domingo, 30 de abril de 2017

Últimos dois parágrafos de "O dilema do visível, ou o jogo das evidências", de Georges Didi-Huberman

Ora, o objeto, o sujeito e o ato de ver jamais se detêm no que é visível, tal como o faria um termo discernível e adequadamente nomeável (suscetível de uma "verificação" tautológica do gênero: "A Rendeira de Vermeer é uma rendeira, nada mais, nada menos" — ou do gênero: "A Rendeira não é mais que uma superfície plana coberta de cores dispostas numa certa ordem"). O ato de ver não é o ato de uma máquina de perceber o real enquanto composto de evidências tautológicas. O ato de dar a ver não é o ato de dar evidências visíveis a pares de olhos que se apoderam unilateralmente do "dom visual" para se satisfazer unilateralmente com ele. Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre uma operação sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Todo olhar traz consigo sua névoa, além das informações de que poderia num certo momento julgar-se o detentor. Essa cisão, a crença quer ignorá-la, ela que se inventa o mito de um olho perfeito (perfeito na transcendência e no "retardamento" teleológico); a tautologia a ignora também, ela que se inventa um mito equivalente de perfeição (uma perfeição inversa, imanente e imediata em seu fechamento). Donald Judd e Michael Fried sonharam ambos com um olho puro, um olho sem sujeito, sem ovas de peixe e sem sargaço (isto é, sem ritmo e sem restos): contraversões, ingênuas em sua radicalidade, da ingenuidade surrealista ao sonhar com um olho em estado selvagem.

Os pensamentos binários, os pensamentos do dilema são portanto incapazes de perceber seja o que for da economia visual como tal. Não há que escolher entre o que vemos (com sua consequência exclusiva num discurso que o fixa, a saber: a tautologia) e o que nos olha (com seu embargo exclusivo no discurso que o fixa, a saber: a crença). Há apenas que se inquietar com o entre. Há apenas que tentar dialetizar, ou seja, tentar pensar a oscilação contraditória em seu movimento de diástole e de sístole (a dilatação e a contração do coração que bate, o fluxo e o refluxo do mar que bate) a partir de seu ponto central, que é seu ponto de inquietude, de suspensão, de entremeio. É preciso tentar voltar ao ponto de inversão e de convertibilidade, ao motor dialético de todas as oposições. É o momento em que o que vemos justamente começa a ser atingido pelo que nos olha — um momento que não impõe nem o excesso de sentido (que a crença glorifica), nem a ausência cínica de sentido (que a tautologia glorifica). É o momento em que se abre o antro escavado pelo que nos olha no que vemos.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O dilema do visível, ou o jogo das evidências. In: ______. O que vemos, o que nos olha (trad. Paulo Neves). São Paulo: Editora 34, 1998, p. 76-7.

domingo, 23 de abril de 2017

The Traitor

Invaded by her name,
Her face, her hands.
Never her lips –
Thank god! –
I swear I could tear
My own head apart
Just by seeing her again
Right in front of me.
Just to let God come out
And punish, smash, torn,
Crash, diminish and
Humiliate
Her puny existence
Into a big, white and loud
NOTHING!

sexta-feira, 21 de abril de 2017

Um absurdo!

Igor S. Livramento e Joseph Michael Seaton

Minha gata costumava passar mais tempo comigo no meu quarto. Tão amável! Agora não! Agora só quer saber de ir pra casa das amigas fazer jardinagem.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

No ônibus [título provisório]

Hoje vi uma borboleta morta, imóvel, na calçada. Não quero falar disso, mas de algo tão fortuito quanto. Durante meu trajeto, tive um anjo ao meu lado. As mãos, tão finas e alvas, eram mármore vivo – enquanto estiveram sob minha vista, ansiei tocá-las. Sobre a destra um diamante preto, uma tatuagem, vocês diriam; eu digo: marca do mundo, seres tão frágeis não são próprios para a brutalidade deste jardim. Um de seus fios se desprendeu e meteu-se entre as páginas de meu livro – o cabelo não era loiro, era dourado, juro! Virou-se para se desculpar; as folhagens jamais terão o verde daqueles olhos. E a voz, tão doce, tão leve, embalou-me nestes e noutros delírios, ignorando o concerto do mundo. Desci de tantas alturas para lhe sorrir um "tudo bem". Hoje compreendi Baudelaire e sua passante.

Duas comédias cotidianas

Na aula
Igor S. Livramento e Jéssica Domingos Mariano

O mundo é duro – afirmou o professor veementemente. Se fosse mole, a gente afundava – respondeu a aluna de olhos curiosos.


No chat
Igor S. Livramento e Stephanie de Oliveira

Terminando esse relatório que estou fazendo vou correndo almoçar. Não ando comendo direito!
visualizada às 11:22

Mas é óbvio! Ninguém consegue andar e comer ao mesmo tempo, é muito difícil! Tem que sentar para almoçar, rapaz.
visualizada às 11:22

domingo, 16 de abril de 2017

Enquanto ferve, do café, a água

O texto que segue é uma releitura de Enquanto ferve a água do café, de minha querida Fernanda Marchi. A quem interessar o texto inspirador, segue o link: https://www.facebook.com/fernanda.marchi.7/posts/1096196537153812

Enquanto ferve, do café, a água

És lago sobre vulcão: aconchegante; se me deito longamente, murcho, resseco. Fervilhando; borbulho à superfície de ontem – fomos, não somos mais; éramos. Teu vapor-toque em meu rosto: seria eu, minha angústia, essa água quente escorrendo por fora?
Porque outrora nos embebia este bálsamo – um gole de café. Naqueles teus dias tão nossos, um energizante; hoje, analgésico para dores incorpóreas.
Tanto pensei em ti, a vida esfriou meu café. Minha negação.

quinta-feira, 13 de abril de 2017

Fama, Beleza—Estultícia

Beleza é uma contingência natural e um fruto de estabilizações culturais capaz de render a um sujeito contemporâneo fama.

Fama é um recurso contemporâneo capaz de render a um sujeito poder. O poder hoje não se dá primariamente pela via monetária, pecuniária (todavia permanece econômico), ele se dá na base da fama: alcance virtual-real sociocultural que um sujeito contemporâneo possui. Esse alcance é fundamental para obter certos resultados e atingir certos objetivos hoje – ou pelo menos é um facilitador extremo.

A fama, contudo, passa por convenções de sociabilidade e vivência, ou algo que assim podemos denominar. Essas convenções são formas de vida ou modos de viver que passam pela fama – alimentam-se dela, giram em torno dela e a produzem.

Assim, a verdade do sujeito contemporâneo é um círculo lógico (lato sensu) centrado na fama, onde esta passa a ser o sustentáculo sociocultural das vivências e das convenções desse sujeito.

Porém, para que a fama se sustente, ela demanda estultícia, pois necessita da estreiteza das formas de vida, as quais devem crer só haver um jeito, um modo de viver, um único caminho para a existência.

Deste modo, a fama e a beleza operam o círculo lógico da estultícia, cerceando as formas de vida e esvaziando de sentido qualquer noção minimamente oposta ou diferente delas, desaparecem quaisquer noções de tragédia da vida ou de (busca pela) realização do ser.

O que isso significa?

    Frio. Céu azul-escuro. Grande, fechado, branco, largas janelas, marquise. Música alta. Juntos, colados, movem-se, atravessam o chão, riscando com as solas dos sapatos. Menos volume; chuva. Lábios se movem; desencontram-se: do verbo 'sussurrar'. Abraço apertado; lentidão. Ele fecha os olhos, repousa a cabeça sobre o ombro dela – sorri. Ela suspira, fita o chão, seu rosto imitando o clima – boca trêmula.

Um poema para o comediante filósofo Johnny Kleber

De um lado da fronteira: boeuf;
do outro: ochs.
Mas o boi atravessa o território
e ninguém lhe pede passaporte.

O boi parece livre;
as palavras não o são.

A fome é de todos.

A tormenta; dor.

    Uma voz – tua voz – vinda de longe, de outro lugar. Fogo – queimou a carne. Tanta tormenta; tão largo sol, céu. Seria assim ali, lá, onde fosse, em nome de outro? Em nome de quem? Hein?! Palavrareia. Pá lavra areia. Não, não quero saber como. Com quem? [ ] ele tem [ ] eu não tenho? É isso?! É SÓ ISSO?! Lado-a-lado: sangrento inferno / singela flor.