sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Hermetology #10

F. Kittler wrote somewhere:

As the Canadian poet Anne Carson has brilliantly shown, the whole poem centres on Sappho's dialectal word 'dēûte', which paradoxically means 'now' and 'again' at the same time. To put it in other words: Sappho, for the first time in European history, calls Eros, the god of love, simultaneously bitter and sweet.

Dēûte: againow.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Hermetologia #9

A compreensão de antropos como animal linguageiro não é gratuita. Mas, é importante lembrar, o lógos era, simultaneamente, a razão (capacidade de raciocínio), a razão (motivação, motivo para algo ocorrer tal qual ocorreu), mas também o nome da(s) língua(s) humana(s). Assim, resta o achatamento final: o som de Homo é o lógos. Não há nada de diferente do ruído animal aí, é tal qual o gorjear, o coaxar, o relinchar, etc. Mesmo assim, marca-se uma diferença inominável, inenarrável.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Hermetologia #8

A poesia nasce da prece. A εὐχή [eukhḗ] constitui esse lugar. Ao mesmo tempo, quer dizer rezar (por), rezar (para), desejar, ansiar, (de)votar, prometer, jactar, professar, (van)gloriar.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

MitoLógicas #7

Escreveu um poema

Ele: cavalheiro, como todos. Rosto invisível, ausente, fazia charme – marcante, o jeito seu. Nos ares da cidade, cheia de cinza e vazia de gente, peito pulsante por um sorriso. Ela: princesa no sentido parcial do termo. Abandonada pelo mundo, emaranhada em falas e bocas e olhares e línguas e cheiros e toques. Aquecida acolhida encolhida nele encontrou. Trocaram palavras muitas: não comerciavam, não escambavam; amavam.

Em seu coração: espinho (falante). Palavras vis e intentos pueris de trajar e andar e viver.

Moços: feridos. Dor desigual. Corações: fora do lugar, despetalados.

Partida: ela, com coragem, sob a chuva. Refletida onde já ele não via; entretido noutro pulso. Ele: novo, nova acolhida encolhida; fria; úmida. Igual? Não há (como) saber. Respiração: agitada. Aventura, a nova. Gritou, ardeu, odiou, finalizou: vida, presenteie-me com amor!

Sem direito a exposição, modulação, recapitulação, a sonata ficou demasiado sonora e pouco musical.

Rosto bonito: fim trágico: justo, o mais.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Hermetologia #7

Há dois fatos extremamente relevantes nos inícios da filosofia, os quais tendem a ser ignorados, esquecidos, obnubilados por algum motivo que desconheço. Seja como for, ambos colocam uma questão crucial, vejamos.

O primeiro: Filóstrato diz que Protágoras era discípulo de Demócrito, mas, mais importante, o sofista teria também estudado com os magos persas.

O segundo: Górgias inicia seu Elogio falando daquilo que é ordenado, harmônico, mas, atentemos ao termo utilizado no original: cosmos.

Adicionemos a isso o poder atribuído à retórica dos sofistas por Platão e Aristóteles, o poder de mexer na alma, de mover os outros, bem como a paródia gorgiana do tratado de Parmênides.

Isso nos permite entrever o lugar cósmico, universal, galáctico, extra-humano e extra-mundano da linguagem, como também o fato de a linguagem exibir a disjunção no seio do Ser, o furo fundamental.

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

MitoLógicas #6

Certo; então reprimamos
esta fera condição,
esta fúria, esta ambição,
pois talvez ainda sonhamos.

E assim faremos, se estamos
em mundo tão singular
que viver não é mais que sonhar,
e a experiência, risonha,

diz que o homem que vive sonha
aquilo que é até despertar.
Sonha o rei que é rei, e vive
com este engano mandando,

dispondo e governando;
e aquele aplauso, que, breve,
recebe, no vento se escreve
e em cinzas o converte

a morte: desgraça forte!
Existe quem tente reinar
vendo que irá despertar
dentro do sonho da morte!

Sonha o rico em sua riqueza,
que mais zelos lhe oferece;
sonha o pobre que padece
sua miséria e sua pobreza;

sonha o que inicia a destreza;
sonha o que afana e pretende;
sonha o que agrava e ofende;
e no mundo, em conclusão,

todos sonham o que são,
e que é assim ninguém entende.
Eu sonho que estou aqui
destes grilhões carregado

e sonhei que em estado
mais lisonjeiro me vi.
Que é a vida?: um frenesi.
Que é a vida?: uma ilusão,

uma sombra, uma ficção;
e o maior bem é bisonho,
que toda a vida é sonho,
e os sonhos, sonhos são.

Pedro Calderón de la Barca

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Hermetologia #6

A língua bloqueia o acesso às coisas nomeadas ao mesmo tempo em que as nomeia. Em outras palavras: a língua é soberana do homem, não o contrário. Por isso, pensar é sempre complicar, embolar, enrolar, dobrar(-se sobre si).

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

MitoLógicas #5

Sempre mexendo no cabelo. Vídeo no banheiro, escovando os dentes; exibe vestido verde no samba na laje – bar chique, apenas imita barraco, nada do que se imaginaria pelo nome. Mexe sempre no cabelo, na selfie e no vídeo sensual. Por que tamanha ansiedade? Angústia transbordando até se sentir de longe. Sempre drinque na mão: álcool amigo inseparável. Já não tem o nariz de outrora, nem traz o busto diminuto de antanho. Algum valor há, deve haver. Sim, é isso mesmo. Há valor porque há medida. Assim, já não há nada. Só vale o que não pode valer, sem medida. Apenas cálculo, aritmética do lucro das sobras dos restos. O essencial.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Hermetologia #5

As outras da filosofia, aquelas que se dedicam a não serem filosofia sem, contudo, deixarem de filosofar, são as mais importantes das tarefas, das aventuras, da linguagem. Filosofar sem chegar à filosofia: literatura, retórica, sofística.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Serial Musings #9

As I've been discussing thresholds, for this final entry, here is In the current six thresholds (1929), by the unforgettable Paul Klee.


segunda-feira, 16 de novembro de 2020

MitoLógicas #4

Aqui, na baixeza do redemoinho, nada se vê, os olhos já não servem, tudo é cinza e gira. A pele salva, aqui. Tudo me toca e, se não sei o que me resvala, ao menos intuo tal ou qual textura. Não há profundeza, no turbilhão restam apenas superfícies. Quem imaginaria situação medonha assim? Horripilante, arrepia-me toda; assustada, anseio. A profundidade é um mito visual; o braço não mede a terceira dimensão, o toque mensura o tempo até alcançar, medida do desejo. A fundura é mentira luminosa, depende dessa mania de olhos e visão. Aqui, no escuro do remoinhar, tudo é toque e carícias, agressivas, súbitas, contínuas, não importa. Rodopio e nada enxergo e assim deve ser. Enxergar é um mal e deve ser tratado como tal. Cremos naquilo que vemos, por isso nos distanciamos, mas a distância não existe. O tempo existe; escutamos. O espaço é uma ilusão da visão à qual concedemos excessivo crédito, não se pode sucumbir a isso, é tolice, besteira, bobagem. Apenas superfície. Amar também não tem fundo. Sou só isso aqui.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Hermetologia #4

Nenhum excedente de sentido. Nenhum excesso. Ceder à modelagem semiótica é ceder à acumulação acelerada (e acelerando), ou seja, é imitar o metabolismo do capital(ismo). Sentido não está disponível de pronto; é diferença que vem a(o) ser. Todo sentido, assim, nunca chega a ser significado, permanece apenas redundância (in)diferente.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Serial Musings #8

Muses holding hands with Hermes

Following the reasoning that we have outlined so far, (dis)consideration means both taking into account multiple factors, as well as grounding, and care. A conclusion that is reached, a pondering.

The etymology of the term here will help us greatly: consideration descends from the Latin verb cōnsīderātiō. Let us see: cōnsīderō: con- (prefix: cum, "with; along") + sīder- (sīdus, "star; constellation").

It means: to examine, to weigh, to contemplate; to keep in mind, to bear in mind; to look upon, to think of somebody as; to provide for; to take into account.

Interesting: to provide for… Fascinating.

The prefix form of the preposition cum ("with"), i.e., con-, was used in compounds to indicate a being or bringing together, and it was also used in compounds to indicate the completeness, perfecting of any act, thus giving intensity to the signification of the simple word.

Another dictionary states: to look at closely, regard attentively, inspect, examine, survey; to ponder maturely, reflect upon, contemplate, meditate; to take care.

The second part – sīdus, sīderis – stems from ancient Greek σίδηρος (sídēros). Some derive this from Proto-Indo-European *sweid-, whence Latin sūdor, Greek ἱδρώς (hidrṓs), English sweat.

Another dictionary provides: a group of stars, constellation, heavenly body; a heavenly body, star, group of stars, constellation; the sky, heaven; fig., of celebrity or prosperity, the heavens, stars, heights; a star, light, beauty, glory; an ornament, pride, glory; a season; climate, weather; regions; grave, storm; in astrology: a star, planet, destiny.

Yet another dictionary claims: stars united in a figure, a group of stars, a constellation; a heavenly body, a star; the sky, the heavens; as the summit or height of fame, fortune, success; night; as a comparison for anything bright, brilliant, shining, beautiful; ornament, pride, glory; as a term of endearment, "my star"; season of the year; climate, weather; with allusion to the influence which the ancients believed the constellations to have upon the health or the destiny of men, star, destiny.

If we take that term as a synecdoche of (the) cosmos, we will come to a fascinating conclusion. Before, however, let us look at synecdoche: from Greek συνεκδοχή (synekdochē), "simultaneous understanding", from the verb ἐκδέχομαι ("to take or receive from another", δέχομαι "to receive"), συνεκ-δοχή ("understanding one thing with another", hence in rhetoric: synecdoche: "an indirect mode of expression, when the whole is put for a part").

We could as well label it a metonymy, there is not enough difference there for it to matter.

To take into consideration is therefore to complete, to perfect the "to provide for" by taking (the other) into account.

What have we reached here? What have we figured out?

We return to the point where the cosmos is formed by what forms it. To consider is to be considered. To be considered it is necessary to consider.

And if we are cum sidera, with the stars, then we are in the cosmos. It is impossible not to be part of it. Heliocentrism is here to stay. But heliocentrism means precisely putting the stars in the centre, since the Sun is first of all a star.

To be considered, or to consider, amounts to becoming cosmic. Thus, everything that concerns one, concerns the cosmos. Obviously there is a concern threshold, but this does not make the situation any less cosmic just because it has not been able to overcome the manifestation threshold. It just didn't manifest (itself (as such)).

(I hope whoever reads this entry understands the reference made in the heading.)

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

MitoLógicas #3

Canto do bar; Laila; sapatilha no chão acompanhando o ritmo.

Nada agradável: ritual semanal. Como conseguir parceiro?

Necessário, sem dúvida, um parceiro.

— A vida só é boa a dois. — Diz mamãe.

Ninguém interessante, sem olhar, coração inerte; lentidão em que as damas repousam braços sobre ombros de cavalheiros e rostos se aproximam: colisão de lábios, umidades reconfortantes.

Impasse a resolver? Construir fortaleza interna; dar as mãos ao desconhecido. Vida novamente? Se falta vida, como viver?

Assusta-se com o moço de topete contemplando-a, rosto apoiado na mão, cotovelo sobre a bancada.

— Não quis… — Voz suave.

Inclina a cabeça adiante, ele corresponde. — Não, tudo bem. — Boca aberta: susto; transmutação: sorriso.

Sorrir, sabia?

— Daniel, prazer. — Mão (tão macia quanto a fala) tocando braço, apoio para encontro boca-bochecha.

— Laila, prazer. — Sorrir, sabia.

Por que ele, semblante alegre sem exibir dentes, rosto pacificado, olhar descansado? Consegue acolher o mundo, parece, abraçar, beijar a fronte, fazer cafuné.

Projeção, sim, a terapeuta disse, tudo. Pro-je-ção.

— Gosta daqui?

— Ah! Sim. — Cabeça interrompida em seu trajeto, pescoço rígido. Silêncio. — Bem, na verdade, não sei dizer. — Olhar para aonde? Certeza: não o contemplar.

— Tudo bem. — Suspirado. — Perguntei porque te vi algumas vezes aqui. — Olhar dele sobre si. Encará-lo? Barreira…!

— Então… Eu sento aqui quando venho. Gosto daqui. — Voltar rosto para o dele; amabilidade extraída a custo.

— Ninguém se senta aí durante a semana.

— Será? Como sabe disso? — Pontos se ligando: constelação incerta.

— Também venho aqui… Com mais frequência do que gostaria.

— Temos isso em comum?

— Diria que sim.

Ele encara o chão; observava as sapatilhas? Surpresa. — Não pela razão que imagina.

— Como sabe o que eu penso?

— Não sei, mas presumo.

— Então por que é, se não é por isso?

— Trabalho aqui. — Sorriso de boca enluarada; respiração diferente. Risada sufocada? Olhos nos dele: luta imensa; fitava-a decididamente. — Foi o que consegui ao sair de casa. Sabe como é, família, sangue quente, essas coisas.

— Devo saber… — Como a mão, ali? Recostar mão em mão alheia? Os dedos dele, assim, movimentos regulares, calmos, imperceptíveis. Aconchego?

— Não chega a dar um roteiro de cinema. — Mesma mudança de fôlego. Gracejo?

Ela retira sua mão debaixo das carícias da dele, volta seu rosto para sua bebida. Encontros braços-bancada e taça-boca.

— Perdoe, não quis importunar. — Levanta, alisa paletó, emborca o uísque. Prestes a partir? Gesto: retirada do chapéu que não traz à cabeça. Ela lhe toma os dedos da destra e os entrelaça aos seus. Fica:

— O paraíso… Existe? — Dela, perfura-lhe, o olhar.

— Num encanto desconhecido e inexplicável. — Aproxima-se, acolhe-a, braços cobrindo-a quase inteira.

Ela, cabeça apoiada em seu peito. Murmúrio. — Também te vejo. Sempre.

Luzes frenéticas, dança intensa, no ritmo agitado da canção da moda.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Hermetologia #3

A crença na (in)divisibilidade da linguagem (e do leitor, e do sujeito, e…) jaz na raiz das suposições unitarizantes. Não há nada como o ser-em-si senão não-coincidir-consigo. Seja nos vazios dos contornos da escrita, seja na mistura dos sons, a suposta unidade é sempre – como o tempo – divisível, (re)combinável, resta sempre por fazer um corte mais fundo.

Há um morfismo da realidade em si mesma (quer dizer, rumo a si mesma, de si a si), mas o que ele preserva e o que transforma? O que resguarda e o que transmuta? Trans-mudar: emudecer através. Importa, na incessante queda dos sem-partes (á-tomos), o desvio.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Serial Musings #7

If (in)difference is a function of consideration, we are in psychological territory here. More appropriately: psychic territory, but not necessarily linked to any logos.

In this way, everything differs from everything else by the consideration it has of itself.

As we stated above, no logos, no reason, no discourse, no articulation of motivations are necessary. What there is is only consideration of itself with itself.

In other words: differentiation (itself) considers.

Therefore, we are in psychic territory, because consideration is a psychic capacity. Let us note: psychic, but not necessarily animic.

We can say that we are redefining the term panpsychism to mean that everything considers everything else.

But consideration itself depends on differentiation – and its dual process, de-differentiation. Therefore, there may be dis-consideration, that is, considerations that do not overcome the threshold necessary for them to begin to consider. We may label them, by analogy, low intensity considerations.

Thus, total consideration – that is, panpsychism – does not mean that everything has a soul – that is, that everything is animic – much less that everything thinks. Nothing like that. It just means that everything takes everything else into consideration. Not every consideration, however, will manifest itself; on the contrary, the consideration in question will have to overcome its thresholds in order to manifest itself, including the threshold of manifestation, which will not always coincide with the threshold of consideration itself.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

MitoLógicas #2

Haicai de guerra, #1

Qual pequena flor

rachando asfalto e concreto:

eis a resistência.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Hermetologia #2

Para fazer sentido é preciso haver sentido(s). Onipresença comunicacional desgasta a efetividade da realidade. O atual se torna o atual(izado). Assim, as comunicações perdem seu tele(aspecto): a distância se reduz, o campo se espreme (mas não se exprime) inteiramente no local, toda abertura se fecha. Impressão de (des)velamento – só há Maya, só há véu, ∴ samsara ≍ nirvana. Isso, certamente, deve-se, em parte, à impossibilidade de resistir à proximidade. Distância para amenizar o insuportável. Ubiquidade comunicacional acarreta transparência opaca. Se fosse possível se comunicar, não haveria (necessidade de) comunicação ( menos comunicação ≅ mais comunicação?). A parte difícil é encontrar o que há de comum no em comum para comunicar.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Serial Musings #6

Just like Chris Angelis commented in the last entry of this series, here we are trying to find a solution that is neither Hegelian nor Deleuzian, but one of the best of both. Deleuze, most probably influenced by Pierre Macherey's book Hegel or Spinoza, preferred the second to the first, thus losing great developments in his theory.

The central idea is that there is a passage from pure differentiation to de-differentiation, thus generating what we usually understand by identity. But it is important to note the nuanced change: identity no longer means strict and unchangeable equality, but a threshold of indifference.

As indifference simply means differentiation of so little intensity that it does not cross any threshold of differentiation, it is nothing more than a pronounced de-differentiation, that is, a lessening of differentiation intensity.

But, as can be seen, lesser intensity differentiation means less(er) difference(s).

Thus, identity stability generated by the increase in de-differentiation from differentiation leads to an accumulation of indifference.

Hence, as we said a few entries back, it is a function of consideration.

This means: there is a threshold that must be crossed if it is to be taken into consideration as differentiated.

Thus, as Chris Angelis questioned: what is the difference – within, inherent – between two atoms of hydrogen? We can answer with a resounding: none. Not because, in fact, there is no difference, but because more differentiation, that is, differentiation of greater intensity, would be necessary for them to be considered as effectively different from each other.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

MitoLógicas #1

Doze teses sobre a ficção atualmente

Traduzidas por Igor da Silva Livramento

Originalmente por R. M. Berry e Jeffrey R. Di Leo

  1. O presente da ficção é a intersecção de tudo o que a ficção tem sido e tudo aquilo em que se tornará.Formas de escrita e de leitura já estão sempre ligadas aos seus desenvolvimentos e tradições históricas, no entanto, são continuamente arrastadas para um futuro repleto de possibilidades. Poderíamos até dizer que a mudança e a temporalidade são as constantes no presente da ficção, uma caracterização que nos deixa perplexos com a própria palavra “presente”. Em comparação com o longo passado da ficção e seu futuro aberto, o presente parece relativamente breve e instável, com quase qualquer durabilidade, mas isso não diminui seu valor. Pelo contrário, o valor pode muito bem não existir em qualquer outro lugar. Isto é, se a ficção ainda tiver significado para nós, então terá necessariamente agora, no presente, todo outro significado sendo latente ou potencial. Por outras palavras, o transitório, irrealizável presente pode simplesmente nomear a condição de existência contínua da ficção, distinguindo-a de tudo o que, como o épico, tem apenas um passado ou, como a justiça, apenas um futuro. Como o espaço elusivo onde o passado encontra os nossos sonhos e desejos, o presente da ficção estende a promessa de mudança a todos os que a sofreriam.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Hermetologia #1

A crítica conclui, isto é, dá-nos a certeza de que a crítica é absolutamente irrefreável. Em outras palavras: é impossível evitar interpretação. O mero fato de haver interpretação põe um resto (ou seja, fundamento) ininterpretável. Daí se compreende que o segredo não se divide em revelação e manifestação, ou seja, verdade e comunicação. O segredo é segredar. O enigma é enigmático. Assim a crítica, isto é, o segredo, o mistério, o enigma, é o silêncio do qual emerge, e para o qual retorna, toda linguagem. Jaz aquém (além): é absolutamente indizível (e impensável, e irrepresentável, e…). Só sabemos que (não)existe porque (não)podemos (não)senti-lo daqui.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Serial Musings #5

In order to avoid an infinite regress, we can think of a differentiation threshold which the crossing of generates an exhaustion of differentiating and keeps the intensity of (further) differentiation at bay (within a(nother) threshold). Individuation, for example, would work like this.

In other words, differentiation would differentiate from previous differentiation with such intensity that it would separate itself from previous differentiation and would individuate itself in a more or less stable manner, since it would begin to differentiate (further) at low(er) intensity differentiation, exhausted by crossing the differentiation threshold (that led to individuation and stabilization, that is lower intensity).

If we look closely, there is a dangerously fun similarity here between an operation and its dual. That is, differentiation would be the fundamental operation, but an operation carries with it its dual (if we are understanding the results of category theory correctly, this time about adjunction), so differentiation and de-differentiation – that is, stabilization, (towards) identity – are both operative.

This assures us that there are turtles differentiations only almost all the way down, as it is self-hosting and bootstrapping.

In other words: the process stops and rests on a dynamic stability between differentiation and de-differentiation. In a sense, we can say that it is the dynamics between differentiation and de-differentiation that ensure the (relative) stabilization of the (universal) process(es) – all the while sustaining the dynamism necessary to start the process(es).

This reminds me of a sentence by a great professor I had during undergrad: "where there is a force, there is a counterforce".

In this sense, differentiation does not differentiate from itself enough to become pure identitary stability, because alongside de-differentiation there is always the stabilization of difference qua difference, difference (as) itself.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Seria Musings #4

Let us begin by making an addendum to the third entry in this series of posts: the thresholds pertaining to each identity being unique on a case by case basis is not something bad, on the contrary, it is good, because it is a guarantee that two things will only be the same if they are, in fact, one and the same thing. This can be backwards posited with a threshold to determine the notion of equality or identity. (In this way, the very notion of identity or equality itself can be defined.)

Now, continuing our topic: on Tractatus Logico-Philosophicus, fifth item, Wittgenstein says that: "A proposition is a truth-function of elementary propositions. (An elementary proposition is a truth-function of itself.)"

Therefore, it seems we are pursuing a more or less accurate trail. There must be, then, some approximation between a logic of becoming, a logic of being, category theory and, perhaps, because it seems to approach category theory, a type theory. But to account for this multiple approach, we would need a mathematical finesse that does not belong here.

It is important to note that a process-based approach will not hinder the emergence of emergent structures.

In this way it is possible to stipulate a rich and complex reality without ignoring the explanatory advances of the sciences, avoiding patently unreasonable eliminativism and reductionism, yet parsimoniously giving an account only of what in fact exists, without a useless ontological anarchic proliferation. Thus, for example, the intentionality of conscious experience can be composed as a fitting of functions that are irreducible to each other.

According to field theory, as well as the gunk nature of time (i.e., something infinitely divisible), it seems that reality is based on interactions. The interpretative key here is in the gunk nature of time: continuous in such a way that it can be infinitely divisible, but for all practical purposes it reaches a threshold which, for us, is small enough, that is, it suffices. (To understand the gunk nature, think of the real number line: we can zoom indefinitely and the results keep showing up.) Making yet another analogy: the point (in the sense of Euclidean geometry) would be only a regional compacting whose threshold is infinitely small.

So, to follow the line of reasoning that is emerging here, we would say that identity (in a sense similar to the strict sense of mathematical equality) is only a case of similarity whose threshold is sufficiently restricted (perhaps infinitely restricted); and, more appropriately and more generally: identity is a differentiation of null (or at least negligible) intensity. To add another analogy: it would be like considering silence as just null intensity sound.

Thus, we do not need to give in to the onticological principle (i.e. there is no difference that does not make a difference, viz., every difference makes a difference) nor, in a broader sense, to flat ontologies (which, most often, are patently false) – simply because there are affectation thresholds: not everything will always affect everything else. In this way we are preserving hierarchized ontologies without, however, establishing concepts with unnecessary internal constraints. We gain flexibility and possibility without losing scientificity.

Moreover, if we wanted to be Humeans to the fullest, we could establish reality itself as based on varying ranges of thresholds of possibilities of existence. It would be an easy way out and would make reality in itself inductive, but it remains – forgive the pun – a possibility (of explanation).

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Serial Musings #3

I may be biting my tongue when I say this, but the emphasis on morphisms in category theory seems to be an interesting way to formalize this, especially as it is a function-oriented theory, which are processes applied to objects.

The difficulty here is to get rid of dependence on objects, or at least to be able to redefine them in a way that favours the flow of processes rather than static conceptions of immutable blocks of characteristics. Even so, some conception of identity is necessary, not as a timeless permanence or immutability, but as a transformation of oneself (in)to oneself over (some) time (period).

It seems to me that there is an interpretation of predicate logic in which predicates are as applications of functions over the subjects to which they apply. I may be wrong on this one, I honestly do not know.

In this way, we may attempt to define any entity as a nullary function that always returns the codified entity. Identity would be a singulary function on that entity that returns the entity itself, enabling the codification of time-dependent transformations. And if we start to consider time, we can make identity a binary function that depends on the time interval under consideration (or even ternary to account for the initial and final time interval under consideration).

It is important to stress that a process-oriented theory will fundamentally depend on time, but this does not betray our basic intuition: thinking depends on time, so it is no problem to keep operating with an underdefined concept of time. Especially because the difference between thinking and the thing thought is immanent in thinking itself, therefore, with the passage of time, corrections can be made, and we can achieve a better-defined concept of time (if not at least asymptotically).

The main problem to be faced by identity as function is the Humean problem of induction. Put simply, this is the impossibility of being sure about inductions, because things do not necessarily have to remain as they are. We can be convinced that they will be as they are – as formulated in Carnap's masterly book on probability – but to be convinced is not the same as to be certain (of the future).

Here comes into play the rigid designators explored by analytical philosophers (notably by Kripke). It seems that these do not depend on an immutable essence to maintain the link from name to thing (a link which, as we stated above, is internal to thought); rather, it seems these designators must only respect a threshold of (i)mutability.

How to determine this limit seems to be a specialized issue in each case (that is to say, a different threshold for each designator).

However, the proposal is made. Somehow, solving the problem of induction seems to lead to the resolution of the difficulties with the use of identities, or in other words, solving the problem of induction will free the notion of identity from the clutches of essentialisms.

Another aspect that seems to be essential: getting rid of geometric axiomatic based on the dot. Being able to develop spatial reasoning independent of the identification caused by the notion of dot will provide reasoning closer to the intuition of thresholds needed here.

Perhaps the notion of region, or space, or field, or environment, or something similar to these notions, is sufficient to formulate an expanded conception of identity that is independent of rigid equality. Here once again we are touching on the union between category theory and a functional approach: two morphisms are equal when their results are equal, even if the transformations operated in each one/by each one are different. It is something like a pragmatic equality, perhaps more appropriately called equivalence (literally: same value (at the end of the process)).

This resolution may betray our self-perception, it may hurt our ego, our pride, the feeling we have of ourselves, but it is not wrong just because of that.

The notion of an identity function (of oneself to oneself) is curiously similar to the notion of a bundle of perceptions from empiricism. A crucial point of divergence between the two proposals lies in the threshold of (i)mutability from which a bundle of perceptions ceases to be what it was and becomes another one. Would this be something similar to the passage from woman to mother? We do not know how to answer this for the time being, but the reflection is certainly valid, if not necessary.

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Serial Musings #2

For this second entry in the series, I would like to address an issue that puzzles me from the first time I came into contact with it: ontologies need not depend on objects, they can be process-oriented and function-oriented.

Reality, existence itself, seems to be time-dependent.

Even if it is a thought, which will need to take body somewhere, but is not necessarily located there, therefore independent of space, it will still need to exist temporally, that is, throughout its duration, whatever it may be.

Existence, therefore, is not a static characteristic of an object, but a time-dependent function (of consideration).

On the one hand, this allows ontologies to embed their own meta-theories; on the other hand, it allows self-hosting and bootstrapping. Thus, ontologies will depend much less on adjacent and auxiliary disciplines, and will still benefit from formal advances that deeply concern meta-theories.

Perhaps we may even call the classical ones "object-centered ontologies", not to confuse them with the contemporary "much ado for nothing" object-oriented ontology (I am unsure if it is permissible to pluralize it – but I am sure of what I read and it is weak).

For the time being, it is better to explore ways of formalizing this. The next entry in this series will deal with the first step towards this formalization.

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Serial Musings #1

This will be a series of posts on various subjects, but united, first, by the composition itself in a series; second, by dedicating themselves to the thematicization and formalization of issues that are uncommon in this blog.

For this first entry, I would like to make just a brief but provocative comment: induction and deduction form something like a continuum.

Let me explain: any powerful enough induction will be equivalent to a deduction in that same particular case.

Interpretative caveats belong to our approach to the particular case and do not strictly belong to the inductive reasoning in question.

These interpretative caveats are currently part of our approach to induction, but should they be so? Or should they belong to the epistemology of inductive reasoning? Induction, then, seems to be born tainted by the brand of the particular case: it must always be restricted to a specific situation, and cannot aim above time and space as deduction.

But given enough time, a sufficiently strong induction will work as a deduction.

What does this allow us to understand? Not much, because we are talking about induction and this limits us to the present as a time boundary.

For this entry, that's it. More time is needed to address the consequences. But it is impossible to move on without noticing it.

P.S.: the relationship between induction and the sources of information that feed the reasoning in question seems to be another sensitive point of the issue.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Método de Expansão Progressiva para Projetos de Romances (MExPRo)

  • Escreva uma sentença que resume a história do romance.
Pense algo como: "Um cientista volta no tempo para matar Hitler".
Temos aí tudo que precisamos para saber do que se trata: quem vai fazer o que e como vai fazer isso. Podemos utilizar qualificações ("Um cientista maluco volta no tempo…"), não é hora de colocar nome nos personagens.
Menos é mais: tente redigir algo com menos de 25 palavras.
Foque no drama, no conflito, e misture a imagem global à imagem local: o que está em jogo para quem? Quem tem o que a perder? E o que busca conseguir?
Dê-se tempo durante todos os passos. Todo tempo que tomar em cada passo você economizará dez vezes mais no momento de escrever o romance.
  • Expanda a frase para um parágrafo descrevendo a narrativa (eventos importantes e final).
Há uma fórmula utilizada no cinema, no teatro e nos romances de sucesso, que ajudará agora, chamarei de "três desastres e um final". Cada desastre leva aproximadamente 1/4 do livro, portanto 3/4 são desastres e o final é… O final.
  1. Começa-se com uma apresentação do mundo ficcional e do protagonista, seguida da preparação para o primeiro desastre.
  2. O primeiro desastre acontece por razões ligadas ao mundo ficcional, porém desvinculadas das ações do protagonista.
  3. O protagonista tenta resolver a situação, mas sua decisão só piora as coisas.
  4. Isso leva ao segundo desastre.
  5. Mais uma vez tenta resolver as coisas e isso agrava ainda mais o quadro.
  6. Isso culmina no último desastre.
  7. O protagonista sofre alguma mudança nesse processo todo e toma a decisão certa.
  8. Isso leva ao final.
Isso faz com que o parágrafo tenha cinco frases:
  1. ambientação;
  2. primeiro desastre;
  3. segundo desastre;
  4. terceiro desastre;
  5. final.
  • Desenvolvimento das primeiras notas sobre personagens.
Agora que você tem a visão geral da história, é preciso pensar nos agentes dessa confusão. Os personagens constituem o mais importante da sua ficção. Esqueça enredos complicados, plot twists e qualquer outra coisa. Personagens fazem toda a diferença porque nos ligam ao mundo ficcional. Portanto todo tempo utilizado aqui será recompensado no momento de escrever.
Faça um sumário para cada personagem principal contendo as seguintes informações:
  1. Seu nome.
  2. Uma frase de resumo da sua história dentro do romance.
  3. Sua motivação: o que ele quer, em sentido abstrato?
  4. Seu objetivo: o que ele quer, em sentido concreto?
  5. Seu conflito: o que o impede de alcançar seu objetivo?
  6. Sua transformação: o que ele aprenderá? Como ele se modificará por causa disso?
  7. Um parágrafo resumindo sua história dentro do romance.
Como saber se um personagem é principal? Simples: ele causa e/ou resolve algum dos três desastres? Em caso afirmativo, é um personagem principal. Se ele causa o segundo e o terceiro conflitos e resolve o terceiro, então ele é o protagonista.
Se, neste passo, você perceber que precisa voltar ao parágrafo de resumo do romance para corrigir alguma incongruência em relação aos personagens… Volte lá e arrume! Isso é um ótimo sinal, pois significa que seus personagens estão te contando a história deles – a qual é a história que você irá contar quando sentar-se para escrever o romance ao final do planejamento. Por isso volte sem medo ou vergonha. Qualquer revisão feita agora previne revisões em manuscritos com centenas de páginas.
Não se importe tanto em fazer algo perfeito. Importe-se em fazer essas anotações e seguir para o próximo passo. Esse é o propósito do passo-a-passo: terminar um passo para alcançar o próximo. É saudável voltar e modificar, significa que você está se envolvendo cada vez mais com a história e está amarrando as pontas soltas. Isso garantirá um romance muito bem acabado.
  • Volte ao resumo do romance feito no segundo passo e transforme cada uma das cinco frases em um parágrafo.
Por aqui você já deve ter passado um ou dois dias, talvez mais, desenvolvendo os passos anteriores. Ótimo! A pressa, neste caso, é inimiga mortal da perfeição, pois estamos trabalhando (indiretamente) com o inconsciente e este exige seu próprio ritmo, tem seu próprio tempo.
Leve quanto tempo precisar – provavelmente algumas boas horas – transformando cada uma das cinco frases presentes no resumo do romance (do segundo passo) em um parágrafo inteiro. Se as contas estiverem corretas, todos os parágrafos terminarão num desastre, exceto o último, o qual deverá conter o fim da história (realmente conte como tudo termina).
Por trabalhoso que pareça, tente se divertir, é um dos passos mais parecidos com o ato de escrever ficção.
  • Volte ao terceiro passo e escreva sumários de uma página para cada personagem principal.
É hora de acrescentar carne ao esqueleto: volte aos sumários de personagens principais do terceiro passo e descreva os personagens em uma página (ou mais). Inclua tudo que puder, quanto mais souber sobre eles, melhor; isso garantirá um excelente romance.
Uma dica: tente contar a história da perspectiva do personagem sobre o qual está escrevendo. Isso ajudará a compreender sua personalidade.
Outra dica: demarque cada personagem por um arquétipo/função. Não se prenda à teoria de Jung ou qualquer outra, mas tente resumir o personagem em uma palavra, ex.: trickster, zoeiro, love interest, antagonista, rival, sonhador, etc.
Com certeza você terá de voltar ao que escreveu nos passos anteriores para ajustes e correções. Volte e corrija e ajuste, sem vergonha, sem receio, sem temor. Todo esforço agora será recompensado depois.
  • Retorne ao sumário do romance feito no quarto passo e transforme cada parágrafo em uma página.
No quarto passo você transformou as frases (do segundo passo) em parágrafos. É hora de repetir esse gesto e expandir cada parágrafo em uma página (ou mais) de resumo da história. Agora você começa a detalhar cada desastre e a relação do protagonista com a situação.
Certamente você terá de retornar aos passos anteriores para arrumar as coisas. Desavergonhe-se e volte com toda a certeza de um bom arquiteto de ficções. Seu edifício se manterá glorioso e firmemente de pé devido a essas correções retroativas.
  • Expanda as descrições dos personagens feitas nos terceiro e quinto passos até não poder mais.
Escreva tudo que souber e puder sobre seus personagens: data de nascimento, comida favorita, cor favorita, também o que detesta, aquilo que lhe é indiferente, seu porte físico, de que se compõe seu guarda-roupas, manias, tiques, sua história, e o mais importante: como mudará ao final do romance.
Neste passo você deverá acrescentar os personagens secundários e os terciários.
Personagens secundários são aqueles que aparecem e interferem na história, possuem personalidade distinta, mas de quem não acompanhamos a história.
Personagens terciários são aqueles que aparecem, mas não interferem na história, portanto não possuem personalidade notável e não sabemos suas histórias.
Exemplo de personagem secundário: um avô conselheiro do protagonista, mas só o encontramos algumas vezes, quando o protagonista atende ao telefone (ou telefona) e quando vai visitar a casa de campo.
Exemplo de personagem terciário: o garçom do bar no qual o protagonista conversa com sua paixão.
Como você pode perceber, os personagens terciários são extremamente fugazes, mas você sempre pode apimentar as coisas colocando um pouco de personalidade em algum gesto ou fala desses personagens: quem sabe o garçom encara demoradamente os olhos da paixão do protagonista enquanto os serve…
Não tenha dúvidas de que os personagens farão demandas quanto à história; você deve atendê-las: volte e corrija retroativamente o que escreveu nos passos anteriores, a fim de manter a coerência da sua ficção.
  • Retorne ao sumário expandido do romance no sexto passo e faça uma lista de cenas.
Faça uma lista das cenas presentes em cada parágrafo do resumo estendido do romance produzido no sexto passo. A lista deve conter uma frase para cada cena.
Cenas sempre se encadeiam em pares de eventos seguidos pelas sequências desses eventos. Portanto, se você escreveu uma frase que resume uma cena na qual algum evento leva os personagens à ação, a frase seguinte (que resume a cena seguinte) deverá ser uma sequência em que os personagens reagem.
  • Expanda as cenas listadas no passo anterior para, pelo menos, um parágrafo.
A esta altura você já sabe o que fazer: abra um programa de planilhas (Microsoft Office Excel, LibreOffice Calc, Google Planilhas, etc.) e faça uma linha (ou coluna) para cada cena-de-uma-frase que você criou no passo anterior e associe a ela um parágrafo inteiro detalhando o que acontece. Também marque o foco narrativo: a partir do ponto de vista de qual personagem essa cena será percebida? Marque todos os personagens presentes na cena.

  • Uma breve explicação sobre eventos e sequências.
Um evento se divide em três partes:
  1. Objetivo: o que o personagem quer. Deve ser algo claramente definido e, portanto, específico. Isso fará o personagem agir ativamente.
  2. Conflito: obstáculos que impedem o personagem de conseguir o que quer.
  3. Fracasso: o personagem não alcança seu objetivo (se alcançar, você chegou ao final do romance). Algo ruim deve acontecer ao personagem.
Uma sequência começa do fim de um evento e também se divide em três partes:
  1. Reação: é a resposta emocional ao fracasso. Agora é a hora de fazer o leitor sofrer junto do personagem. Este é o momento para mostrar o tempo passando. Porém, não permita que o personagem chore para sempre; ele deve buscar suas opções, mas… Não há nenhuma opção…
  2. Dilema: é a falta de (boas) opções. Se o fracasso foi mesmo terrível, então não haverá boas opções. Permita que o personagem decida, ponderando qual a saída menos pior para a situação.
  3. Decisão: é a saída que o personagem ativamente toma para (tentar) melhorar (su)a situação. Faça-o tomar uma boa decisão. Uma decisão que o leitor respeitará, mesmo que seja arriscada. Dica: se for arriscada, ela precisa ter uma chance de dar certo, para ser respeitável. Faça isso e o personagem gerará um novo objetivo (o sucesso da sua decisão).
Assim a engrenagem da ficção só parará de girar na última cena, no final do romance, quando o objetivo for efetivamente alcançado.

Na pequena escala da estrutura textual, posso dar ainda mais uma dica: as cenas (sejam eventos ou sequências) devem ser escritas como pares de estímulo e resposta.
O estímulo é externo ao personagem e é percebido por ele, portanto utiliza-se de todos os recursos da percepção cabíveis à situação (os cinco sentidos, emoções imediatas, etc.).
A resposta é subjetiva e nasce do interior do personagem, portanto deve respeitar a ordem psico-fisiológica possível de se responder a uma situação.
Exemplo: "O tigre desceu da árvore e pulou na direção de Fernando." Eis o estímulo. Objetivo, direto, claro, breve, sem rodeios.
A resposta é sempre mais complexa que o estímulo porque incorpora o fator subjetivo (do foco narrativo, da perspectiva do personagem); por isso, respeita-se a agilidade natural: primeiro a emoção, depois o reflexo, por fim raciocínio lógico e fala estruturada.
Exemplo: "Sentindo a terra tremer sob o peso do animal, suas pupilas dilataram, seu coração acelerou e Fernando foi tomado por uma explosão de adrenalina. Alinhou a espingarda no ombro, mirou o coração da fera e pressionou o gatilho.
— Morra, degraça!".
É perfeitamente aceitável produzir uma resposta parcial, que não contemple as três dimensões (emoção, reflexo, raciocínio/fala), mas é preciso que se respeite essa ordem. Se o personagem precisa falar, então é preciso passar pelas duas primeiras etapas da resposta.
Para continuar o funcionamento da máquina ficcional, retorna-se ao estímulo: "A munição estalou no lombo do animal. Sangue esguichou da ferida. O tigre rugiu e hesitou, então saltou rumo à garganta de Fernando."
E assim segue.

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Escrito em um minuto

Quando Carrie cruzou a porta do escritório carregando o pacote fechado, Thomas só teve tempo de arregalar os olhos e abrir a boca.

O estrondo anunciou os cacos de vidro arremessados até a calçada em frente, donde Jolson, o ex-funcionário, contemplava a cena, acendendo um cigarro e sorrindo.

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Cena do cachorro-quente

― Vou comer assim porque você sempre me tratou feito lixo mesmo. Acostumado eu já tô. É só um pouco mais de sabor.

Comeu o cachorro-quente com areia e grama sob a chuva.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Há muita ironia…

… em acreditar que a autoria seja alguma forma de autoridade: já se devassou demais o auctoritas etimológico. Quero dizer em contrário, especialmente meu posicionamento atual: o artista é algo como uma força, uma aura, uma carga quase sobrenatural aposta ao sujeito, um acosso incorpóreo – ou cujo corpo é a imaterialidade – que se apende à empiria. O mesmo acontece à arte, apende-se certo deslocamento à matéria, à revelia de sua resistência. Uma evidência histórica excelente, clássica e pouco explorada: o quanto se atribuiu genialidade a Leonardo da Vinci, enquanto boa parte das geniais criações dele foram, mais tarde, devolvidas ao nome Bernardino Luini. Por medo de perda de importância das obras, assume-se que sejam cópias pouco deturpadas de originais de Leonardo. Não é isso mesmo o artista, aquele que repete esses vapores invasivos a que chamamos ideias? Conceber a arte a partir de pretensos originais é uma estupidez sem tamanho – não passa de matéria reorganizada (ou desorganizada); algum idiota ousaria clamar que as sensações, as emoções e os sentimentos que sente são propriedade privada, ninguém mais poderá senti-los a partir da data de registro legal? Se Luini foi descreditado (o termo é necessário para nossos dias) em vida e por muito tempo após sua morte, como faremos justiça às atribuições errôneas geologicamente (des)estabilizadas? Como afetar o tempo se não temos uma máquina do tempo para dar conta do recado? Há que se viver fora de época.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Sobre o vanguardismo em arte atualmente

Estou de volta no bonde Maiakovski, crendo que sem forma, etc. Quero dizer, nunca engoli esse papo do pessoal de ficção de gênero [genre fiction] de que inovar o conteúdo, o assunto, é um vanguardismo. Primeiramente porque os vanguardistas não fizeram isso, senão estipularam procedimentos artísticos, métodos, maneiras, modos de fazer, fosse essa arte efetivamente feita ou não. Quero dizer, é preciso tratar o tema com uma apresentação à altura de sua ousadia – sem isso fica impossível respeitar qualquer esforço (os fatos me corroboram). Segundamente porque os vanguardistas estavam certos, é no procedimento – primo próximo da forma – que se encontra seguramente o novo (por vezes tomado do velho, mas sempre diferente deste de alguma maneira). Se inovando na forma rapidamente esbarramos nos limites das artes, ainda persistimos buscando os horizontes da Arte. Sem a tradução (transcriação?) da inovação procedimental em inovação formal conforme operada pelas vanguardas (n.b. pré- e pós-guerra) não teríamos o sentimento (e o sentido) do novo em arte. Não inventaríamos. Contudo, inventar é o mote (e a glosa).

domingo, 19 de janeiro de 2020

Dez dicas de Fabián Casas para quem quer escrever ficção

Meu amigo Duncan sempre me diz que pode ver o futuro. “Isso ou aquilo vai acontecer com você”, ele me diz e invariavelmente acerta. Lembro-me de uma vez em que Leonidas Lamborghini, recém chegara do México, disse-me que a poesia tinha um poder oracular. Agora meu amigo Duncan tem que terminar um livro e me pediu “algumas dicas para escrever quando não consigo escrever”. Portanto, estas anotações são uma carta a um jovem profeta. Lá vão, Duncan.
  1. Escreva como se seu leitor não fosse surgir enquanto você estiver vivo, isso é libertador.
  2. Abandone qualquer reivindicação de originalidade. Pegue um autor que você gosta e copie-o até deformá-lo.
  3. Se o que você escrever parecer muito literário, é possível que você esteja exportando uma imagem da literatura a outra: isso ajusta as imagens e é chamado de “casamento entre primos”. Explico: na história “Palo y hueso”, Saer descreve a luz que uma lanterna faz numa cabana na encosta. Isso ele não tirou da literatura, porque sentimos que Saer viveu isso.
  4. Dos escritores que se lê, não é tão importante o conteúdo nem a forma como escrevem, mas a operação mental. Assim, Armando Bo faz Isabel Sarli chegar a Paris em um trem do nosso Conurbano. 
  5. O que Bo faz é fazer a realidade funcionar a seu favor, como Aira, Rejtamn, Uhart, etc.
  6. Agora uma linguagem inclusiva está surgindo; espere até que esteja bem assada: você precisa ser politicamente concreto, mas não politicamente correto.
  7. Se você está no meio de um parágrafo porque não consegue tirar um personagem de uma sala, explique a alguém o que deseja fazer e ouça o que lhe responderão. Em seguida, coloque no papel.
  8. Para escrever, é essencial “ter experiência”, isto é, aceitar que você é mortal e que as coisas que você vê, ouve e toca desaparecerão com você.
  9. Primeiro você precisa ser um leitor criativo para depois escrever. Você precisa escrever – como Pierre Menard – enquanto lê.
  10. Sorte.

sábado, 18 de janeiro de 2020

A vivificante magia dos romances

Ao abrir um livro, mergulhamos em histórias diferentes até esquecermos da nossa. Outras vezes, descobrimos coisas sobre nós mesmos através dos personagens. Uma boa leitura pode ser o melhor refúgio para aliviar nossa alma e um antídoto contra as adversidades.

O mundo já não é maravilhoso, deixaram-no assim. Como em jet lag permanente, não pode se conectar com a realidade circundante. Freud disse que palavras e magia eram a mesma coisa a princípio. É por isso que continuamos a procurar refúgio nos livros quando a vida parece uma piada estúpida? Você, passageiro em horas baixas, abre um romance e, nas suas páginas, encontra algo como um barco salva-vidas, um alívio balsâmico à inquietação.

Os leitores vorazes sabem muito bem que livrarias e bibliotecas são um kit de primeiros socorros eficaz para a alma, como já declarado na Antiguidade. Ficção e poesia, diz a romancista Jeanette Winterson, são medicamentos que curam a ruptura que a realidade causa em nossa imaginação. De acordo com o tópico Horaciano dulce et utile, ensinam-nos deleitando-nos. O eco das palavras, o ritmo e as imagens com uma grande carga emocional inundam e ativam os recessos da consciência. Quando lemos um texto literário inteligente e sedutor, o mundo se torna mais habitável.

A biblioterapia é possível graças ao choque de identificação que ocorre no leitor quando se vê refletido na história.

Entre os benefícios da leitura de ficção, o primeiro, por mais óbvio que seja, é se conhecer melhor. Proust, que hoje poucos negariam suas aptidões para a ciência cognitiva, afirmou que cada leitor, ao ler, é leitor de si próprio. Ele acrescentou que o trabalho do escritor nada mais é que uma espécie de instrumento óptico oferecido ao outro para permitir discernir o que, sem esse livro, não poderia ver. Entrar no universo dos romances é viver várias vidas. Com um livro em nossas mãos, um terreno se abre diante de nós para experimentar diversas circunstâncias sem fim. A biblioterapia é possível graças ao choque de identificação que ocorre no leitor quando é refletido na história. Temos empatia com outras pessoas, com outras formas de pensar. Além disso, a leitura é uma emocionante aventura intelectual. Para André Gide, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, ler um escritor não era apenas ter uma ideia do que ele diz, mas é fazer uma viagem com ele.

A leitura nos coloca em um espaço intermediário: enquanto nos suspende, liga-nos à nossa essência mais íntima, um bem valioso para manter certo equilíbrio nestes tempos de distração. A leitura, disse María Zambrano, dá-nos um silêncio que é antídoto para o barulho à nossa volta. Dá-nos um estado agradável semelhante ao da meditação e nos dá os mesmos benefícios que o relaxamento profundo. Ao abrir um livro, conquistamos novas perspectivas, porque a ficção compartilha com a vida sua essência ambígua e multifacetada. Como só podemos ler um número limitado de títulos, o que estamos procurando? Obras que reafirmem nossas crenças ou que as façam vacilar? Kafka foi muito claro: só devemos entrar nas obras que mordem e perfuram: “Um livro tem que ser um machado que abre um buraco no gélido mar dentro de nós”.