sinto, sim, sempre, individualidade, não uma amálgama indistinta dessas instâncias que me compõem? Por que me sinto eu e não elas?
            É importante pensar nisso porque se observa duas opções: 1) essas instâncias possuem métodos absurdamente competentes de nos engendrar e enganar a tal ponto que não nos confundimos com elas, ainda que sejamos uma amálgama delas; 2) há um furo nessa explicação e todos esses movimentos “ideologizantes” (que reducionismo horrível fazem de toda a Arte!) estão ignorando algo que, portanto, não explicam (exatamente por ignorarem). Quero tentar explorar essas duas possibilidades.
            Na primeira possibilidade há um mecanismo muito esguio que nos escapa à percepção corriqueira e à análise profunda em todas as instâncias culturais, uma engenharia arquitetada para sermos únicos apenas na medida em que somos o atravessamento de toda a série cultural que nos atravessa e não outra (se fosse outra, seríamos outra pessoa e não quem somos, o que é conflitante, outra vez, com a experiência individual e com a noção de unicidade de cada sujeito, isto é, que cada um é único). Deste modo é estranho pensar na importância que alguém tem para a história, nisso eu gosto muito da ideia, veja-se minha iconoclastia. Problemático se torna quando percebemos que qualquer um teria sido Hitler e qualquer um teria sido Beethoven. Então por que não são? Conflitante outra vez.
            Na segunda possibilidade acrescenta-se um elemento que é capaz de explicar a unicidade referida anteriormente, porque elemento que escapou à vertente anterior, chama-se a ele experiência (individual). Cada um é único na medida em que só a si mesmo refere a experiência, a vivência que tem do mundo, de tudo que já vivenciou (e também o que não vivenciou compõe sua experiência, nunca nos esqueçamos de que o não escrito é a segunda parte do texto, sempre, a ausência é sempre parte da presença). A experiência é única a cada um, por isso irmãos gêmeos univitelinos que sejam criados à mesma maneira dão em pessoas muito diferentes, porque experienciam o mundo de maneiras diferentes (isso também nos refere a efeitos mínimos no presente que, a longo prazo, se tornam desvios imensos, uma espécie de “teoria do caos” [com muita reserva optei pela expressão] aplicada à vida humana, quer caos maior?).
            Isso tudo, todavia, é ainda dançar conforme a música, é muito bem possível negar as hipóteses (ambas sob a sombra das leituras de mundo ideologizantes já referidas) e afirmar que a experiência de mundo individual é realmente a única válida (portanto “livro x é melhor que livro y” é verdade [mas não sempre verdade], não apenas para mim, mas é assim que é, porque é assim que experiencio a situação referida, é assim que se me configura o mundo).
            Também é possível afirmar que a verdade é fruto da coletividade, então ambos os livros só serão bons se forem consumidos maciçamente. Não assumo essa hipótese nunca porque, (in)felizmente, é muito fácil e forte observar a formação do gosto pessoal a partir das instâncias sociais (uma delas sendo o próprio consumo maciço de algo, a coletividade). O que não aceito, porém, é a determinação absoluta desse gosto pessoal como apenas fruto das instâncias que o formam (se assim o fosse ninguém jamais mudaria de gosto durante toda uma vida numa época sem grandes revoluções, mas alguém pode ir de religioso a irreligioso em uma vida, de liberal a socialista, de altamente interessado em X a desinteressado em X).
            Outro ponto que me é curioso são os atravessamentos entre Estética e Ética, brincando com as palavras é fácil ver que “estética = est ética = é ética”, ou seja, Estética (apreciação do belo, uma busca pelo que compõe a beleza em si, bem como o sublime, além dos efeitos sensorial-emocionais produzidos pela beleza, tanto quanto seu oposto, a feiura, ou o ridículo) é sempre Ética (a busca pelo melhor modo de viver, pelo certo e errado, a busca pelo bem viver e a plena realização do humano).
            Se se observam esses dois pontos como entrecruzados, formando-se e sendo formadores mutuamente, percebe-se logo que como se vive afeta o que se aprecia, bem como o que se vive afeta como se aprecia, e todas as combinações possíveis são fruto desse entrecruzamento. Como observar esse entrecorte, porém? É bastante simples, honestamente. A Estética cuida do que se aprecia e como se aprecia; a Ética cuida do que se vive e como se vive; fica fácil perceber que tudo que se vive pode ser objeto de apreciação (preferencialmente crítica e analítica) e a apreciação sempre provém de algo vivido, experienciado.
            Claro que se pode apreciar o que não se vivenciou, todavia precisa ser algo passível de vivência ou apreciação (as limitações espaciotemporais sempre operam sobre a constituição bio-psico-sócio-espiritual do ser humano). A Arte parece ser esse lugar de possibilidade de vivência e apreciação. Quando me emociono com uma música ou discuto algo impelido por um texto lido, ou vice-versa (é sempre possível apreciar de maneira diferente o vivenciado), então percebo que pela Arte sempre ser linguagem (e não apenas língua), as instâncias formadoras são também linguagem e tudo na vida – quiçá a própria vida? – é tão linguagem, por isso se consegue sentir e falar de tudo isso.
            Sendo todas essas instâncias linguagem, é muito simples concluir que devemos voltar à Semiologia/Semiótica, o estudo dos signos (objeto constitutivo de qualquer linguagem) e perceber: sempre se tratou disso, de estudar o modo como o humano significa e interpreta o que o rodeia, tanto quanto como interage com o que o rodeia (e o que é rodeado, isto é, a si mesmo, seu interno ou interior, que nos remete a anterior, e daí se pode seguir unindo outros termos à série significante, indefinidamente, e dilatando a noção, até perceber que se trata de toda a Vida).
            Que fique bastante claro: não é possível excluir a experiência do humano, é o que dá sentido à noção de unicidade vivenciada (mesmo em comunidades que atestam ter uma noção coletiva do sujeito, existe pronome de primeira pessoa singular [o qual existe em todas as línguas estudadas até hoje], assim, há unicidade, pelo menos, dentro da língua, portanto, da linguagem). Seria isso devido à descontinuidade dos signos? Conseguimos separar facilmente uma fala em frases, frases em palavras, palavras em sílabas (e, no plano escrito, sílabas em letras, sonoramente é mais difícil, mas você pode brincar muito [não falo de gestos porque esses são fáceis de romper em letras]).
            Porque nos constituímos sujeitos (só se pode dizer ‘eu’ dentro da língua) nas diversas linguagens, e essas são descontínuas por excelência, que não somos totais (contínuos)? A Arte dá a impressão de totalidade (por isso a completude sensorial-emotiva que provoca e sua consequente ausência abismal após a experiência, poder-se-ia agregar a essa a experiência mística do mundo) mesmo quando é fragmentária (pois é fragmentária em toda uma extensão, o que é uma espécie peculiar de continuidade, a continuidade por dissemelhança).
            A ausência de totalidade, a impossibilidade do retorno a Um é a fonte da feiura, do sofrimento, da ausência fundamental? Não quero propor o retorno a Um, porque Um é ainda algo, é ainda presença, é ainda Tudo, e Tudo é menos que Nada, por isso proponho o retorno a Zero. O Nada é mais que Tudo exatamente por ser menos; Tudo é ainda algo, enquanto Nada é ausência, mas não necessariamente não-algo, sendo, portanto, a verdadeira totalidade, a totalidade em potencial, tanto quanto, simultaneamente, “não sendo nada”, isto é, “sendo nada”, ou seja, não-sendo. Daí se deriva facilmente que a dor humana provém de Ser (mesmo quando se morre, quando se encontra o limite da vida, não se deixa de ser, em verdade é impossível deixar de ser uma vez que se é). Sendo o humano, portanto sempre sendo, é impossível deixar de ser, assim, sofrer é parte essencial da vida (ou da experiência de vida).
            A defesa está feita, que rolem os dados. Feita, não acabada, acabado só está o que morre (ainda assim se pode falar do morto e, desta forma, mantê-lo vivo), pois vida é sofrimento, mas também movimento (os significantes se assemelham, não é sem motivo). Espero, numa próxima série de apreciações, fazer uma defesa da necessidade de existência da Moral. Fica pra próxima, de qualquer forma, estou exausto e o cansaço alheio se deve respeitar.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Banho ou Esponjas Deveriam Gravar

            Estou no banho e meus braços se movem automáticos. Penso em tudo. Penso em tudo? Tudo que sei é tudo? Ou tudo que sei é só tudo que sei? Ou tudo é tudo que sei e apenas isso? Ou sei menos que tudo? Ou tenho a impressão de tudo, ainda que não saiba tudo, por não saber mais e parecer tudo bem amarrado?
            Às costas vão e esfregam vagarosamente, depois de terem atacado o pescoço de todos os lados. Lados. O que são lados? Perspectivas de um mesmo objeto, ou objetos inteiramente novos? Ou parcialmente novos? E qual o ponto de diferenciação entre inteiramente e parcialmente? E onde ficam os lados? Ficam em mim? Ficam no objeto? Ficam no mundo que intermedia e acomoda eu e o objeto?
            Descem por si mesmos e arranham um pouco, porque não controlo a força. E o que é controlar? Não controlo nem meus pensamentos, estas dúvidas que me abordam indistintamente, como se eu soubesse tudo. E sei tudo? Então por que não as consigo responder? Há um buraco no meio de tudo? Ou tudo é inteiro e contínuo e completo? E se for inteiro, isso é bom ou ruim?
            Agora descem pelo peito, barriga, um pouco mais de cuidado no umbigo, ele não tem bom cheiro; umbigo de ninguém tem bom cheiro. Bom ou ruim, atribuições humanas ou propriedades inerentes à existência? E se são propriedades, então não existem? Ou propriedades existem? Então adjetivos existem? Existe bonito, portanto, ou é apenas uma qualificação, uma classificação, uma propriedade que, per se, inexiste, dependendo sempre de sua posição associativa?
            Dirigem-se às pernas, longamente acompanhando sua forma estendida e peluda. O que é associação? O que é propriedade? O que é posição? Seria uma pós-ição? Içar algo depois? Mas depois de quê? Depois da própria coisa? Se assim for, então a posição já está içada, dada, fornecida, posicionada. Se não for assim, então quando se posiciona a posição?
            Agora os pés são limpos, numa posição estranha, suspendendo-os e me segurando na parede com a mão livre. Quando é uma palavra curiosa. Quando o quando acontece? Quando digo? Ou quando de fato ocorreu no mundo (aquele, que intermedia e acomoda eu e o fato ocorrido)? Quando é quando?
            Termino jogando a espuma embora, parado sob a água, sem deixar molhar os cabelos, ainda que o pescoço molhe todo. E quando é que o pescoço começa e acaba? Quando o tempo se divide em fatos? Ou os fatos são contínuos? O que são fatos? São o que se passa no mundo (aquele, você sabe bem qual)? Se te digo algo, então o que disse aconteceu? Porque eu te dizer aconteceu no mundo. Se não, então o que são fatos e o que não os são? Qual a distância, qual o momento do corte que separa?
            Giro com a canhota, enquanto a destra desce a toalha que esfrego pelo pescoço. Essa toalha existe? Esse banho aconteceu? Qual o critério de fato e de existência? Se for o simples acontecer no mundo, então eu dizer que não existem ou aconteceram seria – sempre – produzir um contrassenso, uma vez que posso dizer tudo. Ou não se pode dizer tudo? Então qual a fronteira, qual o limite de tudo? E como, se estou para dentro do território dessa fronteira, saber que aquela é a fronteira, se jamais passo dela? E se posso estar fora dela, então não há um tudo, porque há um fora do tudo que me permite estar ali para averiguar?
             – Ah, olha só! Já deu a hora, preciso escovar os dentes e ir dormir – disse a mim mesmo, ainda nu, agarrado à toalha, já seco.