domingo, 20 de fevereiro de 2022

Diálogo sobre nódulo negro no coração

— Esse é o nódulo negro de meu coração que alguém ainda há de curar.

— Mas é teu, tu deves curá-lo.

— Não mesmo. Não foi posto em mim por mim, não serei eu a curá-lo.

— Mas tu o sentes, deves tirá-lo daí por ti mesmo.

— E todas as vezes que fui sincero? Fui porque quis? Não há nada além disso, é o que me dizes?

— Sim, isso te foi bom. Não te sentes bem, aliviado talvez, de teres sido sincero?

— Nem um pouco! Tive que medir palavras, cuidar para não machucar quem não me cuidou. Então a responsabilidade vai para a merda, é isso mesmo!? Ninguém é responsável ninguém, é isso mesmo? As palavras já não valem nada, é o que encontro a cada esquina.

— Não…

— É claro que não estou bem de ter sido sincero, mas que posição idiota e servil. Então agora todos devemos agir como nos sentirmos bem agindo? Agir como bem quisermos? Isso não faz sentido algum. Eu me sentiria muito bem matando quem me feriu assim, então devo matar? Deixe de bobagem, isso é insustentável.

— Eu nunca supus que esse dia chegaria, mas… tens razão. Não me agrada em nada admitir, mas estás certo, sim.

— A justiça é uma tarefa infinita, impessoal. Antecede preferências e gostos. Poderia dizer até que é uma questão divina, tão objetiva e suprema a justiça se nos afigura. A justiça pouco tem a ver com o que se quer, habita o que se deve, o que é certo, mesmo que ninguém seja capaz de cumpri-la, dar-lhe corpo neste mundo terrível.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Breve nota sobre arte como espelho do humano

A arte pode servir como espelho dialético para o humano. Não se diz espelho simplesmente, senão espelho dialético devido às distorções (ênfases, apagamentos, etc.) postas em arte, com as quais o humano deve se ver. A arte é, portanto, sempre política, mas de uma política própria, possui sua própria politicidade. No narrado e no silenciado de uma narrativa constam porções do humano. O humano inteligibiliza-se (a si mesmo) em constituição ou já constituído, fora de si, mimetizado ou espelhado, narrado ou cantado. Há jogo nesse encontro consigo enquanto semelhante e dissemelhante: generalidade e singularidade dançam. Não que a arte seja antropológica — a arte não é o humano —, mas como a antropologia também dança entre semelhança e dissemelhança humanas, aproximam-se por aí. Num exemplo: há grande dificuldade em compreender como a literatura situa-se no limite das ciências psíquicas: as línguas criam (um)a (ilusão(?) de) psiquê, à qual se reage, durante a leitura, como a uma psiquê real (passeando entre própria e alheia).1 Nessa capacidade de emular (ou até re|produzir) aquilo que o humano toma por seu mais íntimo, a arte expõe como esse íntimo não é próprio nem íntimo (como inacessível e/ou inalterável). A arte partilha com o trabalho ((do) humano) a utilização de materiais alheios e prévios — objetos, coisas, pedaços de mundo, mundos — para a re|composição de si, de seus produtos. A violeta do haiku de Bashô é menção à violeta real encontrada pelo caminho (se isso sequer ocorreu2) e é ideação da violeta e é palavra e é surpresa e é salto à vista e é… Eis a desorganização (e re|composição (ontológica)) operada pela arte: mistura sem confusão — o guarda-chuva e a máquina de lavar se encontram para um café de barro nas costas de um besouro feito de saudades e pigarro.

You can’t love a city (that’s gray).


  1. O fato de haver um “como” na sentença não é gratuito — evidencia (a necessidade d)o jogo das dis|semelhanças.

  2. Esse é outro jogo importante da arte (i.e. das línguas), como canta Elba Ramalho em “Chorando e cantando”, com Geraldo Azevedo: “fazer (e) acontecer (verdades e mentiras)”.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Cachorro uivando pra Lua

A esperança é um dom
Que eu tenho em mim, eu tenho sim

Letra de Sonhos, de Peninha, na voz de Caetano Veloso.

Cachorro todo negro uivando pra Lua, só lábios e dentes, unhas e patas. É preciso ter orelha de casaco, aquecer palavras em forno de macarrão. Parede de caramujo por dentro: estrada para oito foras em caminho de gosma branda. Insetos de três metros feitos de órgãos e um quarto servem jantar na superfície do planeta escuro. Vermelho tem gosto de colcha de cama em dia de domingo. Como se confessam as borboletas com pontas de asas verdes? Deus escuta os clamores das réguas de bilhar. Dois reais e quarenta e sêmola. Cinco janelas de cactos: carro afundado em lago congelando. Um grampo de roupas preso no varal sem língua, chinela velha de iogurte, nem bem colher de lavagem a seco, paletó e gravata, tampa semiaberta pro carrossel. Tuba no circuito dos soldados. Por que as ilhas escondem os anjos canibais? Carne de pombo amarelo, pescoço de colchão, chapéu de bebê lagartixa. Há trinta e sete ventos no subsolo do ventre do urubu. Quem lamberá o painel de verdades futuras? Choverá ontem. Nenhum clima político no barro do céu em fim de tarde. Até pegar grama na voz; passarinhar o galho das ideias. Encontrar-se, quem poderá? Neva-se no barbeiro da esquina. Como jogar joelho com futebois tortos? Desinfle a árvore do mundo. Mãe é nutrição. Nem montanha faz introdução. Fecha esse filme, não resta esperança para as cascas da imagem a contragosto. Que salgar tem a tarde quando se reflete nas asas da garça em pleno voo? O vidro do peixe escorregando pela fralda suja da mansão. Cole meleca debaixo da mesa do sublime. Onze é quatro, homem com hexágono braços e uma quantidade total de azul pernas. Barba de rezar terço; azulejo amarelo de experiência da lira; sofreguidão brilha em um frasco de xarope avesso ao alcance do toque.

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Breve consideração sobre símbolo e alegoria

O símbolo e a alegoria não diferem por aquilo que representam, seus objetos, a ideia no símbolo e o conceito abstrato na alegoria. Diferem no modo de representar, na maneira de expressar seus objetos. O símbolo visa ao instante místico de união entre representante e representado: o crucifixo é apenas uma escala reduzida, uma miniatura, da cruz em que Jesus foi morto. Essa relação de ícone ou índice esconde, sob uma fachada de simplicidade, uma complexidade de referências, lembranças, etc., que se acumulam historicamente naquele instante, densificando-o. Contudo, dadas essas condições, a identificação — a compreensão — é instantânea: crucifixo→cristianismo. Trata-se de uma expectativa da união mística — presença do sentido (como presença) — no liame entre representante e representado: a (suposta) imediaticidade do sentido (que é muito mediado). O crucifixo, é claro, evoca a história da redenção (a paixão de Cristo) e a redenção da história (o perdão de todos os pecados, a salvação). Essa condensação de significados (e histórias) num único símbolo cujo reconhecimento (dada a familiaridade) é rápido (devido à sua estrutura icônica ou indexical) produz a sensação (ilusória) do instante saturado, preenchido ao máximo, contendo toda a história (toda futuridade do futuro) em si.

A alegoria desacelera o instante de adensamento e transformação da história (mundana) do símbolo e contempla tudo numa tal lentidão que os liames parecem perdidos, tudo parece arbitrário, desvinculado de toda relação. Como a alegoria não se vale de qualquer (pretenso) naturalismo entre representante e representado, pode se valer de figuras concretas, como Virgílio e Beatriz em A divina comédia. Por isso a alegoria não se reduz à expressão convencional, mas é também e importantemente a expressão da convenção, a representação da convencionalidade. Como a expressão alegórica toma por seu objeto a convencionalidade, a insignificância e a indiferença aparecem em seu funcionamento, pois a convenção mesma é expressa, significada. Devido a seu uso de materiais concretos para fins alheios a si mesmos — o entendimento comum da alegoria como metáfora estendida ou prolongada —, a alegoria destrói para construir algo novo, diferente, com as ruínas do velho, do destruído. Como a alegoria constrói com os materiais destruídos, manipula-os, rearranja-os, resta sempre impressão (nos dois sentidos) da construção. Assim, a alegoria expressa a própria forma da interpretação: remeter a outro, impressão da construção, rearranjar ruínas. E a história, quando adentra a alegorese, já não é mais economia da salvação, história de futuro certeiro, isto é, não-história, mas, agora, sim, finalmente é história, pois a historicidade — futuridade do futuro — está viva e ativa.

sábado, 5 de fevereiro de 2022

Sobre o sonho: crítica teórica à prática

É impossível compreender a lógica — alógica, ilógica — dos sonhos sem tomá-los por aquilo que realmente são: acontecimentos objetivos, isto é, impessoais e verdadeiros. Sonhos pertencem à mesma categoria de acontecimentos a que profecias pertencem, portanto, sonhos também pertencem à esfera da comunicação — mais, da linguagem.