domingo, 30 de setembro de 2018

Falesser

• Somos parlêtres.
• Traduziu-se como: "falasser(es)".
• É até legal, mas prefiro: falentes.
→ Declina nossa falessência.
♦ Tudo isso porque "[…] é da linguagem que nos vem essa loucura de que há ser."

Eu tenho algumas hipóteses bastante… ousadas? Safadas? O importante é que eu tenho teses fracas.

A-língua é anunciadora de uma vergontologia [hontologie] – que é chamada pela filosofia de ontologia (ou metafísica).
• A filosofia, todavia, canalha que é, postulou a antifilosofia como sua outra, para reforçar o centro pela existência do descentro (e.g., sofística é expulsada da re-flexão pela filosofia platônica – e aqui cometo minha primeira gafe: não deveria dar tanta importância a Platão).
→ Para provar isso basta ver como Aristóteles trata aqueles que exigem provas dos axiomas da lógica no livro Gama da Metafísica; ou ver como ele trata seus "oponentes" (até então eles são todos anteriores a Aristóteles e não poderiam dar menos importância à sua [bastante acidental e desimportante] existência) nas Refutações sofísticas. Ele segue dizendo que são "provas impossíveis" de se dar e que exigi-las é ser babaca. Babaca é ele, que começa um negócio e nem dá argumentos pra sustentar.
→ → Podemos extrair daí que a lógica é uma punhetinha cerebrina produzida sob encomenda, ou seja, um ready-made (também é ready-made o conceito de energeia, que Aristóteles cria para a ocasião, não havia o termo em grego até então – mas também o é, e de forma muito mais criativa, o den que Demócrito estipula para seus átomos, que são, não a matriz da matéria, mas do pensamento, i.e., da posição-de-sujeito, uma posição que sempre existiu e sempre existirá, pois a estrutura-de-sujeito antecede o surgimento da vida e sobreviverá a seu desaparecimento, eis um dos pontos fulcrais de H. P. Lovecraft).
• Talvez o trabalho seja realmente um'a-língua desintegradora sobremaneira que flerte com o múltiplo desatentamente, bordejando limites forçosamente ignorados.
→ Veja-se: no momento em que a filosofia postula sua outra como anti-filosofia, ela já se põe de volta no jogo (e no centro do jogo) – uma negação efetiva seria uma estultologia ou coisa assim, um não-saber, um dessaber (o bom é a homofonia com "de saber"), uma idiotice, uma estupidez, o contrário do tesão pela sofia, talvez uma misosofia (?), um ódio ao saber… Eu também não sei, estou esboçando uma batalha certamente maior que eu, infinitamente maior, com oponentes armados há dois mil e tantos anos a seu favor, quer dizer, é verdadeiramente uma paralaxe, uma luta desigual, mas eu lutarei, porque foda-se essa merda, a filosofia está sempre fundada numa decisão antrópica e mesmo pessoal, íntima e eu odeio essa merda, eu sempre quis um saber último, mais além de tudo, uma certeza em sentido pleno e sólido (sempre ma negaram, mas eu insisto, porque a couraça é dura – e estando numa tal posição-de-sujeito posso e mesmo devo exceder esses limites pontuais que os finitistas colocaram sobre minhas costas como se fossem meus limites, mas não são, são limites deles, esses finitos de merda, e nesse exceder-me como ponto, unirei muitos pontos e farei da chuva de átomos uma verdadeira festa).
→ → Busquemos uma logologia, um tesão em falar (filo-logia), falar por falar… Como a mulher sempre foi figurada fazendo ao longo desse peido cósmico que denominamos história (humana, demasiado humana).

TrechodeFJLR

O mundo pós-humano através de cujo umbral deslizamos sem trégua nem pausa nos exigirá considerar o gesto platônico inicial da metafísica para pensar que, na radicalidade da loucura socrática, existia a suspeita de que a filosofia não podia ser outra coisa senão um delírio ascético capaz de dizer a si mesmo e se infiltrar, com agônica persistência, nos resquícios da polis mundial. Mas cabe deixar claro que essa loucura só pode se dizer em primeira pessoa, já que é sujeito de si mesma, e nunca predicado de um enunciado. O efeito de verdade, não obstante, deve ser buscado com afinco pela filosofia, precisamente por ter ela uma posição ótima para isso na qualidade de saber delirante e, sendo assim, carente de qualquer metalinguagem que separe o lógos do mundo que descreve. Pretender o contrário, como fazem certas formas do realismo contemporâneo, significa converter-se no sucedâneo de uma inveterada cisão metafísica que se ilude em encontrar uma exterioridade pura, livre e sensata, em que pensar não seja acossado pelo de-lirare.

A filosofia soube encontrar o futuro de muitas ilusões. Uma delas foi, precisamente, crer que a gnosis podia suportar uma depuração terapêutica da loucura e tornar possível um mundo. O fracasso foi estrondoso. A loucura deslocada pelo cogito cartesiano encontrou sua forma mais própria tomando posse do mundo em sua totalidade. Os conceitos filosóficos captaram, algumas vezes, esse fenômeno de traslatio cognoscendi sob o nome de técnica.

Dessa forma, se a loucura não pode ser dita apropriadamente e alcança os marcos da ilimitação, deve-se admitir que o que propicia isso é o fato de nossa época se negar a constituir uma (pós-)metafísica à altura de um multiverso infinito. Nesse sentido, seria auspicioso retificar as utopias e, no lugar uma stultifera navis, lutar pelo advento de uma stultifera scientia.

ROMANDINI, Fabián Javier Ludueña. A ascensão de Atlas. Glosas sobre Aby Warburg. Trad. Felipe Augusto Vicari de Carli. Desterro: Cultura e Barbárie, 2017, p. 50-1.

L'être de lettre

Se para a filosofia desde seus primórdios gráficos houve rexistência à a-par-êns-ia, é porque pareser é par do ser e possui seu ser, constituindo legítimo âmbito de pensamento e re-flexão, âmbito esse que as Refutações sofísticas e a petição de princípio de univocidade do sentido/significado aristotélica (livro Gama da Metafísica) tentaram banir da "legítima" filosofia, mas não cessa de re-tornar à-língua.

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Synthesis

Os fenômenos estão aquém da alma, mas além das coisas. O lugar onde as coisas se tornam fenômenos não é a alma, tampouco a sua simples existência. Para que haja sensível (e para que, assim, haja sensação) "é necessário que exista algo intermediário" (hôst’anagkaion ti einai metaxu, De anima, 419a 20). Entre nós e os objetos há um lugar intermediário, algo em cujo seio o objeto torna-se sensível, faz-se phainomenon. É nesse espaço intermediário que as coisas se tornam sensíveis e é desse mesmo espaço que os viventes colhem o sensível com o qual, noite e dia, nutrem suas próprias almas. Também para observar a si mesmo, ouvir a si mesmo, faz-se necessário, para todo animal, constituir a própria imagem fora de si, em um espaço exterior: é no espelho que conseguimos devir sensíveis e é ao espelho (e não exatamente aos nossos corpos) que demandamos nossa imagem; é apenas depois de termos pronunciado alguma palavra que podemos ouvir aquilo que dizemos. […] No espelho, então, a imagem, o sensível, faz-se conhecer como aquilo que se opõe frontalmente aos corpos-objetos e às almas-sujeitos, algo que é simultaneamente exterior aos corpos de que são imagens e aos sujeitos aos quais permite pensar esses mesmos corpos. O espelho demonstra que a visibilidade de algo é realmente separável da coisa em si e do sujeito cognoscente. Nele, se está diante da própria visibilidade, da própria imagem, diante de si mesmo enquanto ser puramente sensível; essa imagem, no entanto, existe em um outro lugar, diferente daquele onde existem o sujeito cognoscente e o objeto do qual a imagem é visibilidade. […] Com isso, podemos concluir que a imagem (o sensível) não é senão a existência de algo fora do próprio lugar. Qualquer forma e qualquer coisa que chegue a existir fora do próprio lugar se torna imagem. Nossa forma se torna imagem quando é capaz de viver para além de nós, para além de nossa alma, para além de nosso corpo, sem que ela mesma se torne um outro corpo, já que é capaz de viver como que na superfície dos outros corpos. A imagem é como que a astúcia que as formas encontraram para escapar da dialética entre alma e corpo, matéria e espírito: como sair dos corpos e das almas sem se tornarem um outro corpo e sem entrarem ainda em uma consciência ou alma alheia transformando-se em percepções atuais de qualquer outro? É como se, para toda forma, houvesse uma vida depois do corpo, que, no entanto, ainda não é a vida do espírito, uma vez que tem lugar antes de entrar no reino dos espíritos, das almas, das consciências. A imagem nasce e vive sempre depois do fim, do término do corpo de que era forma, e antes da consciência onde é percebida. É exatamente esse o lugar e o tempo em que as formas são sensíveis.

COCCIA, Emanuele. A vida sensível. Tradução: Diego Cervelin. Desterro [Florianópolis]: Cultura & Barbárie, 2010, p. 19-22. (PARRHESIA coleção de ensaios).