terça-feira, 9 de janeiro de 2018

sem boca sem fome sem boca sem fome sem boca sem

Boca sem fome. Fome sem boca. Desejo.

Há um fenômeno contemporâneo que quero explorar aqui, evocado em mim por essa boca, digo, por essa foto. Trata-se da sedução: quero crer ser uma malignidade, uma maldade por excelência. A sedução é uma sobreposição (uma simultaneidade: um odio, enemistad, rivalidad, competición, mas competição de que, meu Deus!? Falaremos disso logo) de ausências. "Sobreposição de ausências? Estás louco, homem!? Acaso endoideceste? Ora (direis) ouvir estrelas! Certo perdeste o senso!" Não, mes amis, je ne suis pas fou. O que se passa é que há uma boca ausente em seu lugar e uma fome ausente em seu lugar, duas ausências num só lugar (seria isso uma frase de promoção? Sintomático, a lógica vigente opera através da sedução [e de outros dispositivos, é óbvio] e também da fome). A boca se ausenta pelo escamoteamento (planejado) da animalidade constitutiva do homo sapiens, exatamente a operação que sinaliza (a tentativa d)o início do humano (a tentativa de eliminar o animal humano e instituir o humano puro, daí todo pós-humanismo e trans-humanismo não passam de humanismo elevado a qualquer potência maior e a ecologia é um dos terrenos privilegiados do não-humano, quer dizer, da real saída do humanismo, um dos últimos refúgios do [verdadeiro] pensamento). A fome se ausenta pela (constituição do e) servilismo ao desejo (pela antropofagia simbólica constitutiva da sexualidade [feminina? A 'gina enquanto boca devorando o falo] e da cópula→sintomaticamente o nome técnico dos 'verbos de ligação'→cópula, copuladores, não apenas ligadores [lembremos Lacan: il n'y a pas de rapport sexuel→"não há relação sexual" como se costuma traduzir, não há completude, completação, ligação, vinculação←gosto como -ação emerge vez e outra, pulsando incontinente], senão devoradores, sexuadores, são operadores de sexuação, a divisão, a separação, o split constitutivo de todo liame, a [in]cisão de/do um produzindo o múltiplo, o gesto deflagrador do pensamento, daí a emergência da[s] verdade[s], são bactérias, vírus linguísticos incômodos, mas como me dizia um amigo antropólogo: "o que fazer com os índios que não têm o verbo ser?", boa pergunta, não consigo sequer imaginar como eles imaginam, como eles pensam, mas devo pensar para chegar lá, à altura deles). Desse modo, a sedução é uma malignidade, uma crueldade por excelência: não é boca animal (caminho inevitável da excrescência, o outro do ânus e o outro, sabemos, sempre constitui o eu, evoca-o pelo avesso, neste caso quase literal) que tem fome de carne sangrenta, de talo vegetal crocante, ou de sucos frutíferos, apenas uma boca de enfeite, querendo comer apenas o que não pode, o que se lhe impede, o proibido, não proibido por lei e decreto, afinal, não se trata de devoração digestiva, empírica, literal, quer dizer, é literal porque é de littera, de letra, de signo, de símbolo, de sentido(s), de experiência, de vida, é devoração semantont(ic)ológica (semântico-existencial, semântico-Real). Daí a sedução (seducção? Ducere ad se? Ou ab se? Levar a si, ou afastar de si? Os dois, talvez? Ou nenhum?) ser um simultas: ela diverge a atenção pela produção de ódio, ou diverge ódio pela produção de atenção, não importa, importa saber ela ser feita para seduzir os não-padrão (ou não-padrões, tanto faz, non-standard também non-default). 'Duzi-los ab se, fora de si mesmos, de suas preocupações (relevantes) e ad se, a si mesma, em direção à sedução ela mesma, claro, no processo (dialético) o movimento se repete, ad se, para dentro deles de maneira ruim, improdutiva e ab se, para longe da sedução como ela de fato é, apenas para como ela quer ser vista, como ela se faz sentida, não quem ela é realmente. Eis um pensamento!

Animais domésticos; mundos crepusculares

Dois crepúsculos.

Animais domésticos vivem num mundo crepuscular: nem selvagens, tampouco humanos (nem mesmo nós, homo sapiens, somos), eles coabitam (conosco) uma existência turva, um espaço interessante→inter-esse(re): entre ser(es), interstício, entrestações→statio, posto, parada, stare, estar, ficar, manter-se, stand(still)still life: a vida para(lisa)da, a vida não-viva, a vida que se recusa a viver (segund'os ordenamentos do imperador). Essa vida imperiosa é anômica: rege-se a si mesma e nada mais nem mais ninguém. É exatamente por isso que pode se enredar a e com outras vidas. Se pensarmos bem, o animal doméstico, habitante do'mos, enclausurado, é o homo sapiens, pois só ele faz questão da casa e passa muito mal sem ela. Ele passa muito mal sem ela. Como não? Ela é onde ele quer estar. Acho isso mesmo. Comvicção. Nu e cru ele passa mal. Ela lhe é essencial. Ele, sem ela, não sabe pensar, não sabe viver, não sabe ser. Ele pode e até vive, porém muito mal. Muito mal é interessante. É possível viver muito e viver mal simultaneamente? É bom ver como simultâneo tem dentro de si uma simulação→ação simulada, dizem que simul é latim para "ao mesmo tempo", que vem de similis, "parecido, similar"→similar. Parecença, lar e tempo se confundem, coexistem e não podemos fazer muito mais que suportá-los assim, juntinhos. Contudo, parece-me isso fundamental, um dicionário etimológico espanhol me diz simultas ser também originário e significar: "'rivalidad', 'competición', y también 'odio', enemistad'." ora se não é interessantíssimo! A misologia vive! Mais, ela habita! Ela tem lar e ele é a simultaneidade! O concomitante é o odioso por excelência! Que lógos fantástico se esconde atrás disso? Ou à frente, vai saber... Quero crer que seja a incapacidade semantocerebral, ou semântico-cerebral para os que gostam do bem escrever (escrever bem não é escrever ficção←Arturo Carrero), de tomar dois sentidos juntos duma tacada só. Essa limitação psicometafisi(c)ológica é, mesmo se apenas parcialmente, superada ou transcendida como gostam os "filósofos", pela transcendência. Ou pela Ideia (forma?), como queria Platão (e como quer Badiou, tanto faz). Ou pela subjetividade como gostam os psicologizantes. Ou pelo Ser, para os heideggerianos afoitos. Os kantianos já têm a resposta na ponta da língua. Importante aqui é lidar com esse resultado conhecidos dos estudos em semântico cognitiv(ist)a (neuropsicossemântica?)→por que temos essa limitação cérebropessoal? Como lidamos com ela aqui e como lidaremos com ela a partir desse saber (até porque "a partir de agora" não quer dizer nada sobre o saber em questão)? Tentaremos superar? Se for possível superar, teremos como saber? E se não for, também teremos como saber que não é (o que é um não-saber)? Seja como for acompanhado→apanhado com, junto tudo muda de figura.  E temos duas figuras, portanto. E dois figurões! Veja como eles encaram a coisa (toda)! O doméstico, a casa, o lar, o habitáculo, a residência, a morada, o teto, o ambiente, o espaço, o lugar. Agora penso mesmo: é preciso pensar!

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Final de "Pequeno manual de inestética"

3) A FIDELIDADE

a) Negativamente, o poema esboça uma teoria completa da infidelidade. A sua forma mais imediata é a memória, a infidelidade narrativa ou histórica. Ser fiel a um acontecimento não quer nunca dizer que dele nos recordamos e significa sempre, em contrapartida, os usos que se fazem do seu nome. Mas, para além do perigo da memória, o poema expõe três figuras tentadoras, três formas de abdicar:

— A identificação com o lugar, ou figura do êxtase. Abandonando o nome supranumerário, essa figura abole o sujeito na permanência do lugar.
— A escolha do simulacro. Aceitando que o nome seja fictício, essa figura preenche o seu vazio com uma plenitude desejosa. Desde logo, o sujeito não é senão a onipotência ébria, em que o pleno e o vazio se confundem.
— A escola dum nome imemorial e único, que suplanta e esmaga a singularidade do acontecimento.

Digamos que o êxtase, a plenitude e o sagrado são as três tentações que, do interior dum surgimento fático, organizam a sua corrupção e denegação.

b) Positivamente, o poema estabelece a existência dum operador de fidelidade, que aqui é o binômio das hipóteses e da dúvida que as afeta. A partir do que, se compõe um trajeto aleatório, que explora sob o nome fixo toda a situação, experimenta, ultrapassa as tentações e termina no futuro anterior do sujeito em que esse trajeto se transformou. Os tipos de trajetos aqui tomados em consideração relevam, quanto à determinação do «eu» atormentado pelo nome «essas ninfas», do desejo amoroso e da produção poética.

Do desejo que se liga ao nome daquilo que desapareceu, depende que, revogado esse desejo, um sujeito seja urdido por essa verdade singular, que ele fez surgir sem o saber.