sábado, 31 de dezembro de 2022

Última entrada deste ano

Disseram-me hoje ser possível manter um diário sem escrever diariamente. Foi como dizerem que me amam. Palavras suaves e doces — alívio. O que livra do peso, liberta da obrigação respeitando a vontade, banha feito bálsamo.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Quando o céu é mais azul


O céu não é mais azul quando o sol despe-se de nuvens. Esse céu é apenas quente e amplo. O céu deixa-se azular quando sorris após o tapa tão leve, simbólico, sucedâneo do adjetivo (idiota), prenúncio do esplendor em teu rosto. Ali, naquele instante. O céu mais azul. Da cor da esperança e da melancolia. Dos sentimentos gêmeos: sol e lua de mãos dadas no amanhecer. O céu queima sob o astro nu; teu rosto queima o coração. Cerúleo (adjetivo): quando miro ao lado e o vento denuncia que teu perfume impregnou o ombro esquerdo da camiseta: jamais posso lavá-la novamente, só a memória já não basta. Tudo isso ainda não é dizer nada e tu o confirmas sem dizer palavra. Chegará algum dia o fatídico episódio quadragésimo nono da série (para a alegria dos que assim nomearam a situação, é claro)? Tu bem sabes; também sei. Não bastou. Nem basta. Bastará? As mordidas dos mosquitos já não coçam quando essa hora alcança o íntimo. Se ao menos teus olhos

terça-feira, 29 de março de 2022

Comentário leigo a Bava Batra 4a:3

Bava Batra 4a:3

Herodes disse a ele: “eu sou esse. Se eu soubesse que os Sábios eram tão cautelosos, não os teria matado. Agora, qual é o remédio deste homem?”, ou seja, o que posso fazer para me arrepender de minhas ações errôneas?

Bava ben Buta disse-lhe: “aquele que extinguiu a luz do mundo ao matar os sábios da Torá, como está escrito: ‘Porque o mandamento é uma lâmpada e a lei [ou seja, a Torá] é luz’ (Prov. 6:23)1, deve ir e ocupar-se da luz do mundo, isto é, do Templo, como está escrito em relação ao Templo: ‘E todas as nações fluirão para esse [lugar]’ (Isaías 2:2)2, [a palavra] ‘fluirão’ aludindo à [palavra] ‘luz’.”

Comentário leigo

Como Bava relacionaria as palavras “fluirão” e “luz”? Isso se deve à estrutura das palavras nas línguas semitas (línguas como o hebraico, o aramaico, o árabe e outras).

As palavras nas línguas semitas compõem-se a partir de uma raiz consonantal, não a partir de algumas sílabas com vogais e consoantes como em português (e todas as línguas neolatinas). O que une todas as palavras relacionadas à escrita, no português, é o bloco escr-, como em escritor, escrevente, escritura, escrever, etc.

Nas línguas semitas, o processo é diferente: as consoantes k, t e b compõem todas as palavras ligadas à escrita e a documentos escritos, como livros, vide os seguintes exemplos em hebraico: kāati (כתבתי): “eu escrevi”, kattāā (כתבה): “artigo”, miḵtā (מכתב): “carta-postal”, miḵtāā (מכתבה): “escrivaninha”, kəī (כתיב): “soletração”, taḵtī (תכתיב): “prescrito”, uttā (מכותב): “destinatário”, etc.

Além disso, o sistema de escrita hebraico registrava somente as consoantes das palavras. Apenas a partir do século Ⅸ E.C. desenvolveram-se sinais diacríticos que se adicionam às consoantes hebraicas para indicar as vogais das palavras — pequenos pontos e traços adicionados acima e abaixo das consoantes, chamados nəqudōt (singular: nīqqūd).

Daí Bava poder relacionar as duas palavras (“fluirão” e “luz”), pois continham as mesmas consoantes nos dois versículos citados por ele (wə·nā·hă·rū — וְנָהֲר֥וּ — nêr נֵ֣ר formando a raiz consonantal n-r, explícita em nêr e contida em nāhărū, assim uma palavra estaria dentro de outra, em seu interior, compondo seu sentido íntimo, isto é, de dentro, não oculto, mas literalmente — à letra — interno). Eis porque a hermenêutica judaica é uma hermenêutica eminentemente da letra e da palavra, não cedendo ao império do significado, senão abraçando os indícios deixados pelos significantes em seu rastro.


  1. nêr (נֵ֣ר): “lâmpada” (substantivo masculino singular), miṣ·wāh (מִ֭צְוָה): “comando, mandamento” (substantivo feminino singular), wə·ṯō·w·rāh (וְת֣וֹרָה): conjunção aditiva “” + “Torá” (substantivo feminino singular), ’ō·wr (א֑וֹר): “luz” (substantivo comum de dois gêneros singular).

  2. wə·nā·hă·rū (וְנָהֲר֥וּ): conjunção “” + “fluirão” (verbo de tema leve, isto é, simples, chamado tema qal (קַל), modo conjuntivo, aspecto perfectivo, conjugado em terceira pessoa plural comum de dois gêneros).

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Diálogo sobre nódulo negro no coração

— Esse é o nódulo negro de meu coração que alguém ainda há de curar.

— Mas é teu, tu deves curá-lo.

— Não mesmo. Não foi posto em mim por mim, não serei eu a curá-lo.

— Mas tu o sentes, deves tirá-lo daí por ti mesmo.

— E todas as vezes que fui sincero? Fui porque quis? Não há nada além disso, é o que me dizes?

— Sim, isso te foi bom. Não te sentes bem, aliviado talvez, de teres sido sincero?

— Nem um pouco! Tive que medir palavras, cuidar para não machucar quem não me cuidou. Então a responsabilidade vai para a merda, é isso mesmo!? Ninguém é responsável ninguém, é isso mesmo? As palavras já não valem nada, é o que encontro a cada esquina.

— Não…

— É claro que não estou bem de ter sido sincero, mas que posição idiota e servil. Então agora todos devemos agir como nos sentirmos bem agindo? Agir como bem quisermos? Isso não faz sentido algum. Eu me sentiria muito bem matando quem me feriu assim, então devo matar? Deixe de bobagem, isso é insustentável.

— Eu nunca supus que esse dia chegaria, mas… tens razão. Não me agrada em nada admitir, mas estás certo, sim.

— A justiça é uma tarefa infinita, impessoal. Antecede preferências e gostos. Poderia dizer até que é uma questão divina, tão objetiva e suprema a justiça se nos afigura. A justiça pouco tem a ver com o que se quer, habita o que se deve, o que é certo, mesmo que ninguém seja capaz de cumpri-la, dar-lhe corpo neste mundo terrível.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Breve nota sobre arte como espelho do humano

A arte pode servir como espelho dialético para o humano. Não se diz espelho simplesmente, senão espelho dialético devido às distorções (ênfases, apagamentos, etc.) postas em arte, com as quais o humano deve se ver. A arte é, portanto, sempre política, mas de uma política própria, possui sua própria politicidade. No narrado e no silenciado de uma narrativa constam porções do humano. O humano inteligibiliza-se (a si mesmo) em constituição ou já constituído, fora de si, mimetizado ou espelhado, narrado ou cantado. Há jogo nesse encontro consigo enquanto semelhante e dissemelhante: generalidade e singularidade dançam. Não que a arte seja antropológica — a arte não é o humano —, mas como a antropologia também dança entre semelhança e dissemelhança humanas, aproximam-se por aí. Num exemplo: há grande dificuldade em compreender como a literatura situa-se no limite das ciências psíquicas: as línguas criam (um)a (ilusão(?) de) psiquê, à qual se reage, durante a leitura, como a uma psiquê real (passeando entre própria e alheia).1 Nessa capacidade de emular (ou até re|produzir) aquilo que o humano toma por seu mais íntimo, a arte expõe como esse íntimo não é próprio nem íntimo (como inacessível e/ou inalterável). A arte partilha com o trabalho ((do) humano) a utilização de materiais alheios e prévios — objetos, coisas, pedaços de mundo, mundos — para a re|composição de si, de seus produtos. A violeta do haiku de Bashô é menção à violeta real encontrada pelo caminho (se isso sequer ocorreu2) e é ideação da violeta e é palavra e é surpresa e é salto à vista e é… Eis a desorganização (e re|composição (ontológica)) operada pela arte: mistura sem confusão — o guarda-chuva e a máquina de lavar se encontram para um café de barro nas costas de um besouro feito de saudades e pigarro.

You can’t love a city (that’s gray).


  1. O fato de haver um “como” na sentença não é gratuito — evidencia (a necessidade d)o jogo das dis|semelhanças.

  2. Esse é outro jogo importante da arte (i.e. das línguas), como canta Elba Ramalho em “Chorando e cantando”, com Geraldo Azevedo: “fazer (e) acontecer (verdades e mentiras)”.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Cachorro uivando pra Lua

A esperança é um dom
Que eu tenho em mim, eu tenho sim

Letra de Sonhos, de Peninha, na voz de Caetano Veloso.

Cachorro todo negro uivando pra Lua, só lábios e dentes, unhas e patas. É preciso ter orelha de casaco, aquecer palavras em forno de macarrão. Parede de caramujo por dentro: estrada para oito foras em caminho de gosma branda. Insetos de três metros feitos de órgãos e um quarto servem jantar na superfície do planeta escuro. Vermelho tem gosto de colcha de cama em dia de domingo. Como se confessam as borboletas com pontas de asas verdes? Deus escuta os clamores das réguas de bilhar. Dois reais e quarenta e sêmola. Cinco janelas de cactos: carro afundado em lago congelando. Um grampo de roupas preso no varal sem língua, chinela velha de iogurte, nem bem colher de lavagem a seco, paletó e gravata, tampa semiaberta pro carrossel. Tuba no circuito dos soldados. Por que as ilhas escondem os anjos canibais? Carne de pombo amarelo, pescoço de colchão, chapéu de bebê lagartixa. Há trinta e sete ventos no subsolo do ventre do urubu. Quem lamberá o painel de verdades futuras? Choverá ontem. Nenhum clima político no barro do céu em fim de tarde. Até pegar grama na voz; passarinhar o galho das ideias. Encontrar-se, quem poderá? Neva-se no barbeiro da esquina. Como jogar joelho com futebois tortos? Desinfle a árvore do mundo. Mãe é nutrição. Nem montanha faz introdução. Fecha esse filme, não resta esperança para as cascas da imagem a contragosto. Que salgar tem a tarde quando se reflete nas asas da garça em pleno voo? O vidro do peixe escorregando pela fralda suja da mansão. Cole meleca debaixo da mesa do sublime. Onze é quatro, homem com hexágono braços e uma quantidade total de azul pernas. Barba de rezar terço; azulejo amarelo de experiência da lira; sofreguidão brilha em um frasco de xarope avesso ao alcance do toque.

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Breve consideração sobre símbolo e alegoria

O símbolo e a alegoria não diferem por aquilo que representam, seus objetos, a ideia no símbolo e o conceito abstrato na alegoria. Diferem no modo de representar, na maneira de expressar seus objetos. O símbolo visa ao instante místico de união entre representante e representado: o crucifixo é apenas uma escala reduzida, uma miniatura, da cruz em que Jesus foi morto. Essa relação de ícone ou índice esconde, sob uma fachada de simplicidade, uma complexidade de referências, lembranças, etc., que se acumulam historicamente naquele instante, densificando-o. Contudo, dadas essas condições, a identificação — a compreensão — é instantânea: crucifixo→cristianismo. Trata-se de uma expectativa da união mística — presença do sentido (como presença) — no liame entre representante e representado: a (suposta) imediaticidade do sentido (que é muito mediado). O crucifixo, é claro, evoca a história da redenção (a paixão de Cristo) e a redenção da história (o perdão de todos os pecados, a salvação). Essa condensação de significados (e histórias) num único símbolo cujo reconhecimento (dada a familiaridade) é rápido (devido à sua estrutura icônica ou indexical) produz a sensação (ilusória) do instante saturado, preenchido ao máximo, contendo toda a história (toda futuridade do futuro) em si.

A alegoria desacelera o instante de adensamento e transformação da história (mundana) do símbolo e contempla tudo numa tal lentidão que os liames parecem perdidos, tudo parece arbitrário, desvinculado de toda relação. Como a alegoria não se vale de qualquer (pretenso) naturalismo entre representante e representado, pode se valer de figuras concretas, como Virgílio e Beatriz em A divina comédia. Por isso a alegoria não se reduz à expressão convencional, mas é também e importantemente a expressão da convenção, a representação da convencionalidade. Como a expressão alegórica toma por seu objeto a convencionalidade, a insignificância e a indiferença aparecem em seu funcionamento, pois a convenção mesma é expressa, significada. Devido a seu uso de materiais concretos para fins alheios a si mesmos — o entendimento comum da alegoria como metáfora estendida ou prolongada —, a alegoria destrói para construir algo novo, diferente, com as ruínas do velho, do destruído. Como a alegoria constrói com os materiais destruídos, manipula-os, rearranja-os, resta sempre impressão (nos dois sentidos) da construção. Assim, a alegoria expressa a própria forma da interpretação: remeter a outro, impressão da construção, rearranjar ruínas. E a história, quando adentra a alegorese, já não é mais economia da salvação, história de futuro certeiro, isto é, não-história, mas, agora, sim, finalmente é história, pois a historicidade — futuridade do futuro — está viva e ativa.

sábado, 5 de fevereiro de 2022

Sobre o sonho: crítica teórica à prática

É impossível compreender a lógica — alógica, ilógica — dos sonhos sem tomá-los por aquilo que realmente são: acontecimentos objetivos, isto é, impessoais e verdadeiros. Sonhos pertencem à mesma categoria de acontecimentos a que profecias pertencem, portanto, sonhos também pertencem à esfera da comunicação — mais, da linguagem.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Sobre o ciúme

Num vídeo de Christian Dunker sobre o ciúme, o psicanalista brasileiro insiste na estrutura projetiva do ciúme a partir de Freud. Para exemplificar, ele cita a peça Otelo, de William Shakespeare, como exemplo de um ciúme impensado por Freud, além de mencionar o romance Dom casmurro, de Machado de Assis, como um exemplo de "ciúme delirante".

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Hermetologia #14

Se a poiesis é chamada, na sua manifestação, no seu phanero, de tekhne, isso se deve à sua aproximação de superfície como produto de um pro-duzir, levar adiante, trazer à mostra, estimular o aparecimento. Mas o que é poeticamente — artisticamente — não o é do mesmo modo que seria se tecnicamente fosse. Este último toma aquilo que é apenas como meio, instrumento, ferramenta, matéria(-prima), insumo, recurso, expediente. Aquele, deixa ser em seu próprio ser e convida à convivência com isso.

A previsão calculativo-representacional não dá conta do que precisa ser conhecido, pois repete-se numa tautologia sem fim, uma vez que não avança do conhecido ao desconhecido, mas, pelo contrário, repete o conhecido em paráfrases inócuas.

Entretanto, poesia não nomeia somente o produto da poiesis (o poema, aquilo que, da poesia, se comunica), também (faz) fala(r) um jeito, um modo, um habitar. É o nome daquilo que nomeia todo nome: a linguagem — sem uma não há outra e vice-versa. Poético, portanto, não se reduz apenas a trazer à consciência a materialidade (gráfica, fônica, etc.) semiótica da linguagem, mas também chama a atenção para a maneira da linguagem fazer (aparecer) o ser, chamá-lo a ser como aparecimento na (e da) linguagem, pois sem esse aparecimento provocado pela (e na) linguagem, nem esse ser estaria (ali) sendo, nem nós (o) comunicaríamos (com ele e entre nós).

domingo, 16 de janeiro de 2022

Quinto prólogo de Aurora, de F. Nietzsche

Referência completa

Nietzsche, Friedrich. Prólogo. 5. In: Nietzsche, Friedrich. Aurora. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. (E-book. Não paginado.)

— E finalmente: por que deveríamos dizer tão alto e com tal fervor aquilo que somos, que queremos ou não queremos? Vamos observá-lo de modo mais frio, mais distante, com mais prudência, de uma maior altura; vamos dizê-lo, como pode ser dito entre nós, tão discretamente que o mundo não o ouça, que o mundo não nos ouça! Sobretudo, digamo-lo lentamente… Este prólogo chega tarde, mas não tarde demais; que importam, no fundo, cinco ou seis anos? Um tal livro, um tal problema não tem pressa; além do que, ambos somos amigos do lento, tanto eu como meu livro. Não fui filólogo em vão, talvez o seja ainda, isto é, um professor da lenta leitura: — afinal, também escrevemos lentamente. Agora não faz parte apenas de meus hábitos, é também de meu gosto — um gosto maldoso, talvez? — nada mais escrever que não leve ao desespero todo tipo de gente que "tem pressa". Pois filologia é a arte venerável que exige de seus cultores uma coisa acima de tudo: pôr-se de lado, dar-se tempo, ficar silencioso, ficar lento — como uma ourivesaria e saber da palavra, que tem trabalho sutil e cuidadoso a realizar, e nada consegue se não for lento. Justamente por isso ela é hoje mais necessária do que nunca, justamente por isso ela nos atrai e encanta mais, em meio a uma época de "trabalho", isto é, de pressa, de indecorosa e suada sofreguidão, que tudo quer logo "terminar", também todo livro antigo ou novo: — ela própria não termina facilmente com algo, ela ensina a ler bem, ou seja, lenta e profundamente, olhando para trás e para diante, com segundas intenções, com as portas abertas, com dedos e olhos delicados… Meus pacientes amigos, este livro deseja apenas leitores e filólogos perfeitos: aprendam a ler-me bem! —