terça-feira, 29 de março de 2022

Comentário leigo a Bava Batra 4a:3

Bava Batra 4a:3

Herodes disse a ele: “eu sou esse. Se eu soubesse que os Sábios eram tão cautelosos, não os teria matado. Agora, qual é o remédio deste homem?”, ou seja, o que posso fazer para me arrepender de minhas ações errôneas?

Bava ben Buta disse-lhe: “aquele que extinguiu a luz do mundo ao matar os sábios da Torá, como está escrito: ‘Porque o mandamento é uma lâmpada e a lei [ou seja, a Torá] é luz’ (Prov. 6:23)1, deve ir e ocupar-se da luz do mundo, isto é, do Templo, como está escrito em relação ao Templo: ‘E todas as nações fluirão para esse [lugar]’ (Isaías 2:2)2, [a palavra] ‘fluirão’ aludindo à [palavra] ‘luz’.”

Comentário leigo

Como Bava relacionaria as palavras “fluirão” e “luz”? Isso se deve à estrutura das palavras nas línguas semitas (línguas como o hebraico, o aramaico, o árabe e outras).

As palavras nas línguas semitas compõem-se a partir de uma raiz consonantal, não a partir de algumas sílabas com vogais e consoantes como em português (e todas as línguas neolatinas). O que une todas as palavras relacionadas à escrita, no português, é o bloco escr-, como em escritor, escrevente, escritura, escrever, etc.

Nas línguas semitas, o processo é diferente: as consoantes k, t e b compõem todas as palavras ligadas à escrita e a documentos escritos, como livros, vide os seguintes exemplos em hebraico: kāati (כתבתי): “eu escrevi”, kattāā (כתבה): “artigo”, miḵtā (מכתב): “carta-postal”, miḵtāā (מכתבה): “escrivaninha”, kəī (כתיב): “soletração”, taḵtī (תכתיב): “prescrito”, uttā (מכותב): “destinatário”, etc.

Além disso, o sistema de escrita hebraico registrava somente as consoantes das palavras. Apenas a partir do século Ⅸ E.C. desenvolveram-se sinais diacríticos que se adicionam às consoantes hebraicas para indicar as vogais das palavras — pequenos pontos e traços adicionados acima e abaixo das consoantes, chamados nəqudōt (singular: nīqqūd).

Daí Bava poder relacionar as duas palavras (“fluirão” e “luz”), pois continham as mesmas consoantes nos dois versículos citados por ele (wə·nā·hă·rū — וְנָהֲר֥וּ — nêr נֵ֣ר formando a raiz consonantal n-r, explícita em nêr e contida em nāhărū, assim uma palavra estaria dentro de outra, em seu interior, compondo seu sentido íntimo, isto é, de dentro, não oculto, mas literalmente — à letra — interno). Eis porque a hermenêutica judaica é uma hermenêutica eminentemente da letra e da palavra, não cedendo ao império do significado, senão abraçando os indícios deixados pelos significantes em seu rastro.


  1. nêr (נֵ֣ר): “lâmpada” (substantivo masculino singular), miṣ·wāh (מִ֭צְוָה): “comando, mandamento” (substantivo feminino singular), wə·ṯō·w·rāh (וְת֣וֹרָה): conjunção aditiva “” + “Torá” (substantivo feminino singular), ’ō·wr (א֑וֹר): “luz” (substantivo comum de dois gêneros singular).

  2. wə·nā·hă·rū (וְנָהֲר֥וּ): conjunção “” + “fluirão” (verbo de tema leve, isto é, simples, chamado tema qal (קַל), modo conjuntivo, aspecto perfectivo, conjugado em terceira pessoa plural comum de dois gêneros).