domingo, 3 de junho de 2018

Sobre contribuições

Uma contribuição não é um comentário. Não é simplesmente 'curti' ou 'não curti'. Nem mesmo é como editar uma wiki ou revisar. Uma contribuição trabalha de tal forma que ela submete a pesquisa, a investigação, aos testes para os quais ela foi "desenhada" (designed). Uma contribuição é uma operaçãoÉ uma manobra que se tenta durante um jogo diplomáticoÉ uma prática simultaneamente informada e livre, operando dentro da máquina intelectual que é a investigação, que é a pesquisa. O co-inquiridor, co-perquiridor, co-pesquisador, co-investigador, pode reformular, completar e aplicar, mas pode também corrigir, testar e mesmo protestar. De toda forma, deve permanecer o contexto de pesquisa, de investigação (com vistas ao concreto, preservando minimamente algum vínculo empírico). Tanto quanto seja possível, cada contribuição deve tentar construir sobre algo novo e deve assumir a forma de um documento anotado que desenvolve os argumentos ou as linhas de raciocínio, (as forças e intensidades d)os pensamentos. O trabalho de mediação deve direcionar os esforços por trás da contribuição para o que estiver menos bem representado.

sexta-feira, 1 de junho de 2018

Diário - 2018/06/01

200. Se eu tivesse de responder agora o que é poesia para mim, diria que é uma força absolutamente impessoal capaz de mobilizar todas as quatro (3+1) pessoas envolvidas na criação do universo. Para me justificar, deixo um poema lido numa entrevista, por absoluto acaso:

Colagem
Carlos de Oliveira
(com versos de Desnos, Maiakovski e Rilke)

Palavras,
sereis apenas mitos
semelhantes ao mirto
dos mortos?

Sim,
conheço
a força das palavras,
menos que nada,
menos que pétalas pisadas
num salão de baile,
e no entanto
se eu chamasse
quem dentre os homens me ouviria
sem palavras?

Cadeira de rodas

Próximo ao Terminal Integrado jaz um homem sobre sua cadeira de rodas vendendo alho em pequenos sacos. Ele claramente tem dificuldades – sequer pode coçar sua cabeça com os dedos estendidos como nós. O que desejo compreender é como isso é possível. Pessoas vêm e vão, passam, mas não o enxergam. Olham e nada. Isso é feio, ele é feio, posto não está ali onde deveria estar. Quem é? O que será? Ninguém sabe, jamais saberá – não há como saber. Isso tudo me perturba. Tenho vontade de chorar. Não é pelo dinheiro, é pela cegueira, pela destituição. Como pode Deus ser Sumo Bem se viver é pior que o inferno!? E ainda assim Ele permanece Lá. Permanecerá. Viver é o maior Mal inventado. É pior: é criado. Creado, dicen nuestros hermanos. Não importa o nome. Tenho vontade de matar a todos e não suporto uma gota de sangue desnecessária. Talvez não seja, então, suas mortes que eu deseje, mas a morte de seus velhos, a morte do ser, de seus seres. Rasgar o que é, o que há, para a abertura do que pode ser, do que virá. Sempre foi isso que me destruiu: ninguém nunca é o que pode ser – é isso que me aniquila de mim. E é impossível suportar a dor. Por isso se chama dor, porque é insuportável. Mas alguns dizem que isso é maturidade, saber resistir – viver. Eu não quero esse horror, estou apavorado e temeroso de enfrentar tamanha tortura monstruosa. Eu odeio a vida. Odeio viver. É uma dificuldade intransponível na qual nos colocam feito espetáculo para se rirem, diversão penosa. O que é um furor heroico, Bruno? Diga-me! O que é!? Merda nenhuma, tô sabendo, ninguém aguenta essa violência infinita de nascer. Como se lida com isso? Essa aberração incondicional, imperdoável, maligna até os sub-átomos, até as entranhas, até às condições. Ser é morrer. Isso é impossível! E isso não é nem de perto se livrar de viver. Pelo contrário, é viver em plenitude, viver completamente insensível, cego e perdido. Eu só quero poder. Poder sem mais. Poder sem mais nada. Eu só quero poder. Como se faz para poder? Como é que se pode? Eu só quero. E querer é insuficiente para o que seja. Querer é insuficiente sempre. É o que resta, sim, mas é insuficiente. A insuficiência resta e, condensada no fundo do frasco, compõe-se em querer. Ninguém quer só o resto, nem mesmo eu. Eu quero desviver em cheio. Antiviver. Não-viver. Isso parece além do impossível. É impensável, inconcebível. Verdadeira heresia. O inferno parece uma opção mais leve, afinal, outrora os demônios foram anjos. E nós? Para sempre barro, para sempre criminosos no jardim, usurpando frutos, criminosos do jardim, abusando das delícias e vivendo. Esse desgraçado sopro.

Eu quero ver Deus nesse homem.

Sobre magia, misticismo, animismo, ocultismo, hermetismo e similares

Tanto na vertente psicologizante – manifestações são arquétipos, inconsciências – quanto na vertente animista (poderíamos chamar de vitalista também, sobrenatural) – manifestações são entidades vivas, independentes – o que parece estar em jogo é um limite de linguagem e um experimentum linguae. A magia é, assim, a busca por uma linguagem-fora-da-linguagem, uma extra-língua, um fora-da-língua-que-é-dito, ou, pelo menos, que-se-tenta-dizer, que-se-tenta-fazer-dizer, que-tenta-tornar-(se)-dito.

Parece um enfrentamento quase desesperado contra o vazio de sentido do mero existir. Tentar tapar o buraco do Real é o processo de tentar Simbolizá-Lo, essa é uma tentativa claramente artística – apenas distinta da arte (realmente) moderna, a qual expõe o vazio fundamental. Daí as produções mágicas serem sempre artísticas: grimórios, por exemplo, são livros de artista: imagem e letra, desenho da língua e da não-língua, curvas, manchas de tinta; invenção de alfabetos, nomes e línguas; diagramas com palavras, entre outros. Mesmo no desenho há presença linguística de uma forma ou outra. Essa obsessão linguística aponta uma repressão do indizível enquanto insuportável, o inominável enquanto impossível de lidar – exatamente o tema da poesia (a)propria(da)mente moderna.

Por que, contudo, linguística? Por que não obsessão visual ou tátil ou outra coisa? Em certa medida, quero propor que se trata de uma insuficiência, ou percepção de insuficiência, da língua pública. A língua pública é a língua natural adquirida na ou desde a infância, simples assim. É com ela que se refere a tudo a que se refere, tendo suas óbvias insuficiências para o privado/interno/interior/dentro e para o Fora/Real/Externo. A produção da magia é, então, pelo menos em alguma medida, a produção de uma língua privada. Isso cria uma identificação coletiva limitada, separando um subgrupo dentro do supergrupo e criando, portanto, dois subgrupos de uma só vez: esotérico e exotérico, iniciados e não-iniciados – uma experiência não-linguística do Fora que descansa sobre uma base linguística, sobre uma experiência (agora forjada) linguística.

E, insisto, por que língua e não outra coisa? Porque a língua é (ou pelo menos comporta) essa existência absolutamente inexistente, essa pessoalidade impessoal – daí a constante referência a entidades com essas características (pessoalidade impessoal, existência inexistente, poderíamos chamar também espectralidade, pós-objet(u)alidade,  in-subjetividade ou a-subjetividade), a hipóstase dessas entidades mesmo. A língua porque ela é um ser que não é, um não-ser que é. Essa posição crepuscular da linguagem, nebulosa, indefinida, é privilegiada para essa empreitada, pois ela é público-privada, denomina o interior e o exterior simultaneamente (com os limites já conhecidos). Essa ambivalência é também a ambivalência das equivalências, dos simbolismos, "abaixo é tal qual acima" ("assim na terra como no Céu", "as above so below", quaisquer outras similares), pois a língua é a mesma para dentro e para fora. Os limites produzidos por isso geram a face do Real, a fronte do Externo, o rosto do Fora.

A distância fundante da divisão esotérico-exotérico, iniciado e não-iniciado, além de firmar a língua própria, a língua privada, além de instituir os dois subgrupos dentro do supergrupo, institui o grande tema dos mistérios: a mudança e a busca do Novo (homem, mundo, vigor, sopro, alguns adicionam ainda outros termos). O Novo mascara o Real, uma sombra para tampar o corte do Fora, para tornar suportável os pequenos clarões obscuros do Externo. Essa dimensão insuportável é simultaneamente Externa e interna, afinal, é a-Simbólica, in-Simbolizável – e esse in- quer dizer português e inglês simultaneamente, quer dizer que é parte constituinte da Simbolização além da óbvia função de negação.

"​É a diferença entre nirvikalpa-samadhi (dissolução da alma no brahman) e keivalya-samadhi (onde se mantém a individualidade da alma)..."

Pequena digressão teorática

Política nunca passou do nome esotérico que o primata superior homo sapiens deu às práticas de controle do corpo biológico populacional da espécie. Através de técnicas de produção do humano [1] como o direito, a arte, a astrologia, os mitos, e por aí vai. Todo um gigantesco esforço por obliterar as origens.

[Nota 1] Humano, antropos, é todo animal que quer controlar sua animalidade constitutiva, separando-se de seus irmãos naturais.