segunda-feira, 30 de novembro de 2020

MitoLógicas #6

Certo; então reprimamos
esta fera condição,
esta fúria, esta ambição,
pois talvez ainda sonhamos.

E assim faremos, se estamos
em mundo tão singular
que viver não é mais que sonhar,
e a experiência, risonha,

diz que o homem que vive sonha
aquilo que é até despertar.
Sonha o rei que é rei, e vive
com este engano mandando,

dispondo e governando;
e aquele aplauso, que, breve,
recebe, no vento se escreve
e em cinzas o converte

a morte: desgraça forte!
Existe quem tente reinar
vendo que irá despertar
dentro do sonho da morte!

Sonha o rico em sua riqueza,
que mais zelos lhe oferece;
sonha o pobre que padece
sua miséria e sua pobreza;

sonha o que inicia a destreza;
sonha o que afana e pretende;
sonha o que agrava e ofende;
e no mundo, em conclusão,

todos sonham o que são,
e que é assim ninguém entende.
Eu sonho que estou aqui
destes grilhões carregado

e sonhei que em estado
mais lisonjeiro me vi.
Que é a vida?: um frenesi.
Que é a vida?: uma ilusão,

uma sombra, uma ficção;
e o maior bem é bisonho,
que toda a vida é sonho,
e os sonhos, sonhos são.

Pedro Calderón de la Barca

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Hermetologia #6

A língua bloqueia o acesso às coisas nomeadas ao mesmo tempo em que as nomeia. Em outras palavras: a língua é soberana do homem, não o contrário. Por isso, pensar é sempre complicar, embolar, enrolar, dobrar(-se sobre si).

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

MitoLógicas #5

Sempre mexendo no cabelo. Vídeo no banheiro, escovando os dentes; exibe vestido verde no samba na laje – bar chique, apenas imita barraco, nada do que se imaginaria pelo nome. Mexe sempre no cabelo, na selfie e no vídeo sensual. Por que tamanha ansiedade? Angústia transbordando até se sentir de longe. Sempre drinque na mão: álcool amigo inseparável. Já não tem o nariz de outrora, nem traz o busto diminuto de antanho. Algum valor há, deve haver. Sim, é isso mesmo. Há valor porque há medida. Assim, já não há nada. Só vale o que não pode valer, sem medida. Apenas cálculo, aritmética do lucro das sobras dos restos. O essencial.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Hermetologia #5

As outras da filosofia, aquelas que se dedicam a não serem filosofia sem, contudo, deixarem de filosofar, são as mais importantes das tarefas, das aventuras, da linguagem. Filosofar sem chegar à filosofia: literatura, retórica, sofística.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Serial Musings #9

As I've been discussing thresholds, for this final entry, here is In the current six thresholds (1929), by the unforgettable Paul Klee.


segunda-feira, 16 de novembro de 2020

MitoLógicas #4

Aqui, na baixeza do redemoinho, nada se vê, os olhos já não servem, tudo é cinza e gira. A pele salva, aqui. Tudo me toca e, se não sei o que me resvala, ao menos intuo tal ou qual textura. Não há profundeza, no turbilhão restam apenas superfícies. Quem imaginaria situação medonha assim? Horripilante, arrepia-me toda; assustada, anseio. A profundidade é um mito visual; o braço não mede a terceira dimensão, o toque mensura o tempo até alcançar, medida do desejo. A fundura é mentira luminosa, depende dessa mania de olhos e visão. Aqui, no escuro do remoinhar, tudo é toque e carícias, agressivas, súbitas, contínuas, não importa. Rodopio e nada enxergo e assim deve ser. Enxergar é um mal e deve ser tratado como tal. Cremos naquilo que vemos, por isso nos distanciamos, mas a distância não existe. O tempo existe; escutamos. O espaço é uma ilusão da visão à qual concedemos excessivo crédito, não se pode sucumbir a isso, é tolice, besteira, bobagem. Apenas superfície. Amar também não tem fundo. Sou só isso aqui.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Hermetologia #4

Nenhum excedente de sentido. Nenhum excesso. Ceder à modelagem semiótica é ceder à acumulação acelerada (e acelerando), ou seja, é imitar o metabolismo do capital(ismo). Sentido não está disponível de pronto; é diferença que vem a(o) ser. Todo sentido, assim, nunca chega a ser significado, permanece apenas redundância (in)diferente.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Serial Musings #8

Muses holding hands with Hermes

Following the reasoning that we have outlined so far, (dis)consideration means both taking into account multiple factors, as well as grounding, and care. A conclusion that is reached, a pondering.

The etymology of the term here will help us greatly: consideration descends from the Latin verb cōnsīderātiō. Let us see: cōnsīderō: con- (prefix: cum, "with; along") + sīder- (sīdus, "star; constellation").

It means: to examine, to weigh, to contemplate; to keep in mind, to bear in mind; to look upon, to think of somebody as; to provide for; to take into account.

Interesting: to provide for… Fascinating.

The prefix form of the preposition cum ("with"), i.e., con-, was used in compounds to indicate a being or bringing together, and it was also used in compounds to indicate the completeness, perfecting of any act, thus giving intensity to the signification of the simple word.

Another dictionary states: to look at closely, regard attentively, inspect, examine, survey; to ponder maturely, reflect upon, contemplate, meditate; to take care.

The second part – sīdus, sīderis – stems from ancient Greek σίδηρος (sídēros). Some derive this from Proto-Indo-European *sweid-, whence Latin sūdor, Greek ἱδρώς (hidrṓs), English sweat.

Another dictionary provides: a group of stars, constellation, heavenly body; a heavenly body, star, group of stars, constellation; the sky, heaven; fig., of celebrity or prosperity, the heavens, stars, heights; a star, light, beauty, glory; an ornament, pride, glory; a season; climate, weather; regions; grave, storm; in astrology: a star, planet, destiny.

Yet another dictionary claims: stars united in a figure, a group of stars, a constellation; a heavenly body, a star; the sky, the heavens; as the summit or height of fame, fortune, success; night; as a comparison for anything bright, brilliant, shining, beautiful; ornament, pride, glory; as a term of endearment, "my star"; season of the year; climate, weather; with allusion to the influence which the ancients believed the constellations to have upon the health or the destiny of men, star, destiny.

If we take that term as a synecdoche of (the) cosmos, we will come to a fascinating conclusion. Before, however, let us look at synecdoche: from Greek συνεκδοχή (synekdochē), "simultaneous understanding", from the verb ἐκδέχομαι ("to take or receive from another", δέχομαι "to receive"), συνεκ-δοχή ("understanding one thing with another", hence in rhetoric: synecdoche: "an indirect mode of expression, when the whole is put for a part").

We could as well label it a metonymy, there is not enough difference there for it to matter.

To take into consideration is therefore to complete, to perfect the "to provide for" by taking (the other) into account.

What have we reached here? What have we figured out?

We return to the point where the cosmos is formed by what forms it. To consider is to be considered. To be considered it is necessary to consider.

And if we are cum sidera, with the stars, then we are in the cosmos. It is impossible not to be part of it. Heliocentrism is here to stay. But heliocentrism means precisely putting the stars in the centre, since the Sun is first of all a star.

To be considered, or to consider, amounts to becoming cosmic. Thus, everything that concerns one, concerns the cosmos. Obviously there is a concern threshold, but this does not make the situation any less cosmic just because it has not been able to overcome the manifestation threshold. It just didn't manifest (itself (as such)).

(I hope whoever reads this entry understands the reference made in the heading.)

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

MitoLógicas #3

Canto do bar; Laila; sapatilha no chão acompanhando o ritmo.

Nada agradável: ritual semanal. Como conseguir parceiro?

Necessário, sem dúvida, um parceiro.

— A vida só é boa a dois. — Diz mamãe.

Ninguém interessante, sem olhar, coração inerte; lentidão em que as damas repousam braços sobre ombros de cavalheiros e rostos se aproximam: colisão de lábios, umidades reconfortantes.

Impasse a resolver? Construir fortaleza interna; dar as mãos ao desconhecido. Vida novamente? Se falta vida, como viver?

Assusta-se com o moço de topete contemplando-a, rosto apoiado na mão, cotovelo sobre a bancada.

— Não quis… — Voz suave.

Inclina a cabeça adiante, ele corresponde. — Não, tudo bem. — Boca aberta: susto; transmutação: sorriso.

Sorrir, sabia?

— Daniel, prazer. — Mão (tão macia quanto a fala) tocando braço, apoio para encontro boca-bochecha.

— Laila, prazer. — Sorrir, sabia.

Por que ele, semblante alegre sem exibir dentes, rosto pacificado, olhar descansado? Consegue acolher o mundo, parece, abraçar, beijar a fronte, fazer cafuné.

Projeção, sim, a terapeuta disse, tudo. Pro-je-ção.

— Gosta daqui?

— Ah! Sim. — Cabeça interrompida em seu trajeto, pescoço rígido. Silêncio. — Bem, na verdade, não sei dizer. — Olhar para aonde? Certeza: não o contemplar.

— Tudo bem. — Suspirado. — Perguntei porque te vi algumas vezes aqui. — Olhar dele sobre si. Encará-lo? Barreira…!

— Então… Eu sento aqui quando venho. Gosto daqui. — Voltar rosto para o dele; amabilidade extraída a custo.

— Ninguém se senta aí durante a semana.

— Será? Como sabe disso? — Pontos se ligando: constelação incerta.

— Também venho aqui… Com mais frequência do que gostaria.

— Temos isso em comum?

— Diria que sim.

Ele encara o chão; observava as sapatilhas? Surpresa. — Não pela razão que imagina.

— Como sabe o que eu penso?

— Não sei, mas presumo.

— Então por que é, se não é por isso?

— Trabalho aqui. — Sorriso de boca enluarada; respiração diferente. Risada sufocada? Olhos nos dele: luta imensa; fitava-a decididamente. — Foi o que consegui ao sair de casa. Sabe como é, família, sangue quente, essas coisas.

— Devo saber… — Como a mão, ali? Recostar mão em mão alheia? Os dedos dele, assim, movimentos regulares, calmos, imperceptíveis. Aconchego?

— Não chega a dar um roteiro de cinema. — Mesma mudança de fôlego. Gracejo?

Ela retira sua mão debaixo das carícias da dele, volta seu rosto para sua bebida. Encontros braços-bancada e taça-boca.

— Perdoe, não quis importunar. — Levanta, alisa paletó, emborca o uísque. Prestes a partir? Gesto: retirada do chapéu que não traz à cabeça. Ela lhe toma os dedos da destra e os entrelaça aos seus. Fica:

— O paraíso… Existe? — Dela, perfura-lhe, o olhar.

— Num encanto desconhecido e inexplicável. — Aproxima-se, acolhe-a, braços cobrindo-a quase inteira.

Ela, cabeça apoiada em seu peito. Murmúrio. — Também te vejo. Sempre.

Luzes frenéticas, dança intensa, no ritmo agitado da canção da moda.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Hermetologia #3

A crença na (in)divisibilidade da linguagem (e do leitor, e do sujeito, e…) jaz na raiz das suposições unitarizantes. Não há nada como o ser-em-si senão não-coincidir-consigo. Seja nos vazios dos contornos da escrita, seja na mistura dos sons, a suposta unidade é sempre – como o tempo – divisível, (re)combinável, resta sempre por fazer um corte mais fundo.

Há um morfismo da realidade em si mesma (quer dizer, rumo a si mesma, de si a si), mas o que ele preserva e o que transforma? O que resguarda e o que transmuta? Trans-mudar: emudecer através. Importa, na incessante queda dos sem-partes (á-tomos), o desvio.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Serial Musings #7

If (in)difference is a function of consideration, we are in psychological territory here. More appropriately: psychic territory, but not necessarily linked to any logos.

In this way, everything differs from everything else by the consideration it has of itself.

As we stated above, no logos, no reason, no discourse, no articulation of motivations are necessary. What there is is only consideration of itself with itself.

In other words: differentiation (itself) considers.

Therefore, we are in psychic territory, because consideration is a psychic capacity. Let us note: psychic, but not necessarily animic.

We can say that we are redefining the term panpsychism to mean that everything considers everything else.

But consideration itself depends on differentiation – and its dual process, de-differentiation. Therefore, there may be dis-consideration, that is, considerations that do not overcome the threshold necessary for them to begin to consider. We may label them, by analogy, low intensity considerations.

Thus, total consideration – that is, panpsychism – does not mean that everything has a soul – that is, that everything is animic – much less that everything thinks. Nothing like that. It just means that everything takes everything else into consideration. Not every consideration, however, will manifest itself; on the contrary, the consideration in question will have to overcome its thresholds in order to manifest itself, including the threshold of manifestation, which will not always coincide with the threshold of consideration itself.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

MitoLógicas #2

Haicai de guerra, #1

Qual pequena flor

rachando asfalto e concreto:

eis a resistência.