sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Dez sugestões para descolonizar o inconsciente, de Suely Rolnik, minimamente manipulado por Igor S. Livramento

1 Desanestesiar a vulnerabilidade às forças em seus diagramas variáveis, potência da subjetividade em sua experiência fora-do-sujeito; 2 ativar o saber-do-corpo: a experiência do mundo em sua condição de vivo, cujas forças produzem efeitos em nossa condição de vivente; 3 desobstruir o acesso à tensa experiência do estranho-familiar [unheimlich]; 4 não denegar a fragilidade resultante da desterritorialização desestabilizadora que o estado estranho-familiar promove inevitavelmente; 5 não interpretar a fragilidade e seu desconforto como 'coisa ruim', nem projetar sobre isso leituras fantasmáticas (ejaculações precoces do ego, provocadas por seu medo de desamparo e falência e suas consequências imaginárias: o repúdio, a rejeição, a exclusão social e a humilhação); 6 não ceder à vontade de conservação das formas e à pressão que esta exerce contra a vontade de potência da vida em seu impulso de produção de diferença. Sustentar-se no fio tênue deste estado instável até que a imaginação criadora construa um lugar de corpo-e-fala que, por ser portador da pulsação do estranho-familiar, seja capaz de atualizar o mundo virtual que esta experiência anuncia, permitindo assim que as formas agonizantes acabem de morrer; 7 não atropelar o tempo próprio da imaginação criadora, para evitar o risco de interromper a germinação de um mundo e, com isso, tornar a imaginação vulnerável a deixar-se desviar pelo regime colonial-cafetinístico. Tal desvio transforma a imaginação criadora em mera 'criatividade' a serviço da reprodução do status quo que, mascarado de 'novidade', torna-se sedutor e mobiliza o desejo de consumo; 8 não abrir mão do desejo em sua ética de afirmação da vida, o que implica em mantê-la fecunda, fluindo em seu processo ilimitado de diferenciação; 9 não negociar o inegociável: tudo aquilo que impediria a afirmação da vida, em sua essência de potência de criação. Aprender a distingui-lo do negociável: tudo aquilo que se poderia reajustar porque não obstaculiza a manifestação da força vital instituinte mas, ao contrário, gera as condições objetivas para que ela se realize em seu destino de produção de acontecimento; 10 praticar o pensamento em sua plena função: indissociavelmente ética, estética, política, crítica e clínica. Isto é, reimaginar o mundo em cada gesto, palavra, relação, modo de existir – toda vez que a vida assim o exigir.

Vale lembrar que este trabalho de artesania de si, do qual depende a descolonização na esfera micropolítica, implica um esforço constante que jamais atinge sua plena e definitiva realização. Ao longo de nossa existência, oscilamos entre políticas do desejo que variam entre seus dois extremos. De um lado, a submissão ao poder dos fantasmas que nos trazem de volta para nosso personagem habitual na cena colonial-capitalística, com o qual participamos das relações de abuso (o que inclui o personagem da vítima). De outro, um trabalho sem fim para desmanchar este personagem, nos reapropriarmos da pulsão e, por ela guiados, criarmos um outro personagem, que esteja à altura da vida, encarnando sua potência de transfiguração. É neste horizonte que situam-se as pistas e sugestões aqui indicadas; elas trazem as marcas dos limites atuais de meu trabalho nesta direção. Sendo este um trabalho infinito de cada um e de muitos, tais pistas e sugestões estão aqui para serem revistas, reajustadas, ampliadas, transformadas, multiplicadas ou até mesmo abandonadas em favor de outras, mais precisas e fecundas. É isto o que espero com a apresentação destas ideias.

Dica de escrita

A dica de hoje é mais psicológica, mais íntima.

Você já ficou incapaz de escrever? Muitos escritores de sucesso (e de qualidade!) já. É muito comum deparar-se com o writer's block. Porém, esse bloqueio deve ser distinguido de outro impedimento da escrita: o esvaziamento, também conhecido como perda da inspiração. Como lidar com isso? Bem, sinto informar que cada caso exige um tratamento distinto. Vamos à terapia recomendada.

Para o bloqueio
O bloqueio nasce de nós mesmos: inseguranças, temores, preguiças, desleixos e tantas outras questões internas. Inevitavelmente precisamos fazer aquilo de que estamos fugindo: _escrever._ O bloqueio é isso mesmo, um muro. Derruba-se um muro a marretadas: cada tecla apertada uma pancada contra os invisíveis tijolos. Atendamos ao compromisso conosco: todos os dias, sem faltas ou desculpas, escrevamos e inventemos, trabalhemos persistentemente. Não editemos, não revisemos; criemos, apenas. Mais valem 30 minutos insistentes todos os dias que cinco horas uma vez por mês. Bunda na cadeira e muito esforço!

Para o esvaziamento
A última coisa que devemos fazer quando esvaziados é tentar escrever. Devemos buscar o que nos inspira, tomando distância de nosso projeto. Uma caminhada, observar flores ou o céu, estudar algo que sempre nos interessou e nunca nos dedicamos a entender. É importante relaxarmos, desligar a mente e relaxar. Buscamos novas ideias, novas inspirações. E para in-spīrāre é preciso ar novo e fresco a encher os pulmões da imaginação.

sábado, 24 de agosto de 2019

A-B

Do pensamento clássico podemos herdar a distância entre o matema e o poema, duas entidades dissimilares, partes desiguais. Essa distinção fazia pertencer o matema à filosofia e o poema à sofística. O tempo passou, a modernidade chegou, e já não faz sentido trabalhar assim. De Platão, A República e o Protágoras servem para exibir quanto a filosofia lutou para abarcar ambas as emas em si, excluindo a sofística no processo. O que nos importa reter, contudo, é a existência dessa duas emas: uma tem por emblema o vazio, o conjunto vazio; outra, a Terra, afirmativa e universal – ambas somente verdadeiras porque toda potência é também impotência, quer dizer, escapa-lhe algo, não há atuação total, senão parcial, restando sempre um inominável, sabe-se desde Gödel. Digamos que o inominável próprio do matema é a consistência da língua, enquanto o inominável próprio do poema é sua potência. Importa notar, dessa singularidade, a sua capacidade de (re)ordenação do múltiplo genérico: um poema é uma maneira de pensar.

Pequeno comentário sobre 13 Reasons Why / Os Treze Porquês, seguido de Adendo e Por que personagens?

Como Homura diz a Madoka: “não confunda gratidão com responsabilidade”.


Personagens são situações-limites (por isso a ficção alimentou a filosofia por muito tempo): quase vivemos com eles, mexem com nossas emoções e corpos; nunca os encontraremos fora das circunstâncias da ficção.

O que isso nos diz sobre nós?
Algo bastante óbvio: ninguém vive realmente na dura a ponto de ver as outras pessoas como aglomerados organizados de átomos deslocando-se no espaço-tempo. Nós somos, sim, imaginativos, vivemos (em) ficções, nossa realidade é um pouco mais fantástica, um pouco mais irreal, surreal, que essa crueza científica materialista.

Os ouvidos têm paredes / the ears have walls

The ears have walls
And the walls forget to hear
The ears have walls
Surrounding their very being
Joseph Michael Seaton
Os ouvidos têm paredes
Estas esquecem-se de ouvir
Que os ouvidos têm paredes
Circundando seu próprio ser

Igor S. Livramento

Yo tengo una pregunta sobre tentación

Um amigo, contando certo causo de sua vida, emendou: “(e também, teve a tentação do pecado)”, sim, entre parênteses. Essa frase me faz pensar numa pergunta: se Deus nos fez, por que permitiu a tentação? Se a tentação é boa, então não pode direcionar ao pecado, que é mau; se não é boa, então Deus nos fez maus e Ele não é infinitamente bom e justo; se não é nossa, então Deus nos fez incompletos e podemos ser invadidos, mas resta a questão da origem, donde promana; se é uma liberdade (que Deus nos deu), então existe uma autonomia nossa que escapa a Deus; se não escapa a Ele, então a punição eterna não é Seu exercício, senão sinal de Seu fracasso, atestando novamente o descontrole.
“Mas é assim que é!” ← seria simplesmente bradar o vazio, uma crença sustentada numa mera palavra sem autor, quer dizer, sem autoridade. Há formas d’Ele ser (infinitamente) bom e justo e nos ensinar pelo nosso erro sem necessidade de punição eterna, como de fato é, ao contrário do muito divulgado.
O perdão é uma das Suas qualidades por excelência, portanto há o reencarne, pois esse é um ato de amor e perdão e bondade, dando nova chance ao renitente, posto a bondade também é paciente e compreensiva.
[…]
São dois, esmagados sob um terceiro nome, que não é nenhum.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Gravidade do exílio, de Assad Abdi [retraduzido]

Tu partes ao quinto círculo de exílio, onde a gravidade aprendeu a lidar consigo. O nome não mais te puxa para baixo. Tu derramas o passado; tu o cortas de tua pele e flutuas interminavelmente, encantado pelo tempo leve. Gravidade é um estado de ser, um reflexo da adoentada visão de alguém. Cativante é a sensação de não mais estar preso ao chão. O vento transporta-te acima das terras nas quais a história dorme escutando seus próprios mitos. Um estado de euforia engolfa teu corpo. O âmago da perfeição: onde o coração ama não um senão todos; onde tudo é uma terra estrangeira sob teus pés; onde tu pertences a todos e nenhum.

Contentamento além do querer. Tu cresces em teu mundo, não mais um andarilho. Tu abarcas o momento pelo momento e apenas por um momento. Tu agarras o outro pelo outro, não por ti mesmo. A língua manifesta a si mesma como um instrumento para tua alma tocar corações onde quer que tu alcances. Contradições de si mesmo tornam-se muitas notas soando em harmonia. Não mais o sonho; o sonho torna-se tu. Tu deixas partir. Deixas. A mente em paz com seus fragmentos, não mais uma parede sufocando suas estruturas. Não mais bordas cortando o corpo em metades diferentes. Desapego de um e de todos. O exílio torna-se uma escolha, não um estado obrigatório.

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

F. A. D.

O resultado da tendência social ampla de um favorecimento moral da multiplicidade; do recalque do confronto; da explosão da máquina acadêmica e da indústria da cultura; da instrumentalização da teoria e a paralela imobilização das obras – o resultado de tudo isso é a desobjetivação dos objetos, a perda de seus contornos específicos, de seu caráter formal. O pluri-, multi-, trans-, prefixos tão em voga ultimamente, deixam isso claro. Para dizer com outras palavras, a consequência final da disseminação da multiplicidade como lugar-comum é a aniquilação da diferença de verdade em uma indistinção generalizada. A escrita da multiplicidade insere-se assim na crise mais ampla da cultura, que há algum tempo estamos testemunhando: o fato de que está cada vez mais difícil ligar cultura e valor, cultura e utopia, cultura e oposição. Segundo um sentido mais antigo, sem dúvida excludente e ideológico, a cultura seria tudo aquilo que se furta à mera reprodução do existente: seria um reino de liberdade. A crítica ao que há de falso nessa representação levou à consolidação de um conceito antropológico de cultura, o conjunto de práticas de significação de um grupo determinado. Mas se cada conjunto de pessoas tem a sua cultura, se ela é imanente a qualquer produção coletiva e coerente de sentido, então não há nada no conceito que impeça que se fale da cultura dos carcereiros ou dos torturadores. Assim como a multiplicidade, a cultura parece não ter alteridade, porque seu verdadeiro outro, a barbárie, só pode aparecer em um contexto valorativo, que a cultura da multiplicidade de antemão impossibilita.

E. C.

Foi o gênio de Averróis que produziu a teoria da recepção (e, por isso mesmo, do meio) mais desenvolvida. A recepção, escreve Averróis em uma fórmula difícil e ao mesmo tempo muito profunda, não é senão uma forma particular de paixão que não implica uma transformação [passio sine transformatione]. Quando uma forma entra na espessura da matéria do seu receptor, ela muda e também faz com que ele mude, transforma-se e transforma: nesse caso, trata-se de uma transformação. Dizendo de modo técnico, chama-se recepção toda paixão não transformadora. É muito simples: um espelho é afetado por uma imagem sem sofrer uma transformação. Mas também é uma ideia esplêndida: receber significa sofrer algo, ser afetado por algo sem se transformar e sem transformar a coisa pela qual se é afetado. É possível dizer que se trata de uma paixão sem sofrimento e sem resistência. Se o sensível existe, se as imagens existem, é porque as coisas têm essa potência suplementar e escondida, a faculdade receptiva. E essa faculdade é absolutamente privada de órgãos, uma vez que não é definida por uma matéria, por uma forma, nem por qualquer coisa de positivo. Pelo contrário – e, segundo Averróis, esta é a segunda propriedade de todo meio –, aquilo que recebe algo não deve possuir a matéria daquilo que recebe: o receptor deve se encontrar no estado de privação da natureza da forma que recebe. Todo meio, todo receptor, o é somente graças ao próprio vazio ontológico, graças à capacidade de não ser aquilo que é capaz de receber. Isso fica evidente no meio por excelência, aquele capaz de acolher em si também a luz: a transparência, o diáfano. É apenas enquanto espessura invisível e não colorida que a transparência pode receber a luz e as cores. A transparência não é um corpo específico: não é água, ar ou éter, senão uma natureza comum sem nome [natura commune sine nomine] que está em todos esses corpos. Nas palavras de Averróis, a transparência não existe nos corpos de acordo com aquilo que eles são, de acordo com a sua natureza. Um receptor recebe não obstante sua própria forma e não obstante sua própria matéria, jamais se define por uma natureza específica, exatamente porque é a capacidade de não ser aquilo que é capaz de receber. É pela mesma razão que qualquer corpo, qualquer ente pode se tornar meio: o ar, a água, o espelho, a pedra de uma estátua. Todos os corpos podem se tornar meio para outra forma que existe fora de si na medida em que possam recebê-la sem lhe oferecer resistência. O mundo das imagens, o mundo sensível, é um mundo construído sobre os limites de uma potência específica, a potência receptiva. Acolhendo em si a forma sem matéria, o meio a separa de seu substrato ordinário e de sua natureza. Na terminologia escolástica, o meio é lugar de abstração [abstractio], isto é, de separação: o sensível é a forma enquanto separada, abstraída de sua existência natural. Assim, nossa imagem no espelho ou em uma fotografia existe enquanto separada de nós em outra matéria, em outro lugar. A separação é a função essencial do lugar: dar lugar a uma forma, marcá-la com um hic, significa separá-la das outras, tirá-la da continuidade e da mistura com o resto do corpo. Essa separação medial das imagens que tem lugar no sensível se tornou possível através da propriedade particular de multiplicar-se que as formas têm. Considerou-se frequentemente a experiência da própria imagem no espelho como a experiência trágica entre um si mesmo como sujeito e como imagem, ou como a divisão irreconciliável entre o si e a ideia (o ideal) do eu. Porém, à mesquinhez da teologia escapa o essencial. Aquilo de que se faz experiência cada vez que nos olhamos no espelho – ou cada vez que nos percebemos fora de nós mesmos, cada vez que nos imaginamos diferentes daquilo que somos – é, de certa maneira, cômico. O espelho, a imaginação, a superfície da água sobre a qual nos refletimos, não nos privou de nossa forma, mas a multiplicou. As imagens são os agentes da multiplicação das formas e da verdade. A fórmula do cogito que há pouco enunciamos é falsa. Enquanto me vejo no espelho, observo-me ao mesmo tempo aqui e lá: em mim como corpo e alma, sobre o espelho como imagem sensível. Devir imagem é, sim, um exercício de deslocamento, como veremos, mas, sobretudo, de multiplicação de si. No espelho se aparece e se existe, por um momento, lá onde não se vive mais e não se pensa mais, mas se existe contemporaneamente em mais lugares e em modos diferentes. Nesse momento, nossa forma existe em quatro modos distintos: como corpo que se reflete no espelho, como sujeito que se pensa e faz experiência de si, como forma que existe no espelho, e como conceito ou imagem na alma do sujeito pensante, que lhe permite pensar em si mesmo. A existência do sensível no mundo mostra o quanto a navalha de Ockham é inútil. O sensível é a multiplicação do ser. Pode-se discutir se existe um único mundo ou infinitos. De fato, a existência das imagens não faz senão multiplicar infinitamente os objetos mundanos. Não por acaso, o título técnico das obras sobre a física das imagens na Idade Média era De multiplicatione specierum, ‘sobre a multiplicação das formas’. A imagem sensível abre o reino do inumerável. A partir do momento em que existe o sensível, a partir do momento em que nascem as imagens, as formas deixam de ser únicas e irrepetíveis. A técnica não tem nada a ver. A reprodução das formas é a vida natural das imagens. E já que experiência e percepção são uma contínua correspondência com o sensível – ou melhor, a vida psíquica do sensível –, também o pensamento é uma forma de multiplicação. A palavra, a audição, a visão, todas as nossas experiências são uma operação de multiplicação do real, uma vez que utilizam imagens.

Fantescrita

“A maior prova de que o pensamento se privatizou, de que a escrita é uma mercadoria, é a existência dos ghostwriters, que vendem por inteiro seus direitos autorais, incluindo o direito a ter seu nome na capa. Os ghostwriters provam também o quão vazio é a noção moderna e totalmente jurídica de autor: muitos ‘autores’ não passam de um detalhe na capa, um nome, uma marca. No fundo, como vimos com Mário de Andrade, sempre é assim. Se a nossa epígrafe é verdadeira, e ter uma ideia é fácil, sendo difícil escrevê-la, pois isto implica sangrar, dar o corpo, então podemos dizer que os direitos autorais permitem a prostituição, autorizam o ghostwriter a alienar seu sangue, seu corpo. Há um ditado que diz que a prostituição é a profissão mais antiga do mundo. É possível que ele esteja errado, e que o mais antigo ofício seja o de rapsodo (e Mário concebeu Macunaíma como rapsódia), aquele que coleta e recria experiências e falas alheias, aquele que colhe as ideias da terra e as sangra pelo seu corpo, as aduba com esse seu sangue para que elas possam se espalhar e se frutificar. Nesse sentido, cabe registrar o gesto magistral que o irmão gêmeo (em um sentido mítico) demoníaco de Mário, Oswald de Andrade, foi capaz de dar. No seu romance Serafim Ponte Grande, de 1933, no lugar da nota de direitos autorais, encontramos a seguinte nota anti-autoral: ‘Direito de ser traduzido, reproduzido e deformado em todas as línguas’ (na atual edição do romance, a editora Globo incluiu a nota anti-autoral como parte do romance, ficcionalizando-a, quando, na verdade, constitui uma disposição jurídica de vontade). Oswald sabia, como Godard, que um autor não tem direitos, um autor só tem deveres. As ideias, que vêm do ar, não nos são próprias. E o sangramento, o dar o corpo que a escrita implica, não cabe em um nome.”

Alexandre Nodari (mas, para seguir o texto com boa consciência, não deveria citá-lo, ainda que citar seja a última fronteira em que fazemos de nossas vozes os coros angélicos e de nossas mãos os mil braços de Ganesha).

sábado, 17 de agosto de 2019

Heroísmo,

hoje, é erotismo. Não há outro jeito.

Era uma vez...

     Era uma vez, num planeta distante, na borda ocidental da feia galáxia esbranquiçada, uma raça que achava bacana e legal pagar contas e desfazer amizades por brigas sobre a gerência pública.
     Fim.

     Moral da história: [a explicar]

Lágrimas escorriam enquanto ela sorria

     Sabendo de tudo que (se) passou, eu jamais sorriria. Mas, deus!, ela era tão forte! Não resta dúvida por que a admirava(m). Dava pra sentir a aura dela, aquela presença, mesmo quando ela estava parada na porta da sala, sem dar um passo sequer.
     Ela sorriu. Rosto vermelho quente, olhos marejados, lágrimas pingando do queixo na neve que cobria o chão de concreto da entrada. De fundo aquele enorme portão cinza tantas vezes atravessado.
     Ela sorriu e, sorrindo, disse “eu estarei contigo, aonde quer que você vá, pois só o amor é real!” e ele correu até ela e a abraçou tão forte que me senti abraçado também. Ficaram tão bem juntos! Ele chorou mais do que imaginei que pudesse – aquele durão!
     A neve continuou caindo em pequenos flocos.

Classificação

     Certa feita falávamos sobre categorizações, colocar as coisas em grupos, classes, enfim, conjuntos, a partir de semelhanças que nos pareciam óbvias. Então pepino e rosa se agrupavam nos vegetais; coruja e peixe, nos animais.
     Eis que minha bisavó – escolarizada até a quarta série, pescadora, costureira e dona de casa toda a vida, quase cega a esta altura – comenta: “Ora, vocês são tolos! Peixe e pepino, que dá pra comer; coruja e rosa, que dá pra admirar” e riu gostoso os dentes enluarados.