terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Vivendo Insana Libido

            Sei que prometi a muitos amigos que comporia logo, mas tenho perdido o interesse na escrita devido às muitas leituras que propus a mim mesmo durante estas abençoadas e bem amadas férias. Por concluí-las me vejo sem tempo – e sem aquele ardor – da continuada produção literária. Cá, porém, temos o fruto de uma passada de roupa ouvindo música. Fruto parcial, talvez inteiro, inacabado, de toda forma, um rascunho do que um dia virá a ser este enredo intitulado Vivendo Insana Libido (ou como bem observou um grande amigo: “que bela sigla forma o título, não?”). Vamos à narrativa.

Vivendo Insana Libido

            Arturo é o nome daquele moço ali. Cabelos castanhos bagunçados, camisa de botões branca, desabotoada nos dois primeiros, exibindo a corrente dourada, honrosamente pendurada no pescoço, com o sobrenome gravado em letras grandes. No pulso direito vive o relógio de ouro branco, pontualmente marcado com cinco de atraso, para que seu dono sempre seja o primeiro, afinal, sente-se como o primeiro. Pele mais clara que as moças com quem fala, é tido em boa conta por todos, é o que parece a quem olha. Tem o corpo levemente definido, não é o maior fã de esportes ou musculação, prefere viver à própria maneira, apreciando um bom charuto, como faz agora, ou bebendo um uísque bem forte, com pouco gelo.
            Encostado em seu Corvette azul escuro, sente-se orgulhoso do dinheiro. Orgulhoso de si mesmo, como um campeão deve se sentir, pensa, afinal, foi campeão nos negócios. Estão, ele e as moças, conversando na frente do Larry’s House, uma discoteca muito boa, devo dizer. Muito famosa por sua música de ponta, sempre atual, além das batatas fritas com queijo derretido aos dançarinos esfomeados. A quem prefere os corredores que levam aos banheiros, a melhor cocaína está lá, pronta para ser comprada e cheirada. Tudo isso – é claro – só acontece à noite, porque é à noite que tudo acontece.
            Jogando seu charuto ao chão e pisando-o, Arturo finaliza a conversa com as bonitas morenas e se vai, guiando seu carrão por aí, apreciando o ronco e a potência, a velocidade e o vento no rosto, fresca brisa noturna de verão. Não longe do Larry’s, no caminho de Arturo, há um circo. Nesse circo uma moça muito formosa conta seu dinheiro. Quantas vezes já contara? Finalmente algum dinheiro! – comemorava. Arturo também contava seu dinheiro muitas vezes, não agora, sobretudo porque dirigia e ouvia mais um hit no seu toca-fitas, pisando forte para acelerar mais e mais, contrabaixo e motor misturados num só ritmo.
            Maria é a esbelta circense do dinheiro. A frágil dama protegida pelo domador, a equilibrista magnífica da corda bamba, a bailarina impetuosa e destemida. Quando começara lá? Já não lembrava. Desde que se lembra, a infância era um borrão, uma névoa só onde não se pode ver nem os próprios pés. Não se importava em saber, o circo poderia ser melhor que pareceria a muitos. Apesar do dinheiro quase sempre baixo, eram todos muito alegres e respeitosos, ninguém parecia maior que ninguém, exceto pela estatura fisiológica. É claro que sonhava dançar sob as luzes do teatro, ouvir as mil palmas, ser toda ela críticas artísticas em jornais famosos, sentir o perfume do marido na mansão e correr a beijá-lo, devolver-lhe o dinheiro investido nas apresentações com seu carinho e seu corpo sensual. Ela sabia bem, era caliente, era ardente, era mulher de verdade. Pois estavam contados os trocados e os sonhos postos na carteira. Decidida estava: badalaria em alguma boa discoteca, para sair um pouco do padrão, dançar algo diferente, beber algo bem forte e se divertir muito. Mesmo o trabalho divertido se torna estressante depois de algum tempo.
            É noite de segunda-feira, ainda são oito e meia, já se veem pernas entrando no Larry’s House, sedentas pelo ritmo e pelo groove, louquinhas para dançar até suarem toda a água de seus corpos. Pernas torneadas e acostumadas à dança entram também cedo, são as pernas de Maria. Não dançou assim que entrou, nem se deveria, seria ruim, estava faminta e beber de barriga vazia nunca foi boa ideia. Sentou-se numa das mesas do segundo andar, após subir as escadas aveludadas, e pediu as lendárias batatas, além de uma cerveja irlandesa. Pediu para beber no gargalo da garrafa mesmo, lera em algum jornal que agora as garrafas eram esterilizadas antes do reciclo, por isso não temia matar a sede e o desejo num só gole.
            Não comeu tudo sozinha, seria um desastre, sentir-se-ia pesada demais para dançar, talvez enjoasse. Henrique, loiro, olhos verdes, corpo bastante forte, não definido, responsável pelo transporte e montagem do circo a acompanhava. Secretamente – portanto ela não sabia – ele lha tinha tão forte afeto que a poderia beijar a qualquer momento, mas, lembremos, secretamente. Na superfície, apenas um cara jovem, forte, bom de piadas e tiradas, conversador e leitor de romances nas horas vagas, todos comprados usados ou doados, é claro.
            Enquanto Henrique apreciava sua cerveja, não irlandesa, mas mexicana, ela lhe disse, com licença, preciso ir, quero muito dançar e sabe que adoro sua companhia, mas um espírito livre precisa voar, ao que ele sorriu e consentiu com a cabeça, pensou consigo, que mal havia? e a deixou partir à pista de dança, não cheia – jamais uma discoteca encheria, não era do feitio das discotecas se deixar encher, mesmo por causa dos corredores que levavam aos banheiros – e ficou sentado, bebendo devagar e sentindo o corpo se guiar pelo coral feminino que dominava as vozes da canção, sentindo os breves ataques dos sopros metálicos acentuarem as sílabas tônicas das palavras da letra.
            Ah! Como era bom vê-la dançar fora das sapatilhas! Como era leve e desenvolto seu corpo, seus movimentos eram quase líquidos. Deliciava-o só vê-la dançar, mesmo que sonhasse em estar ali, ao lado dela, sentindo o amor enchendo seus pulmões e olhos e mãos e sentidos todos. Agora já eram dez e meia e ela voltou à mesa, com outra cerveja irlandesa, igual à primeira, exceto que era outra, porque estava cheia. Ofegando se sentou e sorriu, retirando da bolsa um pequeno pano com o qual secou a testa e o pescoço. Henrique apressou-se em abrir a tampa da cerveja com as próprias mãos, fazendo, em seguida, uma caricata pose de fisiculturista, a que Maria riu e tomou das mãos dele a garrafa. Lembrou-se ela, então, que desejara, na noite anterior, beber algo mais forte, mas como já iniciara nas cervejas, ficaria com elas até o fim. Boas irlandesas, disse, humanizando as cervejas e fazendo Henrique quase se babar, de tanto rir. Olhou, ela, para longe e viu um homem de cabelo castanho claro e bagunçado, muito bonito e ousado, bebendo uísque, fumando um cigarro branco e apenas acertando a ponta do sapato contra o chão no ritmo. Sentiu enorme vontade de falar com ele. E foi. Henrique se sentiu tomado de ciúme; reprimiu-se, contudo, não se relacionavam além da amizade, nada lhe cabia fazer.
            Olá. Você gostaria de dançar? Arturo a olhou da cabeça aos pés e de volta àqueles olhos negros como o abismo, ergueu o copo, como uma desculpa, ao que ela pegou e bebeu todo o restante de uísque num só gole, ainda que fizesse uma careta antes de devolvê-lo, vazio, às mãos macias do rico. Bem, se não te resta bebida, vamos dançar? Deixou o cigarro sobre o cinzeiro, esquecendo-se dele e beijo-a a mão. Quem seria a rainha que pede a Arturo, seu rei, que com ela dance? Maria, disse ela, corando e sorrindo, recuando a mão de volta e já lhe dando as costas, para retomar o ritmo e dançar. Pensou consigo como foi fácil beber algo mais forte, bastaria se livrar dele durante a dança e, se nada funcionasse, Henrique a protegeria, como não raras vezes já fez. Arturo, porém, lha agarrou pela cintura com mãos firmes e dançaram muito.
            Trocaram palavras demais para descrever. Conversaram tanto, sequer puderam dançar seus melhores movimentos um ao outro. Puderam apreciar as vozes, contudo, e como se apreciaram um ao outro! Conversaram tanto que Maria saiu de mãos dadas com Arturo, por uma porta aos fundos, após ver a pequena pilha de dinheiro que Arturo deixou, para pagar algumas contas. Seu Corvette azul marinho era tentador demais para não sentar e arrepiar com o enorme e barulhento motor. Estava ela apaixonada ou embriagada de paixão? Não sabia dizer, só conseguia rir de alegria e contentamento. Finalmente uma saída, um homem rico e encantador, um homem de verdade, cheirando a dinheiro e charuto. Esvoaçava os cabelos com o rosto posto para fora da janela, sentindo a noite preenchê-la toda. O vento secando os olhos e a garganta, mais que a cerveja, mais que o gelo seco da boate.
            Acordou na terça-feira muito cansada e com alguma dor de cabeça, não muita. Sabia que se lambuzara a noite toda com Arturo e ele já não estava mais ali, naquele motel fajuto, apenas seu recado em papel, manuscrito, dizendo está tudo pago, incluso almoço, não me procure, sei onde te achar; estaremos juntos de novo quando possível. Promessa. Ela sorriu e apertou o papel contra seu peito, podia sentir o perfume dele ali. Sabia, assim, que ele passava perfume nos pulsos também e isso era muito chique e o tornava ainda mais atraente, apesar do cheiro de cigarro e do sabor de uísque em sua língua.
            Henrique estava morrendo de raiva, de ciúme, de algo quente e intenso, algo fervente, algo vulcânico dentro de si mesmo quando Maria chegou. Não conseguiu ler o dia inteiro, seu peito apertava, era difícil respirar, tentou muito, sem resultado, seus pulmões pareciam cheios de uma névoa negra, sombria, densa, profunda demais para ser cortada ou afastada com razão e lógica. Ah! A dor humana! O sofrimento não é mesmo lindo? Tanta intensidade!
            Maria saiu várias vezes com Arturo, enquanto Henrique remoia-se, afastando-se dela mais e mais, esfriando em seu coração a chama que por ela, antes, queimava viva. Maria, lentamente, todavia, percebera que seu amado saía com outras. Que poderia fazer? Já não era tão jovem quanto antes e nem era tão ruim assim, ele sempre voltava, como prometido naquele pequeno bilhete que ela ainda guardava. Não é tão ruim, pensava consigo, enquanto descia um generoso gole de água fresca pela garganta, sentada detrás das cortinas, após longa dança. Muitos aplausos a coroavam, algumas vozes ainda a elogiavam, a chamavam linda, maravilhosa, delícia, mas que representavam essas vozes? Seriam outros, amando outras fora do espetáculo, que ali tornavam sua atenção a ela? Perguntava-se se o mundo estaria cheio de outros como Arturo... Até que avistou Henrique, correndo de um lado para o outro e sorriu aliviada. Alguém no mundo ainda lia romances, isso atenuava seu quieto e mudo sofrimento.
            Mais dia, menos dia, Arturo, vendo o sucesso do circo, quis se aproximar dos membros e se apresentar como pretendente, futuro marido de Maria. Não foi a mais feliz das escolhas, todos o conheciam antes de Maria e já o sabiam cruel amante de muitas. O fatídico momento encontrou sua concretização quando, em uma severa discussão com Henrique, após este quase bater o Corvette azul num estacionamento, Maria ouviu a verdade mais dolorosa: Arturo era cafetão. Comprava suas mulheres como a comprara. Motéis, carros, bebidas, cigarros, roupas, sapatos, a promessa de um futuro brilhante e a pretensa visão dos talentos de cada um. Mentiras. Não! Pensou ela, confusa. Mentira! Estão tentando tirá-lo de mim! Isso tudo é mentira! Gritava ela, caída sobre os próprios joelhos, na areia do estacionamento, com as mãos na cabeça, apertando forte, chorando, a maquiagem escorrendo como tinta jogada num rio.
            Arturo a amava de verdade, curiosamente. Vendo a loucura a que Henrique trouxe a moça, Arturo avançou nele, insano, irado, colérico! Henrique, muito mais forte da labuta diária, surrou o libertino até a morte, calando seus ensandecidos punhos apenas quando a carne do oponente jazia fria, o sangue todo espalhado, como uma pintura de criança, tortuoso e amplo.
            Preso pela polícia presente no local, Henrique deixou, ao contrário do que jamais pensou, Maria sozinha, pela primeira vez desde quando a conheceu. O peso da responsabilidade esvaía-se de seus ombros, esvaía-se vagaroso como uma ave que voa pela primeira vez. A estranheza daquela súbita leveza lhe causava um nojo incompreensível e certo desespero. Não conseguia, todavia, repelir o alívio. Era imenso demais para recusar um mergulho direto nele. Maria, do outro lado do espectro emocional, sentia o peso de um homicídio, um ódio, dois corações quebrados e todos os seus sonhos sendo enviados direto para o lixo, sem chance de volta. Ela, por sua vez, sentia, portanto, o peso da existência solitária. E era impossível não perecer ao peso e mergulhar inteiramente.
            Agora Maria passa – vinte anos depois – na frente do Larry’s. Que homem inventivo e cheio de visão. A casa continua de pé, agora tocando uma tal de House Music que ela não entende bem como derivou da Disco de outrora, nem como a nova droga dos corredores de banheiros, um tal de ecstasy, dominou tudo e dominou, mais que antes, a juventude, porque, pensou consigo, pelo menos os velhos cheiravam cocaína, não as crianças enlouquecidas, dançando ao som de batidas repetitivas. Percebia que os bateristas e percussionistas foram dispensados por sintetizadores, assim como os tecladistas, os guitarristas, todos, as bandas podiam se reunir a um ou dois instrumentistas e uma voz. O mundo já não era mais o mesmo. E foi naquela discoteca que ela perdeu sua alma para sempre. Jurou que jamais pisaria ali de novo. E jamais pisou.